terça-feira, 13 de dezembro de 2022

João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado (a)

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


3
O Estado


Todas as sociedades são, de alguma forma, politicamente organizadas, mesmo as mais primitivas. Ou seja, para não perdermos de vista nosso conceito de Política, em toda sociedade há mecanismos estabelecidos, através dos quais as decisões públicas são formuladas e efetivadas. Na linguagem comum, diríamos que toda sociedade tem alguma espécie de governo, embora, histórica e geograficamente, a estrutura e o funcionamento desses governos variem muito. Em relação a alguns deles, seria necessário abandonar as nossas noções preconcebidas sobre o assunto para reconhecermos sua existência, pois têm muito pouco a ver com o que chamamos hoje de governo. Mas o fato é que não se pode prescindir de um mínimo de organização política. Uma coletividade sem ela não seria humana, mas animalesca.

A constatação de que há sempre um “governo”, contudo, não basta para que pensemos adequadamente sobre a questão, pois é preciso que ampliemos nossa perspectiva, até mesmo para que compreendamos a ação do próprio governo. Talvez o caminho mais fácil seja utilizarmos um pouco de imaginação histórica. Quer dizer, vamos arquitetar situações que podem não ter ocorrido como as descreveremos, e com certeza não ocorreram mesmo, porque estaremos tendo uma visão necessariamente muito simplificada de processos históricos bastante complexos. Entretanto, não se trata de falsear a história, mas apenas de usar o recurso da esquematização para que certos aspectos do assunto sejam entendidos de modo mais fácil.

Suponhamos então uma sociedade primitiva, nos primórdios da história, que nos servirá de modelo. Chamemos esta sociedade pelo nome de “Ugh-Ugh” — um som que aprendemos, pelas histórias em quadrinhos e pelo cinema, a identificar com homens muito primitivos. Nos primeiros tempos de Ugh-Ugh, os homens não se distinguiam muito dos outros animais, pois sua tecnologia era extremamente precária. Contudo, a inteligência, o uso da palavra e das mãos e outras vantagens biológicas já marcavam Ugh-Ugh como uma coletividade muito diferente de um grupo de macacos superiores,

É justo presumir que os primeiros líderes de Ugh-Ugh eram simplesmente os mais fortes, que impunham sua vontade aos demais. Como, apesar disso, mesmo os membros mais fortes não podem enfrentar todos os membros em conjunto, o que aconteceu foi que os mais fortes trocavam seus privilégios por alguma forma de serventia para a comunidade: liderando o combate contra inimigos humanos e animais, tomando a frente em caçadas e assim por diante.

Mas, com o correr do tempo e a chegada de avanços tecnológicos, ser apenas o mais forte passou a não bastar. Por exemplo, se um ugh-ughiano de inteligência e habilidade superiores inventou a primeira arma (vamos dizer, uma lança primitiva ou um machado de pedra), é evidente que a força física já era contrabalançada por algo que a aumentava consideravelmente, além de introduzir uma noção espacial nova na experiência humana: a arma tornava o braço mais longo, fato incompreensível e intimidador para os animais selvagens e ameaçador para o próprio homem. Assim, a tecnologia teve, desde o começo, um papel muito importante. O controle da tecnologia passou a propiciar o exercício de um papel dominante nas decisões coletivas — a tecnologia se igualou ao poder. Quem tinha machado ou lança tinha poder.

De outro lado, avanços tecnológicos em outras áreas que não a de armamentos, relacionados, por exemplo, com a produção mais eficiente de alimentos e agasalhos, também introduziram grandes novidades em Ugh-Ugh. Se, no começo, os ugh-ughianos dependiam dos frutos que pudessem colher nos matos e dos animais selvagens que conseguissem capturar, sua situação era bastante precária. O misterioso poder estava mais concentrado na natureza, pois lanças, pedras e machados de pouco adiantavam contra a escassez eventual de caça ou de plantas comestíveis.

(Aqui, apenas de forma ilustrativa, pode-se muito bem imaginar o surgimento de uma religião primitiva em Ugh-Ugh. Se, num dia qualquer, o nascimento de uma rara criança loura coincidiu com uma mudança favorável nas condições de caça ou colheita, não é impossível que, desse dia em diante, as crianças louras, nascidas sob circunstâncias semelhantes, passassem a ter uma importância política considerável em Ugh-Ugh, bem como as tais circunstâncias de seu nascimento, que poderiam começar a ser reproduzidas ou imitadas artificialmente — uma espécie de fixação de ritos religiosos, cuja origem termina por se perder no tempo. Isto é uma digressão, mas é útil, pois, além do fato de que a religião sempre esteve ligada à Política, mostra também como coisas incompreensíveis na aparência podem ter tido origens perfeitamente compreensíveis.)

