quarta-feira, 12 de julho de 2017

15.O Estrangeiro: O gatilho cedeu - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 6


15. O gatilho cedeu




NO DOMINGO, custou-me tanto a acordar, que foi preciso a Maria chamar-me e sacudir-me. Não comemos, porque queríamos tomar cedo o banho de mar. Sentia-me completamente vazio e doía-me um pouco a cabeça. O meu cigarro tinha um gosto amargo. Maria fez troça de mim porque dizia que eu estava com uma "cara de enterro". Pusera um vestido branco e soltara os cabelos. Disse-lhe que estava bonita e ela riu de contentamento. 

Ao sair, batemos à porta do Raimundo. Respondeu-nos que já vinha. Na rua, porque estava cansado e também porque não tínhamos aberto as persianas, o dia, já cheio de sol, bateu-me como uma verdadeira bofetada. Maria saltava de prazer e não parava de repetir que estava ótimo. Senti-me melhor e reparei que estava com fome. Disse-o a Maria, que me mostrou o seu saco de praia, onde pusera os nossos dois fatos de banho e uma toalha. Não havia nada a fazer, senão esperar, e ouvimos Raimundo fechar a porta. Trazia umas calças azuis e uma camisa branca, de mangas curtas. Mas pusera na cabeça um chapéu de palha, de que Maria se riu muito, e sob os pelos negros, tinha os braços muito brancos. Isto enojava-me um bocadinho. Ao descer, assobiava e tinha um ar muito contente. Disse-me: "Olá, pá", e tratou Maria por "Menina". 


Na véspera tínhamos ido ao comissariado e eu testemunhara que a mulher o "enganara". Saiu-se com um aviso e uma reprimenda. Não verificaram a minha informação. Diante da porta, falamos com Raimundo deste caso, e depois decidimo-nos a tomar o autocarro. A praia não era longe, mas assim iríamos mais depressa. Raimundo achava que o amigo ficaria contente por chegarmos tão cedo. Íamos partir quando Raimundo, de súbito , me fez um sinal para olhar em frente de mim. 

Reparei num grupo de Árabes encostados a um quiosque de tabacos. Olhavam-nos em silêncio, mas à maneira deles, como se fôssemos árvores mortas ou simplesmente pedras. Raimundo disse-me que "o tipo" era o segundo a contar da esquerda, e fez um ar preocupado. Acrescentou que, no entanto, o caso era agora história antiga. Maria não compreendia muito bem, e perguntou-nos o que se passava. Disse-lhe que eram uns Árabes, ressentidos contra Raimundo. Maria quis que nos fôssemos embora imediatamente. Raimundo endireitou-se e riu, dizendo para nos despacharmos. 

Fomos para a paragem dos autocarros, que ficava um pouco mais longe, e Raimundo anunciou que os Árabes não nos haviam seguido. Voltei-me para trás. Continuavam no mesmo lugar e olhavam com a mesma indiferença o sítio que acabávamos de deixar. Tomamos o autocarro. Raimundo, que parecia aliviado, não parava de gracejar em intenção de Maria. Senti que esta lhe agradava, mas vi - que ela não lhe respondia quase nunca. De tempos a tempos, Maria olhava-me e ria.

Descemos numa paragem dos arredores de Argel. A praia não ficava longe. Mas foi preciso atravessar um pequeno planalto que domina o mar e que desce em seguida para a praia. Estava coberto de pedras amareladas e de abróteas brancas, sob o azul já duro do céu. Maria divertia-se a espalhar as pétalas destas flores, batendo-lhes com o saco de praia. Marchamos entre filas de pequenas vivendas com cercas verdes ou brancas, algumas escondidas, com as suas varandas, entre os tamarizes, e outras, nuas e despojadas, no meio das pedras. Antes de chegar à borda do planalto, podia-se já ver o mar imóvel e, mais longo, um cabo maciço e sonolento na água clara. Subiu até nós, no ar calmo, um ligeiro barulho de motor. E vimos, muito longe, uma pequena canoa que avançava imperceptivelmente no mar brilhante. Maria agarrou em alguns estilhaços de rocha, Da encosta que descia para o mar, vimos que já estavam vários banhistas na praia. 

O amigo de Raimundo morava numa casita de madeira, no extremo da praia. A casa encostava-se à rocha e as traves que a sustinham à frente,. mergulhavam já na água. Raimundo apresentou-nos. O amigo - chamava-se Masson. Era um tipo alto, entroncado, com ombros largos, e a mulher dele era baixa, gorda e simpática, com um sotaque parisiense. Disse imediatamente para nos pormos à vontade e que tinha para o almoço uns peixes fritos que ele mesmo pescara de manhã. Disse-Lhe que achava a casa muito bonita, e ele informou-me que passava ali o sábado, o domingo, e todos os feriados. "Com a minha mulher, é claro", acrescentou. Justamente, esta e Maria riam-se de qualquer coisa. Pela primeira vez, pensei seriamente que me ia casar. 

