quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (02)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



NA CAVERNA DE PLATÃO


continuando...


Em época recente, a fotografia tornou-se um passatempo quase tão difundido quanto o sexo e a dança — o que significa que, como toda forma de arte de massa, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como uma arte. É sobretudo um rito social, uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder.

Comemorar as conquistas de indivíduos tidos como membros da família (e também de outros grupos) é o uso popular mais antigo da fotografia. Durante pelo menos um século a foto de casamento foi uma parte da cerimônia tanto quanto as fórmulas verbais prescritas. As câmeras acompanham a vida da família. Segundo um estudo sociológico feito na França, a maioria das casas tem uma câmera, mas as casas em que há crianças têm uma probabilidade duas vezes maior de ter pelo menos uma câmera, em comparação com as casas sem crianças. Não tirar fotos dos filhos, sobretudo quando pequenos, é sinal de indiferença paterna, assim como não comparecer à foto de formatura é um gesto de rebeldia juvenil.

Por meio de fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma — um conjunto portátil de imagens que dá testemunho da sua coesão. Pouco importam as atividades fotografadas, contanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia se torna um rito da vida em família exatamente quando, nos países em industrialização na Europa e na América, a própria instituição da família começa a sofrer uma reformulação radical. Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofóbica, a família nuclear, era talhada de um bloco familiar muito maior, a fotografia se desenvolvia para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidade ameaçada e a decrescente amplitude da vida familiar. Esses vestígios espectrais, as fotos, equivalem à presença simbólica dos pais que debandaram. Um álbum de fotos de família é, em geral, um álbum sobre a família ampliada — e, muitas vezes, tudo o que dela resta.

Assim como as fotos dão às pessoas a posse imaginária de um passado irreal, também as ajudam a tomar posse de um espaço em que se acham inseguras. Assim, a fotografia desenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas mais típicas: o turismo. Pela primeira vez na história, pessoas viajam regularmente, em grande número, para fora de seu ambiente habitual, durante breves períodos. Parece decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma câmera. As fotos oferecerão provas incontestáveis de que a viagem se realizou, de que a programação foi cumprida, de que houve diversão. As fotos documentam sequências de consumo realizadas longe dos olhos da família, dos amigos, dos vizinhos. Mas a dependência da câmera, como o equipamento que torna real aquilo que a pessoa vivencia, não se enfraquece quando as pessoas viajam mais. Para os sofisticados que acumulam fotos-troféus de sua viagem de navio rio acima pelo Nilo, até o lago Alberto, ou de seus catorze dias na China, tirar fotos preenche a mesma necessidade dos veranistas de classe média baixa que fotografam a torre Eiffel ou as cataratas do Niágara. 

Um modo de atestar a experiência, tirar fotos é também uma forma de recusá-la — ao limitar a experiência a uma busca do fotogênico, ao converter a experiência em uma imagem, um suvenir. Viajar se torna uma estratégia de acumular fotos. A própria atividade de tirar fotos é tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto. Isso dá forma à experiência: pare, tire uma foto e vá em frente. O método atrai especialmente pessoas submetidas a uma ética cruel de trabalho — alemães, japoneses e americanos. Usar uma câmera atenua a angústia que pessoas submetidas ao imperativo do trabalho sentem por não trabalhar enquanto estão de férias, ocasião em que deveriam divertir-se. Elas têm algo a fazer que é uma imitação amigável do trabalho: podem tirar fotos. 

Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos mais fervorosos tiradores de fotos, em seu país e no exterior. Todos que vivem numa sociedade industrializada são gradualmente obrigados a desistir do passado, mas em certos países, como Estados Unidos e Japão, a ruptura com o passado foi especialmente traumática. No início da década de 1970, a lenda do turista americano atrevido, dos anos 50 e 60, cheio de dólares e de vulgaridade, foi substituída pelo mistério do turista japonês, que se locomove em grupos, recentemente liberto de sua ilha-prisão graças ao milagre do iene sobrevalorizado, em geral munido de duas câmeras, uma em cada lado do corpo.

A fotografia tornou-se um dos principais expedientes para experimentar alguma coisa, para dar uma aparência de participação. Um anúncio de página inteira mostra um pequeno grupo de pessoas de pé, apertadas umas contra as outras, olhando para fora da foto, e todas, exceto uma, parecem espantadas, empolgadas, aflitas. O único que tem uma expressão diferente segura uma câmera junto ao olho; ele parece seguro de si, quase sorrindo. Enquanto os demais são espectadores passivos, nitidamente alarmados, ter uma câmera transformou uma pessoa em algo ativo, um voyeur: só ele dominou a situação. O que veem essas pessoas? Não sabemos. E não importa. É um Evento: algo digno de se ver — e portanto digno de se fotografar. O texto do anúncio, letras brancas ao longo da faixa escura que corresponde ao terço inferior da foto, como notícias que chegam por uma máquina de teletipo, consiste em apenas seis palavras: “... Praga... Woodstock... Vietnã... Sapporo... Londonderry... leica”. Esperanças esmagadas, farras de jovens, guerras coloniais e esportes de inverno são semelhantes — igualados pela câmera. Tirar fotos estabeleceu uma relação voyeurística crônica com o mundo, que nivela o significado de todos os acontecimentos. 