O início do cultivo intencional e organizado de plantas comestíveis e do pastoreio de animais são, por conseguinte, avanços importantíssimos para Ugh-Ugh. A coletividade se torna mais forte, mais apta a resistir a crises naturais, mais capaz de sobreviver e aumentar sua população, mais qualificada para fortalecer sua cultura, através da experiência dos velhos, que antes não existiam (e as tais crianças louras de que falamos podem vir a ter sua importância diminuída, ou então conservada mas agora sem sentido visível para a comunidade, simplesmente como uma tradição que adquiriu vida própria).

O poder não é só o das armas, é muito mais dos que detêm a tecnologia do cultivo e do pastoreio. Não é impossível até mesmo que Ugh-Ugh se veja obrigada a enfrentar vizinhos predatórios que, não sabendo eles mesmos criar gado ou plantar, resolvam, pela força, pilhar o patrimônio ugh-ughiano — o que, aliás, pode muito bem estar na raiz do surgimento da profissão militar que, existindo mesmo tais vizinhos, tende a assumir grande importância em Ugh-Ugh.

Por seu turno, os avanços tecnológicos vão gerar o que se costuma chamar de divisão social do trabalho. Enquanto os ugh-ughianos se limitavam a colher frutas silvestres e matar os animais que tivessem a infelicidade de encontrar um ugh-ughiano armado pela frente, o trabalho da comunidade e, provavelmente, a propriedade eram de todos, consequência mesmo da simplicidade das tarefas desempenhadas pela coletividade. Com o cultivo e o pastoreio, a divisão já começa a assinalar-se, acrescida de novos progressos tecnológicos. Por exemplo, muitas das plantas domesticadas (o trigo e o milho, para citar duas, eram em sua origem espécies rudes de grama que, por uma seleção genética aos trancos e barrancos, acabaram transformando-se no que são hoje) dependiam, para seu consumo, de preparação. É necessário não só que se colha o trigo, mas que se selecionem e se debulhem as espigas, que se faça farinha e que, ao fogo, se produza o pão.

Todas essas são novas atividades, que gradualmente se distribuirão por diversos setores da coletividade, bem como as atividades geradas pelo pastoreio, tais como o manejo do gado, a matança, o uso das peles, a preservação da carne, o aproveitamento do leite e assim por diante. Muitas atividades requererão, por assim dizer, equipes, com a tendência a se formarem grupos especiais e a se constituir alguma via — muitas vezes esotérica — para a transmissão do conhecimento especializado às novas gerações.

É importante notar que esse processo de divisão social do trabalho introduz conflitos de interesse na coletividade antes tão simples. Assim, para um agricultor, o campo será um lugar para semear; para um criador de gado, um lugar para transformar em pastagem. Quem se aproprie, para si ou para seu grupo familiar, de um pedaço de terra defendido pela força, poderá explorar o trabalho de quem não tenha conseguido terra aproveitável. Quem produzir trigo poderá trocá-lo por carne ou vice-versa, e o valor relativo desses bens, agora transformados em mercadorias, será certamente arbitrado em processo que envolverá conflitos. Assim, o interesse de cada um passa a não ser, necessariamente, como era antes, o interesse de todos.

Na verdade, há dificuldade para estabelecer qual é o interesse de toda Ugh-Ugh, pois o que convém a um de seus grupos ou subgrupos internos não convirá a outro, ou convirá menos. Acrescente-se a isso outro dado importante: a possibilidade de acumulação de excedentes, isto é, de bens em quantidade superior à indispensável para o consumo de seu produtor, o que irá marcar em profundidade o perfil socioeconômico de Ugh-Ugh, através de inúmeras consequências facilmente inferíveis, tais como a acumulação individual de riqueza e o desenvolvimento do comércio — esta última uma atividade não-produtiva incogitável na comunidade simples da antiga Ugh-Ugh e agora inescapável.

Os conflitos de interesse causam tensão. A tensão só pode ser resolvida através da solução do conflito. O ideal seria que se conseguisse implantar um sistema através do qual esses conflitos pudessem ser resolvidos de maneira harmoniosa e pacífica, através de concessões que beneficiassem todos os interessados. Mas a verdade é que os conflitos de interesse se resolvem no confronto, com a vitória do que dispõe de instrumentos mais eficazes para impor sua vontade — quaisquer que sejam eles, combinados de qualquer forma.


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João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado (a)
João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado (b)
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32


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