sábado, 29 de julho de 2017

Gente Pobre - 17. Prepare-se, pois, para ler um bom livro - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


17.




26 de junho



Minha querida Bárbara:


Devo confessar-lhe sinceramente que não tinha lido o livro a que se refere. Na verdade, limitei-me a examiná-lo por alto, o bastante para verificar que se tratava de coisas disparatadas, escritas para fazer rir e alegrar os leitores. E pensei então: «Deve ser engraçado e talvez agrade à Bárbara.» Foi por isso que lho enviei. 

Ratazaiev prometeu agora arranjar-me qualquer coisa verdadeiramente literária para ler. Prepare-se, pois, para ler um bom livro, minha querida. É que Ratazaiev percebe do assunto! Também é escritor, e que escritor! Escreve muito bem e o seu estilo é admirável, acredite. Em cada palavra, mesmo nas mais vulgares e banais, em cada frase, até, por exemplo, quando se dirige a Faldoni ou à Teresa, exprime-se com estilo, o que já tive ocasião de verificar. Costumo frequentar com regularidade os seus serões literários. Fumamos enquanto ele nos lê coisas; às vezes lê durante cinco horas seguidas, e nós ouvimo-lo durante todo esse tempo, sem pestanejar. É que aquilo são pérolas, verdadeiras pérolas; não é literatura, são flores, simplesmente flores, cheirosas e em tal profusão, que com cada página poder-se-ia fazer um ramalhete. Além disso, é tão efusivo e cordial! Que sou eu ao pé dele? Nada. Ele é um homem conhecido, respeitável, ao passo que eu não sou nada, não sirvo para nada, nada represento comparado com ele. No entanto, honra-me com a sua amizade. Já lhe copiei duas ou três coisitas, mas não julgue, querida Bárbara, que é por isso que ele me trata com tanta deferência. Não dê ouvidos a essas bisbilhotices, não acredite no que se diz por ai! Não; copio-lhe essas coisas de livre vontade, simplesmente para lhe ser agradável; e se ele é gentil comigo, fá-lo espontaneamente para me dar prazer. Não sou tão tolo que não o compreenda; sei muito bem avaliar a delicadeza do seu procedimento. É um homem bom, muito bom, e um escritor incomparável! 

A literatura, querida Bárbara, é uma coisa bela, qualquer coisa de extraordinário, segundo aprendi anteontem em casa de Ratazaiev. Ela fortalece o coração do homem, instrui... Nos livros de Ratazaiev, que, na verdade, estão muito bem escritos, encontram-se vários pensamentos sobre este assunto. A literatura é, por assim dizer, uma pintura e um espelho; um espelho das paixões e de todos os nossos sentimentos; é, ao mesmo tempo, instrução e lição edificante; é crítica e um importante documento humano. Foi isto o que ouvi e aprendi de Ratazaiev, que explanou o assunto diante dos frequentadores dos seus serões. Confesso-lhe, querida, com toda a sinceridade, que quando me encontro sentado no meio deles, a escutar e a fumar o meu cachimbo — como todos os circunstantes — e eles começam a argumentar e a discutir acerca das coisas mais diversas, costumo dizer, como no jogo das cartas, simplesmente: passo. Já que não posso entrar no jogo, passo, é o que tenho a fazer. Estou sentado no meio deles, calado como um basbaque, e até sinto vergonha de mim próprio. E embora esteja durante todo o serão a pensar na forma de intervir na conversa, nem uma só palavra me ocorre! O eterno desejado nunca aparece! Dou voltas e mais voltas à cabeça, e tudo em vão! Dir-se-ia que estou enfeitiçado, querida Bárbara, e acabo por ter pena de mim mesmo, é verdade. Pode-se aplicar-me o ditado que diz: «Quem torto nasce, torto morre.» 

Que faço agora nas horas vagas? Durmo, durmo como um porco. Em vez, porém, de dormir sem necessidade, faria melhor se empregasse o tempo livre em qualquer coisa agradável e proveitosa, como, por exemplo, a escrever o que me viesse à cabeça, não lhe parece? Assim, seria útil aos outros e a mim próprio. Não faz ideia do que esses tipos ganham com o que escrevem! Para não ir mais longe, por exemplo, calcula quanto ganha esse Ratazaiev? Trabalha muito e escreve uma folha num instante. Segundo disse, em poucos dias pode ganhar uns trezentos rublos! Quando escreve uma historiazita ou um conto humorístico, uma anedota ou qualquer coisa de interesse para o público, nunca recebe menos de quinhentos rublos. E é para quem quer! Se um achar exagerado, aparecerá outro que dê mil. Que diz a isto, querida Bárbara? 

