segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (12.b) - E, escadas abaixo, o general continuava a lastimar

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


12.

continuando...

E, escadas abaixo, o general continuava a lastimar, com a mesma veemência, não os ter encontrado, principalmente pelo que o príncipe perdera em não travar relações com gente agradabilíssima. 

- E deixe que lhe diga, meu caro: tenho um pouco de poeta, na alma! Já tinha percebido isso? Bravos! Mas... que diabo! Estou em crer que fomos ter a um apartamento errado - concluiu inesperadamente. - Os Sokolóvitch... é verdade.., não moram aqui! E até me parece que estão, atualmente, em Moscou. Sim, enganei-me. Mas, não faz mal. 

- Há uma coisa que quero saber - observou o príncipe muito desconsolado -, devo eu desistir de contar com o senhor? Não seria melhor eu ir sozinho? 

- Desistir? Contar? Sozinho? Mas por que e para que isso, quando para mim se trata de uma empresa vital, de que depende tanto o futuro de minha família?! Não, meu jovem amigo, o senhor não conhece o General Ívolguin. Dizer “Ívolguin” corresponde a dizer “um penhasco”. Eis o que costumavam dizer no esquadrão quando estreei no serviço. “Podes construir sobre Ívolguin como sobre uma rocha”. Atrasaremos nossa ida apenas por um minuto, detendo-nos um pouco na casa onde a minha alma, desde muito, encontra consolo depois das ansiedades e das provações. 

- O senhor pensa voltar para a sua casa? 

- Não! Quero mais é ir ver á Sra. Tieriéntieva, viúva do Capitão Tieriéntiev, meu antigo subordinado que também foi meu amigo. Em casa da Sra. Tieriéntieva encontro refrigério para o meu espírito! E é para onde levo os meus cuidados de todos os dias e todas as minhas angústias domésticas. E, como hoje estou vergado ao peso moral de atribuições pesadíssimas, é claro que... 

- Pesa-me ter sido tão pavorosamente estúpido, a ponto de incomodar o senhor, esta noite - redarguiu o príncipe. - Além disso, o senhor está em um estado que... Sabe de uma coisa, adeus!... 

- Mas não consinto. Deveras, não permito que o meu jovem amigo se vá - exigiu o general. - É uma pobre viúva, e mãe de família! E como sabe arrancar do ímo do coração os acordes que como nenhuns outros, ressoam dentro do meu ser! Visitá-la é questão de menos de cinco minutos. Não faço cerimônia nenhuma quase que vivo lá. Preciso lavar-me, fazer um pouco a toilete. Depois, imediatamente partiremos para o Grande Teatro. Pois não está vendo que preciso do senhor a noite toda? É aqui, nesta casa. Eis-nos chegados. Olá, Kólia, já estás aqui? Márfa Boríssovna está? Ou também estás chegando como nós?

 - Oh! Não - respondeu Kólia, que se encontrara com eles no portão de entrada. - Estive um bocadinho, com Ippolít. Está pior, esteve de cama, desde manhã. Fui até ali, buscar um baralho em uma loja. Márfa Boríssovna está à sua espera. Mas, há uma coisa, papai: o estado em que o senhor se encontra! 

Kólia calou-se logo, ficando a reparar na maneira em que o pai estava. E resolveu acompanhá-lo. 

- Bem, entre, venha! 

O encontro com Kólia induziu o príncipe a acompanhar por uns minutos o general até aos cômodos para onde já subiam. O príncipe precisava de Kólia. Resolvera desistir do general, fosse como fosse, e não havia meios de se perdoar ter confiado nele. Levaram muito tempo para subir até ao quarto pavimento, e isso mesmo pelas escadas dos fundos. 

- O senhor quer apresentar o príncipe, não é mesmo? 

- Sim, meu querido, quero apresentá-lo. O General Ívolguin e o Príncipe Míchkin! Mas, e lá por dentro? Como está Márfa Boríssovna? 

- Para lhe falar com franqueza, e já que me pergunta, seria melhor o senhor não ir lá. Ela vai pô-lo em apuros. Há três dias que o senhor não dá sinal de si! Está cansada de esperar pelo dinheiro. Para que foi o senhor prometer dinheiro? O senhor não se emenda! Agora, arranje-se! 

Pararam, já no quarto andar, diante de uma porta baixa. O general estava evidentemente atemorizado e empurrou o príncipe para a sua frente. 

- Fico aqui atrás - murmurou. - Quero pregar-lhe um susto! 

Kólia entrou logo. A tal surpresa do general negou fogo, pois uma mulher espiou para fora da porta. Estava exageradamente pintada, com muito carmim, usava chinelas, uma blusa de lã e tinha o cabelo enrolado em trancinhas. Era uma quarentona. Logo que descobriu, gritou:

 - Chegou o homem vil e malicioso! Bem que o meu coração suspeitou que era ele! 