Uma foto não é apenas o resultado de um encontro entre um evento e um fotógrafo; tirar fotos é um evento em si mesmo, e dotado dos direitos mais categóricos — interferir, invadir ou ignorar, não importa o que estiver acontecendo. Nosso próprio senso de situação articula-se, agora, pelas intervenções da câmera. A onipresença de câmeras sugere, de forma persuasiva, que o tempo consiste em eventos interessantes, eventos dignos de ser fotografados. Isso, em troca, torna fácil sentir que qualquer evento, uma vez em curso, e qualquer que seja seu caráter moral, deve ter caminho livre para prosseguir até se completar — de modo que outra coisa possa vir ao mundo: a foto. Após o fim do evento, a foto ainda existirá, conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e de importância) que de outro modo ele jamais desfrutaria. Enquanto pessoas reais estão no mundo real matando a si mesmas ou matando outras pessoas reais, o fotógrafo se põe atrás de sua câmera, criando um pequeno elemento de outro mundo: o mundo-imagem, que promete sobreviver a todos nós. 

Fotografar é, em essência, um ato de não intervenção. Parte do horror de lances memoráveis do fotojornalismo contemporâneo, como a foto do monge vietnamita que segura uma lata de gasolina, a de um guerrilheiro bengali no instante em que golpeia com a baioneta um traidor amarrado, decorre da consciência de que se tornou aceitável, em situações em que o fotógrafo tem de escolher entre uma foto e uma vida, opta pela foto. A pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode interferir. O famoso filme de Dziga Viértov, Um homem com uma câmera (1929), oferece a imagem ideal do fotógrafo como alguém em perpétuo movimento, alguém que se desloca em um panorama de eventos díspares com tamanha agilidade e rapidez que qualquer intervenção está fora de questão. Janela indiscreta (1954), de Hitchcock, oferece a imagem complementar: o fotógrafo representado por James Stewart tem uma relação intensificada com determinado evento, por meio da sua câmera, justamente porque está com a perna quebrada e confinado a uma cadeira de rodas; estar temporariamente imobilizado o impede de agir sobre aquilo que vê e torna ainda mais importante tirar fotos. Mesmo que incompatível com a intervenção, num sentido físico, usar uma câmera é ainda uma forma de participação. Embora a câmera seja um posto de observação, o ato de fotografar é mais do que uma observação passiva. A exemplo do voyeurismo sexual, é um modo de, pelo menos tacitamente, e não raro explicitamente, estimular o que estiver acontecendo a continuar a acontecer. Tirar uma foto é ter um interesse pelas coisas como elas são, pela permanência do status quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar uma “boa” foto), é estar em cumplicidade com o que quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar — até mesmo, quando for esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa.

“Sempre pensei em fotografia como uma maldade — e esse era um de seus pontos prediletos, para mim”, escreveu Diane Arbus, “e quando fotografei pela primeira vez, me senti muito perversa.” Ser um fotógrafo profissional pode ser encarado como algo maldoso, para usar o termo de Darbus, se o fotógrafo procura temas considerados indecorosos, tabus, marginais. Mas temas maldosos são mais difíceis de encontrar hoje em dia. E o que vem a ser, exatamente, o aspecto perverso de tirar fotos? Se os fotógrafos profissionais têm, muitas vezes, fantasias sexuais quando estão atrás da câmera, talvez a perversão resida no fato de que essas fantasias sejam, ao mesmo tempo, plausíveis e muito impróprias. Em Blow up (Depois daquele beijo) (1966), Antonioni leva um fotógrafo de moda a rondar convulsivamente em torno do corpo de Veruchca, com a câmera a clicar. Maldade, de fato! Com efeito, usar uma câmera não é um modo muito bom de aproximar-se sexualmente de alguém. Entre o fotógrafo e seu tema, tem de haver distância. A câmera não estupra, nem mesmo possui, embora possa atrever-se, intrometer-se, atravessar, distorcer, explorar e, no extremo da metáfora, assassinar — todas essas atividades que, diferentemente do sexo propriamente dito, podem ser levadas a efeito à distância e com certa indiferença. 

Existe uma fantasia sexual muito mais forte no extraordinário filme de Michael Powell intitulado A tortura do medo (1960), que não trata de um voyeur, como o título sugere, mas de um psicopata que mata mulheres com uma arma oculta em sua câmera, enquanto as fotografa. Ele não encosta nem uma vez em seus temas. Não deseja seus corpos; quer a presença delas na forma de imagens em filme — as imagens que as mostram experimentando a própria morte —, que ele projeta numa tela, em casa, para seu prazer solitário. O filme supõe uma ligação entre impotência e agressão, entre o olhar profissionalizado e a crueldade, que aponta para a fantasia central, ligada à câmera. A câmera como falo é, no máximo, uma débil variante da metáfora inevitável que todos empregam de modo desinibido. Por mais que seja nebulosa nossa consciência dessa fantasia, ela é mencionada sem sutileza toda vez que falamos em “carregar” e “mirar” a câmera, em “disparar” a foto. 

