segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (e) ... Talvez o leitor se surpreenda

Capítulo 6


continuando...



Talvez o leitor se surpreenda que Orlando tenha se afastado um pouco demais do momento presente, ao vê-la agora se preparando para entrar no carro, com os olhos cheios de lágrimas e de visões das montanhas persas. E de fato não se pode negar que os mais bem-sucedidos praticantes da arte de viver, frequentemente pessoas desconhecidas, inventam alguma forma de sincronizar os sessenta ou setenta tempos diferentes que batem simultaneamente em todo o sistema humano normal, de maneira que, quando soam 11 horas, todo resto o ressoa em uníssono, e o presente não é nem uma violenta interrupção nem um completo esquecimento do passado. Deles podemos apenas dizer que vivem precisamente os 68 ou 72 anos consignados em seus túmulos. Do resto, alguns sabemos estarem mortos, embora andem entre nós; alguns ainda não nasceram, embora assumam outras formas de vida; outros têm centenas de anos de idade, embora confessem apenas 36. A verdadeira extensão da vida de uma pessoa, diga o que disser o Dicionário Biográfico Nacional, é sempre matéria discutível. Pois esse registro de tempo é tarefa difícil; nada o desordena mais rapidamente do que o contato com qualquer das artes; e foi talvez pelo seu amor à poesia que Orlando perdeu a lista de compras e voltou para casa sem as sardinhas, os sais de banho e as botas. Agora que estava com a mão na porta do carro, o presente golpeou-lhe de novo a cabeça. Agrediu-a violentamente 11 vezes. 

Com os diabos! — gritou, pois ouvir o relógio bater é um grande choque para o sistema nervoso —, tanto que por algum tempo não há nada a dizer sobre ela, exceto que franziu um pouco a testa, fez admiravelmente as mudanças de marcha e gritou como antes: “Olhem para onde vão! Não sabem o que querem? Então por que não dizem?”, enquanto o carro arrancava, movia-se, abria caminho, deslizava — pois ela era exímia motorista — por Regent Street, Haymarket, Northumberland Avenue, Westminster Bridge, à esquerda, em frente, à direita, em frente outra vez... 

A Old Kent Road estava muito cheia de gente, na quinta-feira, 11 de outubro de 1928. O povo transbordava da calçada. Havia mulheres com sacolas de compras. Crianças corriam. Havia liquidações nas lojas de tecidos. As ruas alargavam e estreitavam. Longas perspectivas se encolhiam uniformemente. Aqui era um mercado. Aqui um funeral. Aqui uma procissão, com estandartes onde estava escrito “Ra-Uh”, e que mais? A carne era muito vermelha. Os açougueiros ficavam à porta. As mulheres estavam com os saltos dos sapatos quase cortados. “Amor Vin” — lia-se sobre um pórtico. Uma mulher olhava da janela de um quarto de dormir, profundamente contemplativa e muito quieta. Applejohn e Applebed, Undert... não se podia ver nada inteiro nem ler do princípio ao fim. O que se via começar — como dois amigos atravessando a rua para se encontrarem — não se via terminar. Depois de vinte minutos o corpo e a mente eram como pedaços de papel rasgado caindo de um saco, e, na verdade, o processo de dirigir depressa por Londres afora se assemelha tanto ao ato de cortar a identidade em pequenos pedaços — o que precede a inconsciência e talvez a própria morte — que não se sabe como afirmar que Orlando tenha existido no momento presente. Na verdade, poderíamos considerá-la uma pessoa inteiramente dissociada se não acontecesse finalmente, de uma tela verde ser estendida à direita, contra a qual os pedacinhos de papel caíam mais vagarosamente; e depois outra ser estendida à esquerda, de forma que se podia ver os pedaços separados agora girando sozinhos no ar; e então telas verdes foram estendidas continuamente de cada lado, de modo que sua mente readquiriu a ilusão de prender as coisas dentro de si e ela viu um chalé, um pátio de fazenda e quatro vacas, tudo precisamente em tamanho natural. 