E isto não é nada. Por um cadernito de poesias — meia dúzia de linguados com uns versitos — pede ele sete mil rublos, nem mais nem menos. Que lhe parece? Com esse dinheiro compra-se uma boa propriedade; é o rendimento de um prédio de cinco andares. Já lhe ofereceram cinco mil rublos, mas ele não aceitou. Tentei persuadi-lo, com boas razões, dizendo-lhe: «Aceite os cinco mil, homem, aceite, pois com essa quantia já pode virar as costas e não se importar com esses tipos; olhe que cinco mil rublos são dinheiro!» Mas ele não cede e diz que lhe têm de dar os sete mil. Ora veja se ele não é esperto!

Olhe, querida Bárbara, já que estamos a falar disto, mando-lhe um extrato das Paixões Italianas, tal é o título de uma das suas obras. Leia e avalie:




Vladimiro estremeceu, porque nas suas veias despertavam furiosas paixões e o sangue fervia-lhe.  
— Condessa — exclamou — condessa! Não sabe como é terrível esta paixão, como é ilimitado este delírio? Não, os meus sentidos não me enganam! Amo, amo com loucura, amo com desespero! Todo o sangue do teu marido não bastará para apagar esta horrível exaltação da minha alma. Não haverá obstáculo capaz de deter o fogo destruidor, diabólico, que arde no meu peito desolado! Oh, Zinaida, Zinaida!  
— Vladimiro — murmurou a condessa, fora de si e reclinando a cabeça no seu ombro.  
— Zinaida! — exclamou Imeielski, deixando escapar um soluço do seu peito.  
No altar do amor brotou clara a chama e envolveu as almas dos amantes.  
— Vladimiro — murmurou outra vez a condessa. O seu peito arquejava, as faces tingiam-se-lhe de púrpura, os seus olhos brilhavam.  
Uma nova e terrível união se consumara!  
[…]  
Meia hora depois, o velho conde entrou no toucador da esposa.  
— Mas, meu amor, como é que ainda não está pronto o chá para o nosso querido hóspede? — perguntou acariciando-lhe as faces.


Ora diga-me: que tal acha isto? É um bocadinho livre, é verdade; mas, ao mesmo tempo, que grandioso, que bem escrito! Mas não; ainda lhe vou transcrever outra passagem do conto intitulado: Iermak e Zuleika

Imagine, querida, que o cossaco Iermak, o feroz conquistador da Sibéria, se encontra enamorado de Zuleika, filha do chefe siberiano Kuchum, que foi feito prisioneiro. A ação decorre, como vai ver, na época em que reinava Ivan, o Terrível. Bom; eis o diálogo entre Iermak e Zuleika:



— Amas-me, Zuleika? Oh! Repete-mo, repete-mo!   
— Amuo-te, Iermak! — respondeu Zuleika, num sussurro. 
 — Céu e Terra, obrigado! Sou feliz! Concedestes-me tudo aquilo a que desde a infância a minha alma aspirava! E tu, estrela que guias os meus passos, por isso me trouxeste aqui, através da cintura de pedra do Ural! Mostrarei ao mundo inteiro a minha Zuleika, e os homens, esses monstros selvagens, não se atreverão a acusar-me! Oh, se pudessem compreender as secretas torturas da sua alma terna! Se, como eu, soubessem contemplar, numa lágrima da minha Zuleika, todo um poema! Oh, deixa-me enxugar com os meus beijos essa lágrima, essa gota de orvalho do céu... Ó ente celestial!  
— Iermak — disse-lhe Zuleika —, o mundo é mau e os homens são injustos. Vão perseguir-nos e condenar-nos, meu amor! Que será de uma pobre moça como eu, criada nos campos nevados da Sibéria, na cabana do seu pai, lá nesse mundo frio, glacial, egoísta e sem alma? Os homens não me compreenderão, meu querido!  
— Sim? Nesse caso terão de se entender com a espada do cossaco! — exclamou Iermak, em cujos olhos brilhou um relâmpago sinistro.

Imagine, querida Bárbara, o que acontece a Iermak quando tem conhecimento de que lhe assassinaram a sua Zuleika. O velho Kuchum, protegido pelas trevas da noite, conseguiu introduzir-se na tenda de Iermak, que se achava ausente, e matou a sua filha Zuleika, julgando vingar-se do cossaco que lhe arrebatara o cetro e a coroa.