Masson queria tomar banho, mas a mulher e Raimundo não queriam ir. Descemos os três e Maria atirou-se logo à água. Masson e eu, esperamos ainda um pouco. Masson falava muito devagar e notei que tinha o costume de completar tudo quanto dizia por um "e direi mesmo mais", mesmo quando, no fundo, nada acrescentava ao sentido da frase. A propósito de Maria, disse: "estupenda e, direi mesmo mais, encantadora". Depois, deixei de prestar atenção a este tique, pois ocupava-me agora em sentir que o sol me sabia bem. A areia começava-me á aquecer, sob os pés: Retardei mais um bocado a vontade que tinha de ir para a água, mas acabei por dizer a Masson:

"Vamos?" Mergulhei. Ele, entrou lentamente na água, e só mergulhou quando perdeu o pé. Nadava de bruços, bastante mal, de modo que o deixei para trás para ir ter com Maria. A água estava fria e era bom nadar. Afastei-me com Maria e sentíamos-nos os dois de acordo nos nossos gestos e no nosso contentamento. 

Ao largo, pusemo-nos a boiar de costas e, na minha cara voltada para o céu, o sol afastava os últimos véus de água que me escorriam para a boca. Vimos que Masson regressara à praia e se estendera ao sol. De longe, parecia enorme. Maria quis que nadássemos juntos. Coloquei-me por detrás dela, segurando-a pela cintura e ela avançava à força de braços, enquanto eu a ajudava batendo os pés. O pequeno barulho da água batida seguiu-nos ao longo da manhã, até que me senti cansado. Deixei então Maria e voltei para a praia, nadando compassadamente e respirando bem: Uma vez na praia, estendi-me de barriga para baixo ao pé de Masson e descansei a cara na areia. Disse-lhe que "era bom" e ele tinha a mesma opinião. Depois, Maria veio ter conosco, Voltei-me para a ver. Estava viscosa da água salgada e tinha os cabelos caídos para trás. Estendeu-se encostada a mim e os dois calores, o do corpo dela e o do sol, adormeceram-me um pouco. 

Maria sacudiu-me e disse-me que Masson já fora para casa e era preciso ir almoçar. Levantei-me imediatamente porque tinha fome, mas Maria disse-me que não voltara a beijá-la desde manhã. Era verdade, e também eu tinha vontade de a beijar. "Vem para a água", disse-me ela. Corremos e deixamo-nos cair nas primeiras ondas, Fizemos algumas braçadas e ela encostou-se a mim. Senti as pernas dela em volta das minhas e desejei-a. 

Quando voltamos, já Masson nos chamava. Disse que estava cheio de fome e o dono da casa declarou logo à mulher que eu lhe agradava: O pão era bom e devorei a minha porção de peixe. Depois, havia carne e batatas fritas. Comíamos sem falar. Masson bebia muito vinho e servia-me sem parar. Ao café, tinha a cabeça um pouco pesada e fumei muito. Masson, Raimundo e eu encaramos a hipótese de passar o mês de Agosto na praia, dividindo as despesas: Maria perguntou de repente: "Sabem que horas são? São onze e meia". Estávamos todos admirados, mas Masson disse que se tinha comido muito cedo, o que era natural, pois a hora do almoço era a hora em que se tinha fome. Não sei por que motivo Maria se riu tanto com isto. Julgo que bebera demais. Masson perguntou-me então se queria ir dar com ele um passeio pela praia. "A minha mulher dorme sempre a sesta depois de almoço. Eu, não gosto disso. Preciso de andar. Digo-lhe sempre que é melhor para a saúde. Mas no fim de contas, está no seu direito". Maria declarou que ficava, para ajudar a dona da casa a lavar a loiça. Esta disse que, para isso, era preciso pôr os homens na rua. Descemos os três. 

O sol caía quase a pique sobre a praia e o seu brilho no mar era insustentável. Já não estava ninguém na praia. Nas casas ao longo do planalto e que olhavam para o mar, ouvia-se o barulho de pratos e de talheres. Mal se respirava, neste calor de pedra que subia do chão. Para principiar, Raimundo e Masson falaram de coisas e pessoas que eu ignorava. Percebi que se conheciam há muito tempo e que, a certa altura, tinham mesmo vivido juntos. Dirigimo-nos para a água e andamos à beira do mar. Às vezes, uma onda mais comprida do que as outras, vinha molhar-nos os sapatos de borracha. Não pensava em nada, porque estava meio adormecido com todo este sol na minha cabeça descoberta.. A certa altura, Raimundo disse a Masson qualquer coisa que não consegui ouvir muito bem. Mas distingui ao mesmo tempo, no fim da praia e muito longe de nós, dois Árabes vestidos de azul, que vinham na nossa direção. Olhei para Raimundo, que me disse: "É ele". Continuamos a andar. Masson perguntou como é que eles nos podiam ter seguido até aqui. Pensei que nos tinham visto tomar o autocarro com um saco de praia, mas não disse nada. 