Quando isso aconteceu, Orlando deu um suspiro de alívio, acendeu um cigarro e deu uma baforada por um ou dois minutos em silêncio. Então chamou hesitantemente — como se a pessoa que ela procurasse pudesse não estar ali: “Orlando”? Pois se há (por acaso) 76 tempos diferentes, todos pulsando de uma vez na mente, quantas pessoas diferentes não haverá — Deus nos ajude —, todas morando num tempo ou noutro no espírito humano? Alguns dizem que há 2.052. De modo que é a coisa mais comum do mundo uma pessoa chamar, quando está sozinha, Orlando? (se este for o nome), querendo dizer com isso vem, vem! estou mortalmente cansada deste eu. Preciso de um outro. Daí as surpreendentes mudanças que vemos em nossos amigos. Mas isso também não é muito fácil, pois, embora se possa dizer, como Orlando disse (estando no campo e precisando provavelmente de outro eu), Orlando? ainda assim o Orlando de que ela precisa pode não vir; esses eus de que somos construídos, sobrepostos um ao outro como pratos empilhados na mão de um garçom, têm ligações em outros lugares, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, chamem o que quiserem (pois muitas dessas coisas não têm nome), de forma que um só virá se estiver chovendo, outro se for num quarto com cortinas verdes, outro quando a sra. Jones não estiver, outro se puder prometer um copo de vinho, e assim por diante; pois cada pessoa pode multiplicar a partir da própria experiência as diferentes condições impostas pelos seus diferentes eus — e algumas são tão ridículas que não podem ser impressas. 

Assim, Orlando passando pelo celeiro chamou “Orlando?” com uma nota de interrogação na voz e esperou. Orlando não veio. 

— Então tudo bem — disse Orlando com o bom humor que as pessoas possuem nessas ocasiões; e tentou outro. Pois ela possuía uma grande variedade de eus para chamar, muito mais do que temos espaço para oferecer, de vez que uma biografia é considerada completa se simplesmente dá conta de seis ou sete eus, embora uma pessoa possa ter muitos milhares deles. Escolhendo, pois, apenas aqueles eus que já incluímos, Orlando podia agora chamar pelo menino que golpeou a cabeça do negro; o menino que a pendurou de novo; o menino que sentava na colina; o menino que viu o poeta; o menino que ofereceu a tigela de água de rosas à rainha; ou podia ter chamado o jovem que se apaixonou por Sasha; ou pelo cortesão; ou pelo embaixador; ou pelo soldado; ou pelo viajante; ou podia ter apelado para a mulher; a cigana; a grande dama; a eremita; a moça apaixonada pela vida; a protetora das letras; a mulher que chamava Mar (querendo dizer banhos quentes e fogos noturnos) ou Shelmerdine (significando açafrões nos bosques de outono) ou Bonthrop (significando a morte que morremos diariamente) ou todos os três juntos — o que significa muito mais coisas do que o espaço de que dispomos — todos eram diferentes, e ela podia ter chamado qualquer um deles. 

Talvez; mas o que parece certo (pois agora estamos na região do “talvez” e do “parece”) é que o eu de que ela mais precisava se mantinha a distância, pois ela ia mudando seus eus tão rapidamente quanto dirigia, a julgar pelo que se ouvia, e havia um novo eu em cada esquina — como acontece quando por alguma razão inconfessável o eu consciente, que é o mais importante e tem o poder de desejar, não deseja ser mais nada senão um único eu. Isto é o que alguns chamam de o verdadeiro eu e é, dizem, a união de todos os outros eus que existem em nós, comandados e aprisionados pelo eu-capitão, o eu-chave, que amalgama e controla todos os outros. Orlando estava certamente procurando esse eu, como o leitor pode julgar ouvindo sua conversa enquanto dirigia (e se é uma conversa incoerente, sem sentido, banal, insípida e às vezes ininteligível, é culpa do leitor, por prestar atenção à conversa de uma senhora falando consigo mesma; nós apenas copiamos as palavras como são faladas, acrescentando entre parênteses o eu que em nossa opinião está falando, mas bem podemos estar errados). 

