segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (Flusser e a Liberdade de Pensar)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER



Ensaios para uma futura filosofia da fotografia



FLUSSER E A LIBERDADE DE PENSAR
ou Flusser e uma certa geração 60.


Nasci em Praga em 1920 e meus antepassados parecem ter habitado a “Cidade Dourada” por mais de mil anos. Sou judeu e a sentença “o ano vindouro em Jerusalém” acompanhou toda a minha mocidade. Fui educado na cultura alemã e dela participo há vários anos. Embora minha passagem por Londres em 1940 tenha sido relativamente curta, ocorreu em época de vida em que a mente se forma de modo definitivo. Engajei-me, durante a maior parte da minha vida, na tentativa de sintetizar cultura brasileira, a partir de culturemas ocidentais, levantinos, africanos, indígenas e extremo-ocidentais (e isso continua a fascinar-me). Atualmente moro em Robion, sul da França, integrando-me no tecido de aldeia provençal cujas origens se perdem na bruma do passado. [1]


Este é o Flusser que conheço (e aprendi a conhecer) ao longo de espaços e tempos os mais descontínuos. Figura humana impressionante, dessas que causam impressão de matriz em nossos núcleos pessoais. Mesmo não havendo empatia, no primeiro ou nos encontros subsequentes, jamais se fica neutro.

Flusser ama o desafio, o “corpo a corpo” intelectual provocando-o mesmo, quase como a um gesto iniciático. E que venham as críticas, elogiosas ou não, tanto faz! “Um marco na cultura alemã”; “Um desrespeito filosófico, de Platão a Wittgenstein”: as duas críticas diametralmente opostas lhe foram dirigidas por ocasião de um seminário em Hamburgo sobre seu livro Para uma filosofia da fotografia [2] . Flusser relata a cena com a melhor das gargalhadas – traço personalíssimo do caráter desse autêntico homo ludens, um Macunaíma judeu-tcheco-paulistano.

Em sua última passagem por São Paulo, a convite da 18ª Bienal para proferir palestras, ouvi-o falar sobre seu tema atual: texto/imagem. As sentenças, destiladas pelo “rigor da razão-e-da-paixão” (como Flusser, poucos conseguem amalgamar), eram como chicotadas, querendo sacudir-nos da letargia a que nos condena uma época ruidosa; querendo incomodar, para que não se tenha a ilusão de não sermos responsáveis e que o pensar e repensar tudo não vale mais a pena. Mas aquelas sentenças queriam também abraçar, atrair novos e mais parceiros ao diálogo.

Flusser sempre faz pensar. E pensar dói. Pois continua o mesmo, esse nosso amigo, escritor, filósofo, engajando-se para fazer da reflexão alimento de primeira necessidade, gesto corporal do ser, prazer erótico. Não há dúvida que, para ele, o homem total é o ser pensante.


Participo da desconfiança em analogias que tendem rapidamente a se transformarem em metáforas, isto é, transferências de raciocínio adequado a um dado contexto para contexto inapropriado. No entanto, nada captaremos sem modelo. De modo que todo modelo deve, primeiro, procurar pescar o problema, e depois, procurar modificar-se, ou em certos casos, ser jogado fora. (...) O dever de gente como nós, é engajar-se contra a ideologização e em favor da dúvida diante do mundo, que, de fato, é complexo e não simplificável. Engajamento difícil, por certo, mas nem por isto, apolítico. Para nós, Polis é a elite decisória e não a tal massa. [3]


A intenção que move este relato, que se quer subjetivo, é possibilitar um testemunho humano – não mais que isso – da vívida presença entre nós, geralmente incompreendida, super-sub-estimada, deste que é, por muitos, considerado “o genuíno filósofo brasileiro”-, já que falar de sua obra é tarefa que exigiria plena desenvoltura no percurso de seu controvertido pensamento.

Se o faço, é certamente apoiada pelo afeto, mas sobretudo por um tipo de engajamento. Publicar Flusser, no Brasil, é questão de honestidade, simples reconhecimento do valor de suas reflexões. Mas falar sobre a pessoa de Flusser é, talvez, querer ir mais longe, penetrar floresta escura, já invadindo quem sabe espaço transpessoal.