Os Árabes avançavam lentamente e estavam já muito mais perto. Não modificamos o nosso andamento, mas Raimundo disse: "Se houver pancada, tu, Masson, ficas com o segundo. Eu, encarrego-me do meu tipo. Tu, Meursault, se vier outro Árabe, é para ti". Respondi: "Está bem", e Masson meteu as mãos nas algibeiras. A areia a ferver parecia-me agora vermelha. Avançamos no mesmo passo para os Árabes. A distância entre nós foi diminuindo pouco a pouco: Quando não estávamos senão a alguns passos uns dos outros, os Árabes detiveram-se. Masson e eu começamos a andar mais devagar. Raimundo foi direito ao "seu tipo". Não percebi muito bem o que lhe disse, mas o outro fez menção de lhe dar uma cabeçada. Raimundo deu então o primeiro soco e logo a seguir chamou Masson. Masson dirigiu-se ao que Lhe fora destinado e deu-Lhe dois socos com toda a força. O outro caiu no mar, de barriga para baixo, a cara dentro de água e ficou assim alguns segundos, perto da cabeça dele, rebentavam à superfície bolhas de ar. Durante este tempo, Raimundo continuou a lutar e o outro tinha a cara cheia de sangue. Raimundo voltou-se para mim e disse: "Vais ver o que ele vai apanhar!" Gritei-lhe: "Atenção, o tipo tem uma navalha!" mas Raimundo tinha já o braço aberto e um golpe na boca. 

Masson deu um salto para a frente. Mas o outro Árabe levantara-se e colocara-se atrás do que estava armado. Não ousámos mexer-nos. Os Árabes recuaram lentamente, sem deixar de nos falar e de nos ameaçar com a navalha. Quando viram que a distância era suficiente, fugiam muito depressa, enquanto nós ficávamos ali pregados, ao sol, e Raimundo agarrava no braço a escorrer sangue. 

Masson disse imediatamente que conhecia um médico que passava os domingos no pequeno planalto. Raimundo quis ir sem demora tratar das feridas. Mas, cada vez que falava, o sangue borbulhava-Lhe na boca. Ajudando-o a andar, voltamos para casa o mais depressa possível. Aí, Raimundo disse que afinal as feridas eram superficiais e que podia ir já ao médico. Saiu com Masson e eu fiquei, para explicar às mulheres o que se tinha passado. A mulher de Masson chorava e Maria estava muito pálida. Era aborrecido, ter de Lhes explicar. Por fim, calei-me e pus-me a fumar, olhando para a paisagem do mar. 

Pela uma e meia, Raimundo e Masson voltaram. Raimundo trazia o braço ligado e adesivo no canto da boca. O médico dissera-Lhe que não fora nada de importante, mas estava com um ar sombrio. Masson tentou fazê-lo rir. Mas ele não dizia nada. A certa altura, disse que queria descer à praia, e eu perguntei-lhe onde ia. Respondeu que lhe apetecia apanhar ar. Masson e eu dissemos que o acompanhávamos. Então, encolerizou-se e insultou-nos. Masson declarou que não devíamos contrariá-lo. Apesar disso, fui com ele. 

Andamos muito tempo, ao longo da praia. O sol estava agora esmagador. Estilhaçava-se na praia e no mar. Tive a impressão de que Raimundo sabia onde ia, mas talvez estivesse enganado. Mesmo no fim da praia, chegamos a uma pequena fonte que corria para a areia, em direção ao mar, por detrás de um grande rochedo. Aí, encontramos os dois Árabes. Estavam deitados, com os seus trajes azuis e sujos. Tinham um ar calmo e quase beatífico. A nossa chegada não os incomodou. O que ferira Raimundo, olhava-o sem dizer uma palavra. O outro soprava numa flauta feita à mão e repetia nterminavelmente, olhando-nos de viés , as três notas que conseguia obter do instrumento. 

