domingo, 17 de novembro de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (12b)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XII – A SRTA. DE CHAULIEU À SRA. DE L’ESTORADE



Sexta-feira


Esse homem é verdadeiramente muito belo. Suas palavras são elegantes, seu espírito é de uma superioridade notável. Querida, ele é forte e lógico como Bossuet, [127] quando me explica o mecanismo não somente da língua espanhola, mas também do pensamento humano e de todas as línguas. O francês parece ser sua língua materna. Como lhe manifestasse minha admiração, respondeu-me já ter vindo à França, quando muito moço, com o rei de Espanha, em Valençay. Que se passou nessa alma? Não é mais o mesmo: veio vestido com simplicidade, mas absolutamente como um grão-senhor que tivesse saído pela manhã, a pé. Seu espírito, durante essa lição, brilhou como um farol: patenteou toda a sua eloquência. Como um homem fatigado que recupera as forças, revelou-me de todo uma alma cuidadosamente escondida. Contou-me a história de um pobre lacaio que se fizera matar por um único olhar de uma rainha da Espanha.

— Não podia senão morrer! — disse-lhe eu.

Essa resposta levou-lhe a alegria ao coração, e seu olhar, positivamente, espantou-me.

À noite fui ao baile em casa da duquesa de Lenoncourt; o príncipe de Talleyrand [128] lá estava. Fiz-lhe perguntas, por intermédio de um rapaz encantador, o sr. de Vandenesse, se entre seus hóspedes em 1809, em suas terras, havia um Henarez.

— Henarez é o nome mouro da família dos Sória, que são, segundo eles próprios dizem, abencerragens convertidos ao cristianismo. O velho duque e seus dois filhos acompanharam o rei. O primogênito, o duque de Sória atual, acaba de ser despojado de todos os seus bens, honrarias e grandezas pelo rei Fernando, o qual vingou assim uma velha inimizade. O duque cometeu um erro imenso, aceitando o ministério constitucional com Valdes. Felizmente fugiu de Cádiz antes da entrada de monsenhor o duque de Angoulême, o qual, apesar de sua boa vontade, não teria podido preservá-lo da cólera do rei.

Essa resposta, que me foi transmitida textualmente pelo visconde de Vandenesse, me deu muito o que pensar. Não posso dizer as ansiedades por que passei até a hora de minha primeira lição, que se realizou esta manhã. Durante o primeiro quarto de hora da aula, perguntei a mim mesma, enquanto o observava, se ele era duque ou burguês, sem poder compreender coisa alguma. Ele parecia adivinhar meus pensamentos à medida que eles iam nascendo e comprazia-se em contrariá-los. Por fim não me contive mais, larguei subitamente meu livro e, interrompendo a tradução que estava fazendo em voz alta, disse-lhe em espanhol:

— O senhor nos está enganando. O senhor não é um pobre burguês liberal e sim o duque de Sória!

— Senhorita — respondeu ele com um gesto de tristeza —, infelizmente não sou o duque de Sória.

Compreendi todo o desespero que ele incluiu na palavra infelizmente. Ah! Minha querida, será certamente impossível a qualquer outro homem pôr tanta paixão e tanta coisa numa única palavra. Ele baixara os olhos e não se animava a olhar-me.

— Sr. de Talleyrand — disse-lhe eu —, em cuja casa o senhor passou os anos de exílio, não deixa alternativa a um Henarez senão a de ser o duque de Sória, decaído do valimento, ou criado.

Ele ergueu os olhos para mim e mostrou-me dois braseiros negros e brilhantes, dois olhos ao mesmo tempo flamejantes e humilhados. Pareceu-me naquele momento um homem posto em tortura.

— Meu pai, efetivamente — disse ele —, era servidor do rei de Espanha.

Griffith não conhecia aquele modo de estudar. Tínhamos, entre uma pergunta e a resposta, silêncios inquietadores.