- Vamos entrando. Não há nada.. balbuciou o general tentando rir, muito sem jeito. 

Mas como é que não havia nada? Com dificuldade conseguiram atravessar uma passagem, para uma saleta escura e abobadada, mobiliada com meia dúzia de cadeiras de junco e com duas mesas de jogo. E logo a dona da casa voltou à carga, em um tom frenético, descompondo-o como de hábito. 

- Você não tem vergonha? Você não tem vergonha, seu selvagem? Tirano da minha família, seu monstro!? Você me roubou tudo! Você me sugou, até eu ficar seca, e ainda não está contente, seu vampiro! Já não aguento mais! Seu descarado, sem brio! 

- Márfa Boríssovna, Márfa Boríssovna! Este é o Príncipe Míchkin. O General Ívolguin e o Príncipe Míchkin! - disse, mas já sem solenidade, o general, trêmulo e desenxabido. 

- Acredita o senhor - a viúva do capitão voltava-se agora para o príncipe -, acredita o senhor que este descarado não poupou nem os meus filhos órfãos? Roubou-nos tudo. Carregou com tudo! Vendeu e empenhou tudo, e nos deixou sem nada! Que é que eu vou fazer com as suas promissórias, homem sem escrúpulos e manhoso calculista? Responda, ande, impostor! Vamos, ande, responda, monstro insaciável! Como é que vou nutrir os meus filhos órfãos? E ainda por cúmulo me chega aqui bêbado desta maneira, que nem se aguenta nas pernas!... Que fiz eu para chamar a ira de Deus sobre mim? Responda, ande, vil e nojento hipocrita! 

Mas o general não estava adequado à situação. 

- Márfa Boríssovna, aqui estão vinte e cinco rublos..., foi tudo quanto pude arranjar, graças à generosidade de um nobre amigo. Príncipe, enganei-me, cruelmente. Assim.., é a vida. Mas agora vai me desculpar. Estou frouxo! - disse o general, cambaleando pela sala, em todas as direções. - Estou mole... bambo... frouxo.. Desculpe, sim? Liénotchka, um travesseiro, linda criança!... 

Liénotchka, uma criança de oito anos, correu logo a buscar um travesseiro e o veio ajeitar no duro sofá que um encerado rasgado cobria. O general sentou- se, pretendeu dizer algumas coisas mais: nisto, sentindo o sofá, estirou-se, virou para a parede e instantaneamente caiu no sono profundo dos justos. Márfa Boríssovna, com uma cerimônia lúgubre, avançou uma cadeira para perto de uma das mesas de jogo e a indicou ao príncipe. Sentou-se, por sua vez, voltada para ele, e ficou calada. Três crianças, um garoto e duas meninas, das quais Liénotchka era a maiorzinha, agruparam-se em redor da mesa, puseram os cotovelinhos em cima e ficaram a encarar o príncipe. Kólia apareceu vindo do quarto contíguo.

- Estou muito contente em encontrar você aqui, Kólia - disse-lhe o príncipe. - Quem sabe se você me poderia ajudar? Tenho de ir à casa de Nastássia Filíppovna. Pedi a Ardalión Aleksándrovitch para me levar até lá; mas você está vendo, seu pai adormeceu. Quereria você me levar até lá? Não conheço as ruas, nem sei o caminho. Só me lembro do endereço: Edifício Mitóvtsov, perto do Grande Teatro. 

- Mas Nastássia Filíppovna nunca morou ao lado do Grande Teatro, e nem nunca papai esteve em casa dela, pode ficar sabendo desde já. É engraçado que tivesse contado com ele para qualquer coisa. Ela mora perto da Rua Vladímirskaia, nas Cinco Esquinas. É pertinho daqui. Se quiser, eu o levo até lá e mostro onde é. 

O príncipe e Kólia saíram imediatamente. 
O príncipe (ai dele!) não tinha com que pagar uma caleça. Tiveram de ir a pé. 

- Quis apresentar Ippolít ao senhor - disse Kólia. - É o filho mais velho da viúva. Estava na outra sala. É doente. Passou de cama o dia inteiro. Mas é tão original! Melindra-se à toa, e calculo como não estava envergonhado do senhor ter chegado em um momento como aquele... Eu não tenho de que me envergonhar, porque afinal de contas se trata de meu pai. Mas... é a mãe dele! E isso é diferente; em uma coisa assim, não há nenhuma desonra para o sexo masculino. Mas, talvez, isso não passe de um preconceito. Por que há de um sexo ser mais privilegiado do que o outro, em tais casos? Ippolít é um esplêndido camarada, mas se escraviza ainda a preconceitos! 

- Você quis dizer, ainda há pouco, que ele é tísico?

