Simone de Beauvoir
11. Fatos e Mitos
: afirmou-se muitas vezes que somente a fisiologia
AFIRMOU-SE MUITAS VEZES QUE SOMENTE A FISIOLOGIA permitia responder a estas perguntas: o êxito individual comporta as mesmas probabilidades nos dois sexos? Qual deles desempenha o papel mais importante na espécie? Mas o primeiro desses problemas não se apresenta absolutamente da mesma maneira para a mulher, e para as outras fêmeas, pois os animais constituem espécies dadas de que é possível fornecer descrições estáticas: basta agrupar observações para concluir se a égua é ou não tão veloz quanto o garanhão, se os chimpanzés machos respondem melhor aos testes intelectuais do que suas companheiras, ao passo que a humanidade está em permanente vir-a-ser. Houve sábios materialistas que pretenderam colocar o problema de maneira puramente estática. Imbuídos da teoria do paralelismo psico-fisiológico, procuraram estabelecer comparações matemáticas entre os organismos masculinos e femininos e imaginavam que essas medidas definiam imediatamente suas capacidades funcionais. Citarei um exemplo das discussões ociosas que suscitou o método. Como se supunha que, de algum modo misterioso, o cérebro secreta o pensamento, pareceu muito importante saber se o peso médio do encéfalo feminino é ou não menor que o do masculino. Verificou-se que, em média, o primeiro pesa 1.220 gramas e o segundo 1.360, variando o peso do encéfalo feminino de 1.000 a 1.500 gramas e o do homem de 1.150 a 1.700. Mas o peso absoluto não é significativo; foi por isso o peso relativo que se resolveu ponderar. Verificou-se que era de 1/48,4 no homem e de 1/44,2 na mulher. Logo ela levaria vantagem. Não. É preciso retificar ainda: nesse tipo de comparações é o organismo menor que parece sempre privilegiado; para fazer corretamente abstração do corpo ao comparar dois grupos de indivíduos, cumpre dividir o peso do encéfalo pela potência 0,56 do peso do corpo se pertencem à mesma espécie. Considera-se que homens e mulheres representam dois tipos diferentes. E chega-se aos resultados seguintes:
Conclui-se pela igualdade. Mas o que diminui de muito o interesse dessas discussões engenhosas é o fato de que nenhuma relação pode ser estabelecida entre o peso do encéfalo e o desenvolvimento da inteligência. Não seria possível tampouco dar uma interpretação psíquica às fórmulas químicas que definem os hormônios machos e fêmeos. Quanto a nós, rejeitamos categoricamente a ideia de um paralelismo psico-fisiológico; é uma doutrina cujos fundamentos foram de há muito e definitivamente solapados. Se a assinalo é porque, embora filosófica e cientificamente destruída, ela ainda preocupa muitos espíritos. Viu-se que ainda persistem em alguns sobrevivências mais antigas. Recusamos também todo sistema de referências que subentende a existência de uma hierarquia natural de valores, de uma hierarquia evolutiva, por exemplo; é ocioso indagar se o corpo feminino é ou não mais infantil que o do homem, se se aproxima mais ou menos do dos primatas superiores etc. Todas essas dissertações que misturam um vago naturalismo a uma ética ou a uma estética ainda mais vagas, são puro devaneio. É somente dentro de uma perspectiva humana que se podem comparar o macho e a fêmea dentro da espécie humana. Mas a definição do homem é que ele é um ser que não é dado, que se faz ser o que é. Como o disse muito justamente Merleau-Ponty, o homem não é uma espécie natural: é uma ideia histórica. A mulher não é uma realidade imóvel, e sim um vir-a-ser; é no seu vir-a-ser que se deveria confrontá-la com o homem, isto é, que se deveria definir suas possibilidades. O que falseia tantas discussões é querer reduzi-la ao que ela foi, ao que é hoje, quando se aventa a questão de suas capacidades; o fato é que as capacidades só se manifestam com evidência quando realizadas; mas o fato é também que, quando se considera um ser que é transcendência e superação, não se pode nunca encerrar as contas.
Entretanto, dirão, na perspectiva que adoto — a de Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty — se o corpo não é uma coisa, é uma situação: é a nossa tomada de posse do mundo e o esboço de nossos projetos. A mulher é mais fraca do que o homem; ela possui menos força muscular, menos glóbulos vermelhos, menor capacidade respiratória; corre menos depressa, ergue pesos menos pesados, não há quase nenhum esporte em que possa competir com ele; não pode enfrentar o macho na luta. A essa fraqueza acrescentam-se a instabilidade, a falta de controle e a fragilidade de que falamos: são fatos. Seu domínio sobre o mundo é portanto mais estrito; ela tem menos firmeza e menos perseverança em projetos que é também menos capaz de executar. Isso significa que sua vida individual é menos rica que a do homem.