— Enfim — perguntei-lhe —, é o senhor nobre ou burguês?

— Deve saber, senhorita, que na Espanha todos, até os mendigos, são nobres.

Tal reserva me impacientou. Eu tinha preparado, desde a última lição, um desses divertimentos que sorriem à imaginação. Traçara numa carta o retrato ideal do homem pelo qual eu queria ser amada, propondo-me fazer com que ele a traduzisse. Até agora, traduzi do espanhol para o francês, e não do francês para o espanhol; observei-lhe isso e pedi a Griffith que fosse buscar a última carta que eu tinha recebido de uma amiga.

— Verei — pensei comigo mesma —, pelo efeito que lhe causará meu programa, a qualidade do sangue que ele tem nas veias.

Tomei o papel das mãos de Griffith, dizendo:

— Vejamos se copiei direito.

Pois estava escrita com a minha letra. Entreguei-lhe o papel, ou, se quiseres, a armadilha, e examinei-o, enquanto ele lia o seguinte:

“O homem, para me agradar, querida, deverá ser rude e orgulhoso com os homens, mas meigo com as mulheres. Seu olhar de águia saberá reprimir instantaneamente tudo o que se possa assemelhar ao ridículo. Terá um sorriso de piedade para os que pretenderem gracejar com as coisas sagradas, sobretudo as que constituem a poesia do coração e sem as quais a vida não seria mais do que uma triste realidade. Desprezo profundamente os que desejam privar-nos das fontes das ideias religiosas, tão férteis em consolações. Por isso, as crenças desse homem deverão ter a simplicidade das de uma criança, unidas à convicção inabalável de um homem de espírito que aprofundou as suas razões de crer. Seu espírito, novo, original, será sem afetação nem empáfia; não poderá dizer nada de mais, nem de deslocado; ser-lhe-ia tão impossível aborrecer os outros como aborrecer-se a si mesmo, porque terá um fundo rico em sua alma. Todos os seus pensamentos devem ser de um gênero nobre, elevado, cavalheiresco, sem nenhum egoísmo. Em todos os seus atos se deverá notar a ausência total do cálculo ou de interesse. Seus defeitos provirão da própria amplitude das suas ideias, que estarão acima do seu tempo. Em tudo devo achá-lo à frente de sua época. Cheio das delicadas atenções devidas aos seres fracos, ele será bom para todas as mulheres, mas dificilmente se apaixonará: considerará esse assunto como demasiado sério para fazer dele um brinquedo. Assim, pois, poderia atravessar a vida sem amar verdadeiramente, deixando ver em si todas as qualidades que podem inspirar uma paixão profunda. Mas, se encontrar uma vez seu ideal de mulher, a entrevista nos sonhos que se têm de olhos abertos; se encontrar um ser que o compreenda, que lhe encha a alma e ponha em toda a sua vida um raio de felicidade, que brilhe para ele como uma estrela através das nuvens deste mundo tão sombrio, tão gelado, tão frio, que dê um encanto inteiramente novo à sua existência e faça vibrarem nele cordas emudecidas até então, julgo inútil dizer que saberá reconhecer e apreciar sua felicidade. Por isso, ele fará essa mulher perfeitamente feliz. Jamais, nem por uma palavra, nem por um olhar, ele melindrará aquele coração amante que se terá entregue em suas mãos com o cego amor de uma criança que dorme nos braços da mãe; porque, se ela despertasse desse suave sonho, seu coração e sua alma ficariam para sempre despedaçados, pois lhe seria impossível embarcar sobre aquele oceano sem nele pôr todo o seu futuro.

“Esse homem terá necessariamente a fisionomia, o porte, os ademanes, enfim, a maneira de fazer as maiores como as menores coisas que têm os seres superiores que são simples e sem afetação. Poderá ser feio, mas suas mãos serão belas; terá o lábio superior ligeiramente erguido por um sorriso irônico e desdenhoso para os indiferentes; finalmente, reservará para aqueles a quem ama o raio celeste e brilhante de seu olhar cheio de alma”. 