A câmera de modelo antigo era mais difícil e mais complicada de recarregar do que um mosquete Bess. A câmera moderna tenta ser uma arma de raios. Diz um anúncio:


A Yashica Electro-35 gt é a câmera da era espacial que sua família vai adorar. Tira fotos lindas, de dia ou de noite. Automaticamente. Sem nenhuma complicação. É só mirar, focalizar e disparar. O cérebro eletrônico da gt e seu obturador eletrônico farão o resto.


Tal qual um carro, uma câmera é vendida como arma predatória — o mais automatizada possível, pronta para disparar. O gosto popular espera uma tecnologia fácil e invisível. Os fabricantes garantem a seus clientes que tirar fotos não requer nenhuma habilidade ou conhecimento especializado, que a máquina já sabe tudo e obedece à mais leve pressão da vontade. É tão simples como virar a chave de ignição ou puxar o gatilho. 

Como armas e carros, as câmeras são máquinas de fantasia cujo uso é viciante. Porém, apesar das extravagâncias da linguagem comum e da publicidade, não são letais. Na hipérbole que vende carros como se fossem armas, existe pelo menos esta parcela de verdade: exceto em tempo de guerra, os carros matam mais pessoas do que as armas. A câmera/arma não mata, portanto a metáfora agourenta parece não passar de um blefe — como a fantasia masculina de ter uma arma, uma faca ou uma ferramenta entre as pernas. Ainda assim, existe algo predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é violá-las, ao vê-las como elas nunca se veem, ao ter delas um conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em objetos que podem ser simbolicamente possuídos. Assim como a câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um assassinato sublimado — um assassinato brando, adequado a uma época triste e assustada.

No fim, as pessoas talvez aprendam a encenar suas agressões mais com câmeras do que com armas, porém o preço disso será um mundo ainda mais afogado em imagens. Um caso em que as pessoas estão mudando de balas para filmes é o safári fotográfico, que está tomando o lugar do safári na África oriental. Os caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez de olhar por uma mira telescópica a fim de apontar um rifle, olham através de um visor para enquadrar uma foto. Na Londres do final do século XIX, Samuel Butler se queixava de que havia “um fotógrafo em cada arbusto, rondando como um leão feroz, em busca de alguém que possa devorar”. O fotógrafo, agora, ataca feras reais, sitiadas e raras demais para serem mortas. As armas se metamorfosearam em câmeras nessa comédia séria, o safári ecológico, porque a natureza deixou de ser o que sempre fora — algo de que as pessoas precisavam se proteger. Agora, a natureza — domesticada, ameaçada, mortal — precisa ser protegida das pessoas. Quando temos medo, atiramos, mas quando ficamos nostálgicos, tiramos fotos. 

A época atual é de nostalgia, e os fotógrafos fomentam, ativamente, a nostalgia. A fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maioria dos temas fotografados tem, justamente em virtude de serem fotografados, um toque de páthos. Um tema feio ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atenção do fotógrafo. Um tema belo pode ser objeto de sentimentos pesarosos porque envelheceu ou decaiu ou não existe mais. Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo.

As câmeras começaram a duplicar o mundo no momento em que a paisagem humana passou a experimentar um ritmo vertiginoso de transformação: enquanto uma quantidade incalculável de formas de vida biológicas e sociais é destruída em um curto espaço de tempo, um aparelho se torna acessível para registrar aquilo que está desaparecendo. A melancólica Paris, de textura intricada, de Atget e Brassai, desapareceu em sua maior parte. A exemplo dos parentes e amigos mortos, preservados no álbum de família, cuja presença em fotos exorciza uma parte da angústia e do remorso inspirados por seu desaparecimento, as fotos dos arrabaldes agora devastados, das regiões rurais desfiguradas e arrasadas, suprem nossa relação portátil com o passado.

Uma foto é tanto uma pseudo presença quanto uma prova de ausência. Como o fogo da lareira num quarto, as fotos — sobretudo as de pessoas, de paisagens distantes e de cidades remotas, do passado desaparecido — são estímulos para o sonho. O sentido do inatingível que pode ser evocado por fotos alimenta, de forma direta, sentimentos eróticos nas pessoas para quem a desejabilidade é intensificada pela distância. A foto do amante escondida na carteira de uma mulher casada, o cartaz de um astro do rock pregado acima da cama de um adolescente, o broche de campanha, com o rosto de um político, pregado ao paletó de um eleitor, as fotos dos filhos de um motorista de táxi coladas no painel do carro — todos esses usos talismânicos das fotos exprimem uma emoção sentimental e um sentimento implicitamente mágico: são tentativas de contatar ou de pleitear outra realidade.


continua....





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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