— O quê, então? Quem, então? — disse ela. — Trinta e seis anos; num carro; uma mulher. Sim, mas um milhão de outras coisas mais. Serei uma esnobe? A jarreteira no vestíbulo? Os leopardos? Meus antepassados? Orgulhosa deles? Sim! Gananciosa, voluptuosa, depravada? Serei? (aqui entrou um novo eu). Não me importo nem um pouco se for. Sincera? Acho que sim. Generosa? Oh, mas isso não conta (aqui um novo eu entrou). Ficar na cama a manhã inteira em lençóis de linho ouvindo os pombos; baixela de prata; vinho; empregadas; lacaios. Mimada? Talvez. Coisas demais para nada. Daí meus livros (aqui mencionou cinquenta títulos clássicos que representavam, pensamos, as primeiras obras românticas que havia rasgado). Fácil, volúvel, romântica? Mas (aqui entrou um outro eu) desajeitada e desastrada. Mais sem jeito não podia ser. E... e... (aqui hesitou sobre uma palavra, e se sugerirmos “amor” podemos estar errados, mas certamente ela riu e corou e depois gritou) um sapo de esmeraldas! Harry, o arquiduque! Varejeiras azuis no teto! (aqui entrou um outro eu). Mas Nell, Kit, Sasha? (mergulhou em tristeza: realmente, lágrimas se formaram, e havia tempos que ela não chorava). Árvores, disse ela. (Aqui entrou um novo eu.) Eu amo as árvores (ela estava passando por um arvoredo) que crescem ali há milhares de anos. E celeiros (passava por um celeiro em ruínas na beira da estrada). E cães pastores (aqui um atravessou a estrada correndo. Ela cuidadosamente o evitou). E a noite. Mas pessoas (aqui entrou um outro eu). Pessoas? (Repetiu como se fosse uma pergunta.) Não sei. Faladoras, maliciosas, sempre dizendo mentiras. (Aqui dobrou na rua principal de sua cidade natal, que estava cheia — porque era dia de feira — de fazendeiros, pastores e velhas com galinhas em cestas.) Gosto de camponeses. Entendo de colheitas. Mas (aqui um outro eu saltou para o topo de sua mente, como o facho de um farol). Fama! (Riu-se.) Fama! Sete edições. Um prêmio. Fotografias nos vespertinos (aqui referia-se a “O Carvalho” e ao prêmio de Burdett Coutts, que ganhara; e aqui aproveitamos o espaço para observar como é desconcertante para o seu biógrafo que este clímax a que todo livro conduz, esta peroração com a qual o livro ia acabar seja frustrada por uma gargalhada casual como esta; mas a verdade é que, quando escrevemos sobre uma mulher, tudo fica fora de lugar — clímax e perorações; o acento não cai nunca onde costuma cair com um homem). Fama!, repetiu. Um poeta — um charlatão; ambos todas as manhãs tão regularmente quanto o correio. Jantar, encontrar-se; encontrar-se, jantar; fama ... fama! (Aqui teve que diminuir a marcha para passar por entre a multidão da feira. Mas ninguém reparou nela. Um porco-do-mar na banca de um peixeiro atraía mais atenção do que uma senhora que ganhou um prêmio e que poderia, se quisesse, usar na cabeça três diademas superpostos.) Dirigindo bem devagar agora, sussurrava como que uma parte de uma velha canção “com os meus guinéus comprarei árvores floridas, árvores floridas, árvores floridas, e caminhareis entre as minhas árvores floridas e contarei aos meus filhos o que é a fama na vida”. Assim sussurrava, e agora todas as suas palavras começaram a vergar aqui e ali, como um colar selvagem de contas pesadas. “E caminharei entre as minhas árvores floridas”, cantou, acentuando fortemente as palavras “e verei a lua devagar subir e o vagão partir...” Aqui parou de repente e olhou para a capota do carro, em profunda meditação. 

“Ele sentou-se à mesa de Twitchett”, refletiu, “com uma gola suja... Seria o velho sr. Baker que vinha medir a madeira? Ou seria Sh-p-re?” (porque, quando falamos em nomes que reverenciamos profundamente, nunca os dizemos por inteiro). Olhou fixamente para a frente durante dez minutos, deixando o carro quase parado. “Assombração!”, gritou, pressionando repentinamente o acelerador. “Assombração! Desde que eu era criança. Lá vai voando o ganso selvagem. Passa pela janela rumo ao mar. Dei um pulo (agarrou com força o volante) e depois me estiquei. Mas o ganso voa muito rápido. Eu o vi aqui — lá — além — na Inglaterra, na Pérsia, na Itália. Sempre voa rápido para o mar e sempre lhe atiro palavras como redes (aqui pôs a mão para fora) que se encolhem como as redes que tenho visto encolhidas no convés, apenas com algas dentro; e às vezes há uma polegada de prata — seis palavras — no fundo da rede. Mas nunca um peixe grande, que vive nos bosques de coral.” Aqui baixou a cabeça, em profunda reflexão. 

E foi neste momento, quando deixou de chamar “Orlando” e estava em profundos pensamentos a respeito de outra coisa, que o Orlando que chamara apareceu por conta própria; como se pode provar pela transformação que aconteceu nela (tinha passado os portões da propriedade e estava entrando no parque). 

Toda ela escureceu e se firmou, como quando se acrescenta um contraste para dar relevo e solidez a uma superfície, e o raso se torna profundo, e o perto, distante; e tudo isso é contido como a água é contida pelas paredes de um poço. Assim ela estava agora escura, tranquila, e se transformou — com o acréscimo deste Orlando — naquilo que é chamado, correta ou erroneamente, de um único eu, um autêntico eu. E ficou em silêncio. Pois é provável que, quando as pessoas falam alto, os eus (dos quais pode haver mais de dois mil) tenham consciência de sua divisão e procurem se comunicar, mas, quando a comunicação é estabelecida, ficam em silêncio. 



continua na página 122...

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