— Senhorita — disse-me ele em espanhol e com voz profundamente comovida —, quer permitir-me que conserve isto como uma recordação sua? É esta a última lição que terei a honra de lhe dar, e a que recebo neste escrito pode tornar-se uma regra eterna de procedimento. Deixei a Espanha como fugitivo e sem dinheiro; hoje, porém, recebi de minha família uma quantia que satisfaz às minhas necessidades. Terei a honra de mandar-lhe algum espanhol pobre para substituir-me.

Parecia dizer-me: “Basta de brinquedo”. Ergueu-se com um ar de incrível dignidade e deixou-me confusa com aquela inaudita delicadeza em homem de sua categoria. Desceu e pediu para falar com meu pai. Ao jantar, meu pai disse-me sorrindo:

— Luísa, recebeste lições de espanhol de um ex-ministro do rei de Espanha e condenado à morte.

— O duque de Sória — disse eu.

— O duque! — respondeu meu pai. — Não o é mais, usa agora o título de barão de Macumer, de um feudo que lhe resta na Sardenha. Parece-me um original.

— Não macule com essa palavra, que, no senhor, comporta sempre um pouco de zombaria e de desdém, um homem da sua mesma categoria e que tem uma bela alma — disse eu.

— Baronesa de Macumer? — exclamou meu pai, olhando-me com ar trocista.

Baixei os olhos num movimento de altivez.

— Mas — disse minha mãe — Henarez deve ter-se encontrado na escadaria da entrada com o embaixador da Espanha...

— Sim — respondeu meu pai. — O embaixador perguntou-me se eu estava conspirando contra o rei, seu senhor; mas saudou o ex-grande de Espanha com muita deferência e pôs-se às suas ordens.

Isso, minha querida sra. de l’Estorade, passou-se faz quinze dias, e faz quinze dias que não vejo esse homem que me ama, porque esse homem me ama. Que faz ele? Quisera ser mosca, camundongo, pardal. Quisera poder vê-lo, sozinho em sua casa, sem que me visse. Temos um homem ao qual posso dizer: “Vá morrer por mim!...”. E ele tem caráter para fazê-lo, pelo menos eu o creio. Enfim, há em Paris um homem no qual penso, e cujo olhar me inunda interiormente de luz. Oh! É um inimigo que devo calcar aos pés. Como haveria um homem sem o qual eu não poderia viver, que me seria necessário? Tu te casas, e eu amo! Ao cabo de quatro meses aquelas duas pombinhas que voavam tão alto caíram no charco da realidade.


Domingo


Ontem, nos Italiens, senti que me olhavam, meus olhos foram magicamente atraídos por dois olhos de fogo, que brilhavam como dois rubis, num canto obscuro da orquestra. Henarez não tirou os olhos de mim. O monstro procurou o único lugar de onde me podia ver, e lá estava. Não sei o que ele é em política, mas em amor é genial.

“Voilá, belle Renée, à quel point nous en sommes,”[129] disse o grande Corneille.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[119] Gonçalvez de Córdoba: general espanhol (1445-1515), herói da Reconquista. 
[120]Cardeal Ximenez: Ximenez de Cisneros (1436-1517), arcebispo de Toledo. 

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Leia também:

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
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Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (12)
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (13)

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[127] Bossuet: Jacques Bénigne-Bossuet (1627-1704), bispo de Meaux, escritor e orador sacro, um dos clássicos da língua francesa; grande adversário dos protestantes.
[128] Talleyrand: esse famoso diplomata e estadista que habilmente serviu a todos os regimes, Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838), confraterniza aqui com as personagens fictícias de A comédia humana.
[129] Verso adaptado de outro, de Corneille: “Voilà, belle Émilie, à quel point nous en sommes” (Cina, ato I, cena III, verso 149).

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