— Que prazer eu senti a afiar a espada! — exclamou Iermak, a arder em furioso desejo de vingança; e pôs-se a passar o aço numa pedra sagrada. — Quero o seu sangue, o seu sangue! Preciso de a vingar, de a vingar, de a vingar!



Mas, apesar de tudo, Iermak não pode sobreviver à sua Zuleika. Atira-se ao Irtich e afoga-se, com o que termina o conto.

Veja agora uma amostra de uma descrição humorística, feita exclusivamente para fazer rir:




— Então não conheces Ivan Prokofievitch Zeltopuz? Não? É aquele que mordeu Prokofi Ivanovitch numa perna. Ivan Prokofievitch tem mau gênio, mas ao mesmo tempo é dotado de raras virtudes. Prokofi Ivanovitch, pelo contrário, pela-se por rabanetes com mel. Quando ainda vivia em boas relações com Pelágia Antonovna... Mas não conhece, porventura, Pelágia Antonovna? Como? Ah, sim, é essa mesmo; aquela que veste sempre a camisa do avesso...


Isto é que é humorismo, verdadeiro humorismo, não acha, querida Bárbara? Quando ele nos leu esta página, nós até nos retorcíamos nos assentos, de tanto rir. Que grande maduro, meu amor! De resto, se bem que seja um pouco cómico e livre, no fundo, é um inocente, sem sombra de livre-pensamento nem de nenhum desses erros liberais. Devo dizer-lhe, também, que Ratazaiev, além de um grande escritor, é um homem de linha, o que não se pode dizer da maioria dos escritores. 

Que sucederia se eu pusesse em prática a ideia em que por várias vezes tenho pensado, de também escrever alguma coisa? Suponhamos que, de um momento para o outro, me lembrava de publicar um livro, em cuja capa se lesse: «Poesias de Makar Dievuchkin»? Que diria a isto, meu anjo? Que lhe pareceria, como receberia um tal acontecimento? Cá por mim, posso garantirlhe, querida, que, depois do meu livro ser publicado, não me atreveria a aparecer mais na Perspetiva Nevski. Não podia ouvir toda a gente dizer, apontando-me: «Olhem, vai ali o poeta Dievuchkin; é ele mesmo!» 

Que sucederia então às minhas botas? Porque devo dizer-lhe, meu amor, que as trago sempre por engraxar e as solas, para falar verdade, não costumam encontrar-se em muito bom estado. Que figura faria se todos soubessem que o poeta Dievuchkin andava com as botas sujas? Que diria uma condessa ou duquesa se tivesse conhecimento de tal coisa? É possível que não dessem por isso, pois as condessas e as duquesas não reparam nas botas, principalmente tratando-se das botas de um empregadito qualquer (ao fim e ao cabo, umas botas são sempre umas botas, é preciso ver...). Mas tenho a certeza de que não faltaria quem lhes levasse a notícia, a começar pelos meus próprios amigos. Ratazaiev seria o primeiro, pois é frequentador assíduo da casa da condessa B..., onde, segundo diz, se apresenta mesmo sem que tenha sido convidado. Consta que se trata de uma bondosa senhora e, além disso, uma dama distinta e muito versada em literatura. Que espertalhão que é Ratazaiev! 

Mas fiquemos por aqui! Escrevo-lhe estas coisas apenas para a distrair, por mera brincadeira. O que desejo é que continue bem, meu amor! A carta é um pouco longa porque, para lhe ser franco, hoje encontro-me admiravelmente bem-disposto. Jantamos todos no quarto de Ratazaiev, que costuma servir um licor especial, tão bom, que não sei de palavras para o descrever... Mas, alto lá! Não vá pensar mal de mim, querida Bárbara! Não se trata disso! Vou enviar-lhe uns livrinhos. Agora andam aqui a ler uma novela de Paul de Kock , mas este autor não é próprio para si... Não, não, Deus me livre! Paul de Kock não deve cair nas suas mãos. De facto, consta que todos os críticos decentes de S. Petersburgo se mostraram um pouco mal impressionados. 

Envio-lhe uma libra de bombons, que comprei expressamente para si. E olhe, querida, pense em mim de todos as vezes que pegar num. Meta-os à boca e não os engula logo; vi derretendo-os pouco a pouco, senão, ao trincá-los, pode estragar os dentes. Também gosta de pastilhas de chocolate? Se gostar, diga-mo. 

Adeus, adeus! Deus a guarde. 

Sempre seu muito fiel amigo



Makar Dievuchkin





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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