Durante todo este tempo, havia só o sol e este silêncio, com o leve ruído da nascente e das três notas musicais. Depois Raimundo levou a mão à algibeira de trás das calças, mas o outro não se moveu. Continuavam a fitar-se. Reparei que o que tocava flauta tinha os dedos dos pés muito afastados. Sem tirar os olhos do adversário, Raimundo perguntou-me: "Dou cabo dele?" Pensei que, se dissesse que não, ficaria excitado e dispararia com certeza. Disse unicamente: "O tipo ainda não disse nada. Disparar assim sem mais nem menos, não seria bonito". Ouviu-se ainda o leve ruído da água e da flauta, no coração do silêncio e do calor. Depois, Raimundo disse: "Então vou insultá-lo e quando ele responder ,dou cabo dele". Respondi: "Isso mesmo. Mas se o tipo não puxar da navalha, não podes atirar". Raimundo começou a enervar-se. O outro continuava a tocar e os dois observavam atentamente os gestos de Raimundo. "Não, disse eu a Raimundo. Vai-te a ele, homem a homem e dá-me o revólver. Se o outro intervém ou se puxa a navalha, mato-o". 

Quando Raimundo me deu o revólver, o sol refletiu-se na arma. Ficamos imóveis, como se tudo se houvesse fechado em nossa volta. Olhávamo-nos sem baixar os olhos e tudo aqui se detinha entre o mar, a areia, o sol, e o duplo silêncio da flauta e da água.

Pensei neste instante que disparar ou não disparar, era tudo o mesmo. Mas bruscamente, os Árabes começaram a recuar e desapareceram por detrás do rochedo. Raimundo e eu voltámos então para casa. Raimundo parecia estar melhor e falou no autocarro da volta. 

Acompanhei-o até casa e, enquanto ele subia a escada de madeira, eu fiquei no primeiro degrau, a cabeça cheia de sol, sem coragem para o esforço que era preciso fazer para subir as escadas de madeira e voltar a abordar as mulheres. Mas o calor era tão grande que me era igualmente penoso ficar assim imóvel, sob a chuva de luz que caía do céu. Ficar aqui ou partir, vinha a dar na mesma. Ao fim de alguns instantes, voltei para a praia e comecei a andar. 

Era o mesmo brilho avermelhado. Na areia, o mar ofegava com a respiração rápida e abafada das pequenas ondas que se sucediam umas às outras. Dirigia-me lentamente para os rochedos e sentia que a testa me inchava, sob o peso do sol. Todo este calor se apoiava contra mim, opondo-se ao meu avanço. E cada vez que sentia o sopro quente deste calor enorme na minha cara, cerrava os dentes, apertava os punhos nas algibeiras das calças, retesava-me todo para triunfar do sol e da embriaguez opaca que caía sobre mim. A cada espada de luz surgida da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um vidro partido, os queixos crispavam-se-me. Andei assim durante muito tempo. 

Distinguia, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, rodeado de uma auréola formada pela luz e pela poeira do mar. Pensava na nascente fresca que havia por detrás do rochedo. Desejava reencontrar o murmúrio da água que dela brotava, desejava fugir ao sol, ao esforço, às lágrimas da mulher, desejava enfim, reencontrar a sombra e o repouso. Mas quando cheguei mais perto, vi que o Árabe de Raimundo voltara ali. 

Estava só. Descansava de costas, as mãos debaixo da nuca, a cabeça nas sombras do rochedo e o resto do corpo ao sol. O seu trajo azul fumegava de calor. Fiquei um pouco admirado. Para mim, era história antiga, e viera para aqui sem pensar no caso. Logo que me viu, levantou-se e meteu a mão na algibeira. Eu, muito naturalmente, agarrei no revólver de Raimundo, dentro do casaco. Então, o Árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão da algibeira.

Eu estava bastante longe dele, a uns dez metros de distância. Adivinhava-Lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas a maioria das vezes, a imagem dele dançava diante dos meus olhos, na atmosfera inflamada. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso do que ao meio-dia. Eram o mesmo sol e a mesma luz, que se prolongavam até este momento. Há já duas horas que o dia deitara a sua âncora neste oceano de metal fervente. No horizonte, passou um pequeno vapor. Adivinhei-lhe a mancha negra com o canto do olho, pois não cessava de fitar o Árabe. 

Pensei que me bastava voltar para trás e tudo ficaria resolvido. Mas atrás de mim, comprimia-se uma imensa praia vibrante de sol. Dei alguns passos para a nascente. O Árabe não se moveu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras que se lhe projetavam na cara. Esperei. A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se-me nas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele. Por causa desta queimadura que já não podia suportar mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não me iria desembaraçar do sol, simplesmente por dar um passo em frente. Mas dei um passo, um só passo em frente. E desta vez, sem se levantar, o Árabe tirou a navalha da algibeira e mostrou-ma ao sol. A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou.

Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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