Aprendi o seguinte: ao nascer fui jogado em tecido que me prendeu a pessoas. Não escolhi tal tecido. Ao viver, e sobretudo ao migrar, teci eu próprio fios que me prendem a pessoas e fiz em colaboração com tais pessoas. “Criei” amores e amizades (e ódios e antagonismos); é por tais fios que sou responsável. O patriotismo é nefasto porque assume e glorifica os fios impostos e menospreza os fios criados. Por certo: os fios impostos podem ser elaborados para se tornarem criados. Mas o que importa é isto: não sou responsável por meus laços familiais ou de vizinhança, mas por meus amigos e pela mulher que amo. 
Quanto aos fios que prendem as pessoas, tenho duas experiências opostas. Todas as pessoas às quais fui ligado em Praga morreram. Todas. Os judeus nos campos, os tchecos na resistência, os alemães em Stalingrado. As pessoas às quais fui ligado (e continuo ligado) em São Paulo, em sua maioria, continuam vivas. Embora, pois, Praga tenha sido mais “misteriosa” que São Paulo, o nó górdio cortado foi macabramente mais fácil. [4]


Quando o conhecemos – refiro-me a um grupo de jovens universitários dos anos 60, geração que cultivava um jeito de vivenciar intelectualmente a sua angustia e cuja ironia não havia ainda descambado para o deboche-, estávamos todos submersos no grande vazio que é a busca de sentido.[5] Flusser, estrangeiro no mundo, apátrida por excelência, assistia a tudo, promovendo tudo. Mas entre o seu engajamento na cultura brasileira e o nosso destacar-se do pano de fundo habitual-nativo, uma sutil dialética se estabelecerá.

Nós os migrantes, somos janelas através das quais os nativos podem ver o mundo. Seria ele, para nós, esta janela?

Mistério mais profundo que o da pátria geográfica é o que cerca o outro. A pátria do apátrida é o outro.
Seríamos nós, para ele, esta pátria?


Nós, jovens daquela geração niilista, vivenciávamos a saga de uma época em que, após ter aplaudido o célebre protesto de estudantes na Europa, nada passava mais a ter significado. Os anos 60, se de um lado traziam marcas como a rebeldia dos Beatles, a revelação do sexo, e a partir daí, o culto ao amor livre do movimento hippie e a escalada social do bissexualismo; o fracasso da potência americana no Vietnã, onde a inteligência venceu as armas, num combate que utilizou cobras, abelhas e bambus; toda uma poesia desordenada e todo um desencanto às coisas e aos valores estabelecidos, por um lado, deixou farrapos de um derradeiro “romantismo”: desejo da mão jovem querendo reconstruir o mundo e impedida pelos velhos (como sempre foi); o olhar do mundo culto e politizado para o primeiro movimento de objetivos definidos na América, ao som do slogan “cubanos si, yankees no”; a resposta de uma “geração triste” que começava a se redimir pela música e a poesia (“Tropicália” e os “Novíssimos”, apenas para citar alguns).

No campo da Filosofia, Sartre, Camus e demais existencialistas marcavam a juventude intelectual brasileira, embora a grande maioria não tivesse acesso a tudo isso. O escritor Jorge Medauar é quem diz: “O Brasil não tem linha filosófica definida porque não tem pensadores”.

Nosso grupo, porém, era privilegiado: frequentávamos a casa de Flusser. Lá se canalizavam os turbilhões, ventos e brisas do mundo filosófico, em tertúlias que se alongavam por sábados e domingos, e quantas vezes não éramos surpreendidos por Guimarães Rosa, Samson Flexor, Vicente Ferreira da Silva!

Flusser foi se revelando professor, cercado por aqueles moços e moças, de modo doméstico e peripatético (embora sempre sentado em sua cadeira no jardim-de-inverno, nos fundos daquela casa, no Jardim América) envolto às fumaças de seu cachimbo inseparável. Não há como apagar os primeiros passos na filosofia ensinada, transmitida assim... Paideia construída pelo con-viver, em chão de concretude, por um “modelo” vivo de existência. Tudo isso plasmou as nossas mentes, interagindo hoje na circunstância em que vivemos.

Caso clássico de influência poderosa de patriarca intelectual – não faltará quem o diga. Alguns, não suportando o peso de tamanha in-formação, hoje o renegam e se refugiam nos cantos matreiros do inconsciente, omitindo-se ao confronto. Não lembraria Flusser, em certo aspecto, a personalidade de Freud? Como ele – subversivo, judeu, emigrado – também não foi aceito pelo establishment acadêmico, criando afetos, desafetos e uma fieira de pupilos dolorosamente estigmatizados.

Ao longo dos trinta e um anos em que viveu na circunstancialidade brasileira, Flusser desenvolveu seu modo de pensar com um vigor e originalidade que cunham um de seus traços inconfundíveis – o que lhe valeu imagem mitificada, e até certo ponto, desconcertante para certos eruditos, que, tantas vezes, com ele se digladiaram.