Em verdade, esses fatos não poderiam ser negados, mas não têm sentido em si. Desde que aceitamos uma perspectiva humana, definindo o corpo a partir da existência, a biologia torna-se uma ciência abstrata; no momento em que o dado fisiológico (inferioridade muscular) assume uma significação, esta surge desde logo como dependente de todo um contexto; a "fraqueza" só se revela como tal à luz dos fins que o homem se propõe, dos instrumentos de que dispõe, das leis que se impõe. Se não quisesse apreender o mundo, a própria ideia de posse das coisas não teria mais sentido; quando o pleno emprego da força corporal não é exigido nessa apreensão, abaixo do mínimo utilizável, as diferenças anulam-se; onde os costumes proíbem a violência, a energia muscular não pode alicerçar um domínio: é preciso que haja referências existenciais econômicas e morais para que a noção de fraqueza possa ser concretamente definida. Foi dito que a espécie humana era uma anti-phisis. A expressão não é inteiramente exata, porquanto o homem não poderia contradizer o dado, mas é pela maneira pela qual o assume que lhe constitui a verdade. A Natureza só tem realidade para ele na medida em que é retomada em sua ação: sua própria natureza não constitui exceção. Assim, como não é possível medir sua posse do mundo, não é possível medir no abstrato a carga que constitui para a mulher a função geradora: a relação da maternidade com a vida individual é naturalmente regulada nos animais pelo ciclo do cio e das estações: ela é indefinida na mulher; só a sociedade pode decidir dela. Segundo essa sociedade exija maior ou menor número de nascimentos, segundo as condições higiênicas em que se desenvolvam a gravidez e o parto, a escravização da mulher à espécie faz-se mais ou menos estreita. Assim, se podemos dizer que entre os animais superiores a existência individual se afirma mais imperiosamente no macho do que na fêmea, na humanidade as "possibilidades" individuais dependem da situação econômica e social.
Como quer que seja, nem sempre acontece que os privilégios individuais do macho lhe confiram a superioridade no seio da espécie; a fêmea reconquista na maternidade outro tipo de autonomia. Às vezes, ele impõe sua ascendência. É o caso, por exemplo, dos macacos estudados por Zuckermann; mas não raro as duas metades do casal levam uma vida separada; o leão partilha com a leoa, em pé de igualdade, os cuidados do lar. Nisto também o caso da espécie humana não se assemelha a nenhum outro; não é como indivíduos que os homens se definem primeiramente; nunca homens e mulheres se desafiaram em duelos singulares: o casal é um mitsein original; e ele próprio surge sempre como um elemento fixo ou transitório de uma coletividade mais vasta. No seio dessas sociedades quem é mais necessário à espécie, o macho ou a fêmea? Ao nível dos gametas, ao nível das funções biológicas do coito e da gestação, o princípio macho cria para manter, o princípio fêmeo mantém para criar: que acontece com essa divisão na esfera social? Para as espécies fixas em organismos alheios ou em substrata, para aquelas a que a Natureza fornece alimentos em abundância e sem necessidade de esforço, o papel do macho restringe-se à fecundação; quando é preciso procurar, caçar, lutar para assegurar a alimentação necessária aos filhotes, o macho concorre amiúde para a manutenção deles. Essa ajuda torna-se absolutamente indispensável numa espécie em que os filhos são incapazes de cuidar de suas necessidades muito tempo depois que a mãe deixou de aleitá-los; então o trabalho do macho assume uma importância extrema; as vidas que suscitou não subsistiriam sem ele. Basta um macho para fecundar anualmente muitas fêmeas: mas para que os filhos sobrevivam, depois de nascer, para defendê-los contra os inimigos, para arrancar na Natureza tudo de que precisam, os machos são necessários. O equilíbrio das forças produtoras e das forças reprodutoras realiza-se diferentemente nos diversos momentos econômicos da história humana e condicionam a relação do macho e da fêmea com os filhos e, por conseguinte, de um com outro. Mas saímos do campo da biologia: à luz desta, exclusivamente, não se poderia afirmar a primazia de um dos sexos quanto ao papel que desempenha na perpetuação da espécie.
