sexta-feira, 28 de julho de 2017

35. O Livro dos Abraços - Celebração do nascer incessante - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


35. O Livro dos Abraços




Celebração do nascer incessante 

Miguel Mármol serviu outra rodada de rum Matusalém e disse que estava comemorando, bebemorando, cinqüenta e cinco anos de seu fuzilamento. Em 1932, um pelotão de soldados tinha acabado com ele, cumprindo ordens do ditador Martínez. 

De idade, tenho oitenta e dois — disse Miguelito — mas nem percebo. Tenho muitas namoradas. O médico receitou. 

Contou-me que tinha o costume de acordar antes do amanhecer, e que assim que abria os olhos começava a cantar, a dançar e a sapatear, e que os vizinhos do andar de baixo não gostavam nada daquilo. 

Eu tinha ido levar para ele o tomo final de Memória do Fogo. A história de Miguelito funciona como eixo desse livro: a história de suas onze mortes e suas onze ressurreições, tudo isso ao longo de sua vida brigona. Desde que nasceu pela primeira vez em Hopango, em El Salvador, Miguelito é a mais certeira metáfora da América Latina. Como ele, a América Latina morreu e nasceu muitas vezes. Como ele, continua nascendo. 

Mas disso — afirmou — é melhor não falar. Os católicos me dizem que tudo isso aconteceu por obra da Providência. E os comunistas, meus camaradas, dizem que foi tudo obra da coincidência. 

Propus fundarmos juntos o marxismo mágico: metade razão, metade paixão, e uma terceira metade de mistério. 

A ideia é boa — me disse ele. 




O parto

Três dias de parto e o filho não saía: — Tá preso. O negrinho tá preso — disse o homem. 


Ele vinha de um rancho perdido nos campos. 

E o médico foi até lá. 

Maleta na mão, debaixo do sol do meio-dia, o médico andou até aquela longidão, aquela solidão, onde tudo parece coisa do destino feroz; e chegou e viu. 

Depois, contou para Glória Galván: 

A mulher estava nas últimas, mas ainda arfava e suava e estava com os olhos muito abertos. Eu não tinha experiência nessas coisas. Eu tremia, estava sem nenhuma ideia. E nisso, quando levantei a coberta, vi um braço pequeninho aparecendo entre as pernas abertas da mulher. 

O médico percebeu que o homem tinha estado puxando. O bracinho estava esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco, e o médico pensou: Não se pode fazer mais nada. 

E mesmo assim, sabe-se lá por quê, acariciou o bracinho. Roçou com o dedo aquela coisa inerte e ao chegar à mãozinha, de repente a mãozinha se fechou e apertou seu dedo com força. 

Então o médico pediu que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da camisa.




Ressurreições / 2

Eram os tempos da ditadura militar no Brasil. Os generais deixaram-no entrar para que morresse em sua própria terra. Darcy Ribeiro chegou do exílio e uma ambulância, que o esperava ao pé do avião, levou-o diretamente ao hospital. 

Darcy sabia que estava com câncer, e que o câncer tinha devorado pelo menos um de seus pulmões, mas estava alegre de alegria por estar na sua terra e sentir que ela estava tão sempre-viva e dançadoura. 

O irmão de Darcy chegou da cidade de Montes Claros. Vinha para se despedir. Sentado ao lado de Darcy no hospital, olhava os próprios pés. Estava choroso e sombrio e Darcy tratava de levantar-lhe o ânimo. O cirurgião tomou Darcy pelo braço e levou-o para caminhar pelo corredor: 

Não quero desanimá-lo — disse —, mas acho que o senhor deve preparar-se para o pior. Se o seu irmão sair vivo, será um milagre. 

Darcy não pôde conter o riso, e o médico não entendeu. 

No dia seguinte, foi operado. Darcy despertou com um pulmão a menos. Como tem tantos, nem percebeu.





As duas cabeças

Pode ser que Ornar Cabezas tenha esse nome porque está usando sua segunda cabeça. E talvez por isso tenha chegado até o fim no áspero caminho da revolução da Nicarágua; e por isso chegou vivo. 

Ornar era criança e estava brincando de guerra de pedradas, na cidade de León. Choviam pedras, entre uma e outra esquina de uma rua qualquer, quando Ornar viu vir um tremendo pedregulho que seu inimigo tinha atirado, viu clarinha a trajetória da pedra no ar, e correu: ele queria correr para o outro lado, escapar, salvar-se, mas não pôde evitar que sua cabeça se lançasse ao encontro daquele projétil que estava destinado a ele, e sua cabeça chegou ao lugar exato e no momento exato para ser golpeada e quebrada pela pedra que caía. 

Assim foi que Ornar perdeu aquela sua cabeça que buscava a perdição. Desde então, usa a outra, um pouco menos louca.





Ressurreições / 4

Peca quem mente, diz Ernesto Cardenal, porque rouba a verdade das palavras. Lá por volta de 1524, Frei Bobadilla fez uma grande fogueira na aldeia de Manágua e atirou nas chamas os livros indígenas. Aqueles livros eram feitos em pele de veado, em imagens pintadas com duas cores: o vermelho e o negro. 

Havia séculos que estavam mentindo para a Nicarágua, até que o general Sandino escolheu essas duas cores para sua bandeira sem saber que eram as cores das cinzas da memória nacional.




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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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