Como Nietzsche, Kierkegaard e tantos outros, Flusser não se propôs a construir um sistema filosófico. Seu pensamento é um fluir generoso que se vai tecendo fora de velhas ou modernas malhas, dentro da urdidura fundante que é a linguagem – “morada do ser”, como a nomeia Heidegger. Seu mergulho nas correntes da Fenomenologia levou-o à Filosofia da Linguagem, seu campo predileto, ao qual dedicou vários ensaios, livros e cursos. Chegou até a criar uma coluna em jornal (“Posto Zero” na Folha de São Paulo, de 1969 a 1971), onde fazia uma espécie de análise fenomenológica do cotidiano brasileiro.

Quando escreve, e o faz como quem respira o ar fresco das manhãs, Flusser traduz e retraduz o mesmo texto para as línguas que domina: alemão, inglês, português, francês.


Sinto-me abrigado por, pelo menos, quatro línguas, e isto se reflete no meu trabalho, uma das razões pelas quais me interesso pelos fenômenos da comunicação humana. Reflito sobre os abismos que separam os homens e as pontes que atravessam tais abismos, porque flutuo, eu próprio, por cima deles. De modo que a transcendência das pátrias é minha vivência concreta, meu trabalho cotidiano e o tema das reflexões às quais me dedico. [6]


Max Planck, em sua biografia, diz que para haver uma ideia original são necessárias duas condições: que o “criador” esteja livre e que morra toda uma geração, porque apenas a seguinte poderá compreendê-la. Os contemporâneos estão comprometidos e escravizados, por isso se assustam com o novo. Eis, numa palavra, o pecado de Flusser: pensar o novo e, para tanto, estar livre. Qualquer pessoa que entra em contato com suas ideias percebe o quão ligadas estão ligadas com o que acontece à sua volta. Não se pode delimitar as bases de seu pensamento, porque ele está constantemente correlacionado a fatos, não importa de que natureza. A aguda capacidade de observar o mundo e captar a atualidade, filtrando a ambos pelos conceitos clássicos e construindo os seus próprios conceitos, tornam Vilém Flusser o pensador para a época “pós-histórica” que atravessamos.

É precisamente a consonância entre observação dos fatos e sua resultante reflexão que nos dá a sensação do verdadeiro. Mas, para que tal sensação conduza à verdade, o que ainda nos falta?

Aqui transcrevo pergunta feita ao psicanalista Isaías Kirschbaum, que após driblar com mestria: la reponse est la mort de la question...(que analista, afinal, não tem necessariamente de ser filósofo...) assim respondeu: “Consenso é que dá cunho de verdade”.

Daí, minha indagação: teria sido o meio cultural brasileiro – e o paulistano em particular – propício à formação de um consenso ao pensamento flusseriano, consenso que, por sua vez, teria de ser o fruto maduro de exercícios de crítica responsável e consciente por parte da comunidade pensante?


Migrar é situação criativa, mas dolorosa. Toda uma literatura trata da relação entre criatividade e sofrimento. Quem abandona a pátria (por necessidade ou decisão, e as duas são dificilmente separáveis), sofre. Porque mil fios o ligam à pátria, e quando estes são amputados, é como se intervenção cirúrgica tenha sido operada. Quando fui expulso de Praga (ou quando tomei a decisão corajosa de fugir), vivenciei o colapso do universo. É que confundi o meu intimo com o espaço lá fora. Sofri as dores dos fios amputados. Mas depois, na Londres dos primeiros anos da guerra, e com a premonição do horror dos campos, comecei a me dar conta de que tais dores não eram as de operação cirúrgica, mas de parto. Dei-me conta de que os fios cortados me tinham alimentado, e que estava sendo projetado para a liberdade. Fui tomado pela vertigem da liberdade, a qual se manifesta pela inversão da pergunta “livre de quê” em “livre para fazer o quê”. E assim somos todos os migrantes: seres tomados de vertigem. [7]


Sei que Vilém Flusser tem algo a nos dizer. Algo para nos inquietar. Este livro, que ora publicamos, é apenas o começo. Sejamos livres para ouvi-lo. E exerçamos com liberdade o direito de pensar.


Maria Lilia Leão

Apoio à edição brasileira
Fred Jordan
José Bueno
José Longman
Maria Lilia Leão
Milton Vargas
Rodolfo Geiser.



fim

___________________

1. Trecho de conferência, “Apátridas e Patriotas”, proferida por V. Flusser no II Seminário Internacional “Kornhaus”, Weiler, 1985.
2. Filosofia da Caixa Preta, na Ed. Brasileira, 1985.
3. Carta de V. Flusser, 1983.
4. Op. cit. in (1).
5. Op. cit. in (1).
6. Op. cit. in (1)
7. Op. cit. in (1)
___________________
SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




_____________

Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (Flusser e a Liberdade de Pensar)

____________________

pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.


Nenhum comentário:

Postar um comentário