Finalmente, uma sociedade não é uma espécie: nela, a espécie realiza-se como existência; transcende-se para o mundo e para o futuro; seus costumes não se deduzem da biologia; os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza; obedecem a essa segunda natureza que é o costume e na qual se refletem os desejos e os temores que traduzem sua atitude ontológica. Não é enquanto corpo, é enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores. Os dados biológicos revestem os que o existente lhes confere. Se o respeito ou o medo que inspiram a mulher impedem o emprego de violência contra ela, a superioridade muscular do homem não é fonte de poder. Se os costumes exigem — como em certas tribos de índios — que as jovens escolham marido, ou se é o pai que decide dos casamentos, a agressividade sexual do macho não lhe confere nenhuma iniciativa, nenhum privilégio. A ligação íntima da mãe com o filho será para ela fonte de dignidade ou de indignidade, segundo o valor, que é muito variável, concedido à criança; essa própria ligação, disseram-no, será reconhecida, ou não, segundo os preconceitos sociais.
É portanto, à luz de um contexto ontológico, econômico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados da biologia. A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades individuais são fatos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana.
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O SEGUND O SEXO
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 10. Fatos e Mitos: nessas espécies favoráveis
O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
11. Fatos e Mitos
Primeira Parte
Destino
CAPITULO I
OS DADOS DA BIOLOGIA
OS DADOS DA BIOLOGIA
: afirmou-se muitas vezes que somente a fisiologia
Para o homem: P 0,56 = 498 1.360
-- _____ = 2,73
498
Para a mulher: P 0,56 = 446 1.220
_____ = 2,74
446
Conclui-se pela igualdade. Mas o que diminui de muito o interesse dessas discussões engenhosas é o fato de que nenhuma relação pode ser estabelecida entre o peso do encéfalo e o desenvolvimento da inteligência. Não seria possível tampouco dar uma interpretação psíquica às fórmulas químicas que definem os hormônios machos e fêmeos. Quanto a nós, rejeitamos categoricamente a ideia de um paralelismo psico-fisiológico; é uma doutrina cujos fundamentos foram de há muito e definitivamente solapados. Se a assinalo é porque, embora filosófica e cientificamente destruída, ela ainda preocupa muitos espíritos. Viu-se que ainda persistem em alguns sobrevivências mais antigas. Recusamos também todo sistema de referências que subentende a existência de uma hierarquia natural de valores, de uma hierarquia evolutiva, por exemplo; é ocioso indagar se o corpo feminino é ou não mais infantil que o do homem, se se aproxima mais ou menos do dos primatas superiores etc. Todas essas dissertações que misturam um vago naturalismo a uma ética ou a uma estética ainda mais vagas, são puro devaneio. É somente dentro de uma perspectiva humana que se podem comparar o macho e a fêmea dentro da espécie humana. Mas a definição do homem é que ele é um ser que não é dado, que se faz ser o que é. Como o disse muito justamente Merleau-Ponty, o homem não é uma espécie natural: é uma ideia histórica. A mulher não é uma realidade imóvel, e sim um vir-a-ser; é no seu vir-a-ser que se deveria confrontá-la com o homem, isto é, que se deveria definir suas possibilidades. O que falseia tantas discussões é querer reduzi-la ao que ela foi, ao que é hoje, quando se aventa a questão de suas capacidades; o fato é que as capacidades só se manifestam com evidência quando realizadas; mas o fato é também que, quando se considera um ser que é transcendência e superação, não se pode nunca encerrar as contas.
Entretanto, dirão, na perspectiva que adoto — a de Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty — se o corpo não é uma coisa, é uma situação: é a nossa tomada de posse do mundo e o esboço de nossos projetos. A mulher é mais fraca do que o homem; ela possui menos força muscular, menos glóbulos vermelhos, menor capacidade respiratória; corre menos depressa, ergue pesos menos pesados, não há quase nenhum esporte em que possa competir com ele; não pode enfrentar o macho na luta. A essa fraqueza acrescentam-se a instabilidade, a falta de controle e a fragilidade de que falamos: são fatos. Seu domínio sobre o mundo é portanto mais estrito; ela tem menos firmeza e menos perseverança em projetos que é também menos capaz de executar. Isso significa que sua vida individual é menos rica que a do homem.
