Fiódor Dostoiévski
16.
22 de junho
Querida Bárbara Alexeievna:
Têm estas linhas por fim comunicar-lhe que se deu em nossa casa um acontecimento deveras lamentável e digno da compaixão de toda a gente. Esta manhã, por volta das cinco horas, morreu um dos filhos de Gorchkov, não sei se vítima da escarlatina ou de qualquer outra doença parecida. Fui apresentar aos pais as minhas condolências e verifiquei que viviam na maior miséria e desordem. Se a Bárbara visse... Verdade seja que não é para admirar, pois vive toda a família num único compartimento, separados por um simples biombo, para salvar a decência. Agora têm o féretro no meio do quarto — um caixão muito simples, do mais barato, mas muito bonito, que compraram já pronto. O pequenito tinha nove anos e, segundo me contaram, fazia alimentar acerca dele as mais lisonjeiras esperanças. Faz pena, mesmo muita pena, ver aquele corpinho inanimado, querida Bárbara! A mãe não chora, mas está triste. Talvez seja para eles um alívio verem-se livres de uma boca, mas ainda lhes ficam duas para alimentar: um menino de peito e uma menina de seis anos, o máximo. Custa imenso ver aquelas crianças a sofrer e não lhes podermos valer! O pai, vestindo um casaco velho, sujo e roto, está sentado numa cadeira quase a desfazer-se; as lágrimas correm-lhe pelas faces, talvez por hábito e não devido â dor, mas o certo é que chora. É uma criatura tão invulgar! Quando alguém lhe dirige a palavra, põe-se muito vermelho e nunca atina com a resposta.
A pequenita está chegada ao caixão, muito caladita e séria e com ar pensativo. Não me agrada. Não gosto de ver as crianças assim sérias, querida Bárbara! Incomodam-me. Ao pé da pequena, deitada no chão, está uma boneca muito velha, mas ela não brinca. Para lá está com o dedito na boca, sem esboçar um movimento. A patroa deu-lhe um bombom, mas ela não o comeu. Como tudo isto é triste, não lhe parece, Bárbara? Seu
Makar Dievuchkin
25 de junho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Devolvo-lhe o seu livro. É muito pesado e, quanto a mim, não vale nada. Melhor fora não me ter chegado às mãos. Onde descobriu essa joia? Falando a sério... gosta de livros como este? Prometeu há dias arranjar-me qualquer coisa para ler. Faremos a despesa a meias, se quiser. E agora, adeus, até à vista. Não tenho tempo para escrever mais.
B. D.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 15. A ferida está ainda muito viva! - Dostoiévski
Gente Pobre - 17. Prepare-se, pois, para ler um bom livro - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
16.
22 de junho
Querida Bárbara Alexeievna:
Têm estas linhas por fim comunicar-lhe que se deu em nossa casa um acontecimento deveras lamentável e digno da compaixão de toda a gente. Esta manhã, por volta das cinco horas, morreu um dos filhos de Gorchkov, não sei se vítima da escarlatina ou de qualquer outra doença parecida. Fui apresentar aos pais as minhas condolências e verifiquei que viviam na maior miséria e desordem. Se a Bárbara visse... Verdade seja que não é para admirar, pois vive toda a família num único compartimento, separados por um simples biombo, para salvar a decência. Agora têm o féretro no meio do quarto — um caixão muito simples, do mais barato, mas muito bonito, que compraram já pronto. O pequenito tinha nove anos e, segundo me contaram, fazia alimentar acerca dele as mais lisonjeiras esperanças. Faz pena, mesmo muita pena, ver aquele corpinho inanimado, querida Bárbara! A mãe não chora, mas está triste. Talvez seja para eles um alívio verem-se livres de uma boca, mas ainda lhes ficam duas para alimentar: um menino de peito e uma menina de seis anos, o máximo. Custa imenso ver aquelas crianças a sofrer e não lhes podermos valer! O pai, vestindo um casaco velho, sujo e roto, está sentado numa cadeira quase a desfazer-se; as lágrimas correm-lhe pelas faces, talvez por hábito e não devido â dor, mas o certo é que chora. É uma criatura tão invulgar! Quando alguém lhe dirige a palavra, põe-se muito vermelho e nunca atina com a resposta.
A pequenita está chegada ao caixão, muito caladita e séria e com ar pensativo. Não me agrada. Não gosto de ver as crianças assim sérias, querida Bárbara! Incomodam-me. Ao pé da pequena, deitada no chão, está uma boneca muito velha, mas ela não brinca. Para lá está com o dedito na boca, sem esboçar um movimento. A patroa deu-lhe um bombom, mas ela não o comeu. Como tudo isto é triste, não lhe parece, Bárbara? Seu
Makar Dievuchkin
25 de junho
Meu querido Makar Alexeievitch:
Devolvo-lhe o seu livro. É muito pesado e, quanto a mim, não vale nada. Melhor fora não me ter chegado às mãos. Onde descobriu essa joia? Falando a sério... gosta de livros como este? Prometeu há dias arranjar-me qualquer coisa para ler. Faremos a despesa a meias, se quiser. E agora, adeus, até à vista. Não tenho tempo para escrever mais.
B. D.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 15. A ferida está ainda muito viva! - Dostoiévski
Gente Pobre - 17. Prepare-se, pois, para ler um bom livro - Dostoiévski
Gente Pobre - 01. Ontem fui feliz, excessivamente feliz - Dostoievski
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