sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Moby Dick: 11 - Camisola

Moby Dick



Herman Melville




11 - CAMISOLA

Ficamos assim deitados na cama, conversando e cochilando de pouco em pouco, e de vez em quando Queequeg jogava suas pernas morenas e tatuadas com carinho sobre as minhas, tirando-as em seguida; havia total liberdade entre a gente, éramos tranquilos e confidentes; por fim, como consequência das nossas confabulações, perdemos o pouco sono que nos restava e sentimos vontade de nos levantar de novo, embora a alvorada ainda estivesse muito distante no futuro. 

Sim, ficamos bem despertos; tanto que a posição recostada começou a se tornar cansativa, e pouco a pouco fomos nos sentando; as cobertas bem aconchegantes em torno de nós, encostados na cabeceira da cama, nossos quatro joelhos erguidos um bem ao lado do outro, e nossos dois narizes sobre eles, como se nossas patelas fossem panelas. Sentíamo-nos muito bem e protegidos, ainda mais porque estava tão frio lá fora; na verdade até fora das cobertas também, já que não havia lareira no quarto. Ainda mais, digo, porque para se desfrutar de fato do calor do corpo é preciso que uma pequena parte sua ainda esteja fria, pois não há qualidade neste mundo que não o seja por contraste. Nada existe em si mesmo. Quando você se gaba de se sentir bem confortável e fica assim por um longo tempo, então já não se pode mais dizer que você continua confortável do mesmo modo. Porém, se, como no caso de Queequeg e eu na cama, se a ponta de seu nariz ou o topo de sua cabeça está um pouquinho frio, então na percepção geral você sente o mais delicioso e inequívoco calor. Por essa razão, um quarto de dormir nunca deveria ter lareira, o que é um dos desconfortos luxuosos do rico. Porque o apogeu desta espécie de delícia é não ter nada além do cobertor entre você e seu corpo abrigado e o frio do ar externo. Então ali você se deita como a única centelha de calor no coração de um cristal ártico. 

Ficamos nessa posição encolhida por algum tempo, quando de repente achei que devia abrir os olhos; porque quando estou debaixo dos lençóis, seja de dia ou de noite, dormindo ou acordado, costumo sempre ficar de olhos fechados para melhor me concentrar no conforto de estar na cama. Porque homem nenhum pode sentir plenamente sua própria identidade se não estiver de olhos fechados; como se a escuridão fosse mesmo o elemento apropriado das nossas essências, ainda que a luz seja mais propícia ao barro de nossa natureza. Ao abrir os olhos, então, deixando as aprazíveis trevas de minha criação pela brutal escuridão imposta por uma meia-noite mal iluminada, experimentei uma repulsa desagradável. Também não fiz nenhuma objeção quando Queequeg sugeriu que acendêssemos a luz, visto estarmos tão bem acordados; além disso, ele estava com um desejo muito forte de dar umas poucas e calmas baforadas em seu cachimbo. Veja como, embora eu tivesse sentido repugnância por ele fumar na cama na noite anterior, nossos rígidos preconceitos se tornam elásticos quando o amor vem dobrá-los. Pois agora não havia nada que me agradasse mais do que Queequeg fumando ao meu lado, até na cama, porque ele o fazia pleno de uma serena alegria doméstica. Não me sentia mais indevidamente preocupado com a apólice de seguro do proprietário. Sentia apenas alegria com o conforto condensado e confidencial de dividir um cachimbo e um cobertor com um amigo de verdade. Com os nossos casacos felpudos sobre os ombros, passávamos o cachimbo um para o outro até que se formou sobre nós uma nuvem de fumaça azul, iluminada pela chama do candeeiro recém-aceso. 

Se foi esse baldaquino de fumaça que levou o selvagem para lugares distantes, não sei, mas ele agora falava de sua ilha natal; e, ansioso por ouvir sua história, pedi-lhe que continuasse contando. Ele concordou de boa vontade. Ainda que na ocasião eu entendesse algumas poucas palavras, relatos posteriores, quando eu já estava familiarizado com sua fraseologia estropiada, me habilitaram a apresentar a história inteira, como no mero esqueleto que ofereço.


Continua na página 65...

Moby Dick: 11 - Camisola
Moby Dick: 12 - Biográfico
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com o quê se identifica?

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