Em verdade, esses fatos não poderiam ser negados, mas não têm sentido em si. Desde que aceitamos uma perspectiva humana, definindo o corpo a partir da existência, a biologia torna-se uma ciência abstrata; no momento em que o dado fisiológico (inferioridade muscular) assume uma significação, esta surge desde logo como dependente de todo um contexto; a "fraqueza" só se revela como tal à luz dos fins que o homem se propõe, dos instrumentos de que dispõe, das leis que se impõe. Se não quisesse apreender o mundo, a própria ideia de posse das coisas não teria mais sentido; quando o pleno emprego da força corporal não é exigido nessa apreensão, abaixo do mínimo utilizável, as diferenças anulam-se; onde os costumes proíbem a violência, a energia muscular não pode alicerçar um domínio: é preciso que haja referências existenciais econômicas e morais para que a noção de fraqueza possa ser concretamente definida. Foi dito que a espécie humana era uma anti-phisis. A expressão não é inteiramente exata, porquanto o homem não poderia contradizer o dado, mas é pela maneira pela qual o assume que lhe constitui a verdade. A Natureza só tem realidade para ele na medida em que é retomada em sua ação: sua própria natureza não constitui exceção. Assim, como não é possível medir sua posse do mundo, não é possível medir no abstrato a carga que constitui para a mulher a função geradora: a relação da maternidade com a vida individual é naturalmente regulada nos animais pelo ciclo do cio e das estações: ela é indefinida na mulher; só a sociedade pode decidir dela. Segundo essa sociedade exija maior ou menor número de nascimentos, segundo as condições higiênicas em que se desenvolvam a gravidez e o parto, a escravização da mulher à espécie faz-se mais ou menos estreita. Assim, se podemos dizer que entre os animais superiores a existência individual se afirma mais imperiosamente no macho do que na fêmea, na humanidade as "possibilidades" individuais dependem da situação econômica e social.
Como quer que seja, nem sempre acontece que os privilégios individuais do macho lhe confiram a superioridade no seio da espécie; a fêmea reconquista na maternidade outro tipo de autonomia. Às vezes, ele impõe sua ascendência. É o caso, por exemplo, dos macacos estudados por Zuckermann; mas não raro as duas metades do casal levam uma vida separada; o leão partilha com a leoa, em pé de igualdade, os cuidados do lar. Nisto também o caso da espécie humana não se assemelha a nenhum outro; não é como indivíduos que os homens se definem primeiramente; nunca homens e mulheres se desafiaram em duelos singulares: o casal é um mitsein original; e ele próprio surge sempre como um elemento fixo ou transitório de uma coletividade mais vasta. No seio dessas sociedades quem é mais necessário à espécie, o macho ou a fêmea? Ao nível dos gametas, ao nível das funções biológicas do coito e da gestação, o princípio macho cria para manter, o princípio fêmeo mantém para criar: que acontece com essa divisão na esfera social? Para as espécies fixas em organismos alheios ou em substrata, para aquelas a que a Natureza fornece alimentos em abundância e sem necessidade de esforço, o papel do macho restringe-se à fecundação; quando é preciso procurar, caçar, lutar para assegurar a alimentação necessária aos filhotes, o macho concorre amiúde para a manutenção deles. Essa ajuda torna-se absolutamente indispensável numa espécie em que os filhos são incapazes de cuidar de suas necessidades muito tempo depois que a mãe deixou de aleitá-los; então o trabalho do macho assume uma importância extrema; as vidas que suscitou não subsistiriam sem ele. Basta um macho para fecundar anualmente muitas fêmeas: mas para que os filhos sobrevivam, depois de nascer, para defendê-los contra os inimigos, para arrancar na Natureza tudo de que precisam, os machos são necessários. O equilíbrio das forças produtoras e das forças reprodutoras realiza-se diferentemente nos diversos momentos econômicos da história humana e condicionam a relação do macho e da fêmea com os filhos e, por conseguinte, de um com outro. Mas saímos do campo da biologia: à luz desta, exclusivamente, não se poderia afirmar a primazia de um dos sexos quanto ao papel que desempenha na perpetuação da espécie.
Finalmente, uma sociedade não é uma espécie: nela, a espécie realiza-se como existência; transcende-se para o mundo e para o futuro; seus costumes não se deduzem da biologia; os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza; obedecem a essa segunda natureza que é o costume e na qual se refletem os desejos e os temores que traduzem sua atitude ontológica. Não é enquanto corpo, é enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores. Os dados biológicos revestem os que o existente lhes confere. Se o respeito ou o medo que inspiram a mulher impedem o emprego de violência contra ela, a superioridade muscular do homem não é fonte de poder. Se os costumes exigem — como em certas tribos de índios — que as jovens escolham marido, ou se é o pai que decide dos casamentos, a agressividade sexual do macho não lhe confere nenhuma iniciativa, nenhum privilégio. A ligação íntima da mãe com o filho será para ela fonte de dignidade ou de indignidade, segundo o valor, que é muito variável, concedido à criança; essa própria ligação, disseram-no, será reconhecida, ou não, segundo os preconceitos sociais.
É portanto, à luz de um contexto ontológico, econômico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados da biologia. A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades individuais são fatos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana.
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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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O Segundo Sexo - 10. Fatos e Mitos: nessas espécies favoráveis
O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
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