 - É sim. E, a meu ver, a melhor coisa, para ele, seria morrer logo. Se eu estivesse no lugar dele, desejaria, na certa, estar morto. Ele tem pena do irmão e das irmãzinhas, aquelas que o senhor viu. Se fosse possível, se ao menos tivéssemos dinheiro, eu e ele tomaríamos um pequenino aposento, juntos, e largávamos nossas famílias. É o nosso sonho. E o senhor quer saber? Quando, ainda agora. contei a ele o que tinha acontecido ao senhor, ele ficou possesso, e disse que um homem, que recebe uma bofetada, e não se bate logo a seguir, em duelo, é um desbriado. Como vê, ele é genioso. Pavorosamente. Até já desisti de argumentar com ele. Com que então Nastássia Filíppovna também convidou o senhor!? 

- Aí é que está! Não me convidou.

 - Então, como é que vai lá? - perguntou Kólia, parando logo no meio da calçada. - E com essa roupa! O senhor não sabe que é uma reunião noturna? 

- Deus sabe como é que irei lá. Se me deixarem entrar, ainda bem. Se não deixarem, que hei de fazer? E, quanto à roupa, que remédio? 

- O senhor pensa em ir, por que? Ou vai somente pourpasser le temps em roda distinta? 

- Não, nem por isso. Isto é... vou com um fim. É difícil explicar, mas... 

- Está bem. Isso não é comigo. O que me inquieta é saber se o senhor não se está apenas convidando para uma reunião em uma fascinante sociedade de cocotes, generais e agiotas! Porque se fosse somente para isso, o príncipe vai me desculpar, mas eu me riria do senhor e não lhe daria mais a menor atenção. Gente honesta já por si mesma é terrivelmente rara. Além disso, não há mais ninguém que se possa respeitar. Não adianta querer uma pessoa topar com gente que faz questão de ser respeitada. É o caso de Vária, por exemplo! E já reparou, príncipe, que hoje em dia está tudo cheio de aventureiros? E de modo particular entre nós, na Rússia, na nossa querida terra? Como foi que tudo isso ficou assim é que não posso compreender. Os alicerces pareciam tão firmes! E, todavia, que vemos nós, agora? Muito se fala e se escreve, mostrando este estado de coisas. Na Rússia, então, todo o mundo está pondo à mostra essas coisas todas. Nossos pais são os primeiros a retrogradar, e se envergonham de sua antiga moral. Ainda no outro dia os jornais deram que certo pai, em Moscou, ensina aos filhos que não vacilem diante seja do que for, para obter dinheiro. Olhe, por exemplo, para o meu general. Ao que chegou ele! E todavia fique sabendo que ainda não o acho dos piores... E falo sério. No fundo. a causa é a desordem e o vinho... Tenho certeza. Tenho pena dele, é lógico, e só não espalho essas coisas com medo de que se riam de mim. E essas pessoas sensíveis, que se escandalizam, que vem a ser elas? Cavadoras de dinheiro, sem exceção! Ippolít faz a apologia do usurário, diz que está direito. Fala de valorização econômica, de maré do capital, que tem que subir e descer... Entenda-se lá isso! Vexa-me ouvi-lo falar deste modo; mas ele, eu compreendo. É um exasperado, e com razão. Agora imagine, a mãe dele, a viúva do capitão. Ouça: essa mulher toma dinheiro do general e depois empresta a ele próprio, general, mas... com juros. Isso não é hediondo? E o senhor sabe que minha mãe (sim, estou me referindo a Nina Aleksándrovna) ajuda Ippolít, com dinheiro, roupas e tudo o mais? E provê as crianças de uma porção de coisas, por intermédio de Ippolít, com pena delas não terem quem as cuide direito? Vária também ajuda.

- Ora, aí está. Você diz que não há mais gente honrada, forte. honesta, que não passam todos de cavadores de dinheiro. Mas em sua casa, mesmo, há gente às direitas: sua mãe e sua irmã. Você então não acha que ajudar deste modo, e em tais circunstâncias, seja uma prova de força moral? 

- Vária faz isso por vaidade, para mostrar-se, para não ficar inferior a mamãe. Mas esta, realmente, eu a respeito, deveras. Não só respeito, como até acho que está direito. O próprio Ippolít sente isso, e ainda fica mais amargo contra quase todos. No começo ele ria e achava que isso era degradante para mamãe; mas agora já começa a compreender bem. Hum! Então o senhor. acha que isso é força? Preciso tomar nota disso. Gánia ignora tudo isso. E se viesse a saber, chamaria a isso ser “conivente”. 

- Gánia não sabe? Acho que é muito ele não ter percebido isso ainda - ponderou o príncipe. 

- Ouça, príncipe. Estou gostando muito do senhor. E não há meios de me esquecer do que lhe aconteceu esta tarde. 

- Pois eu também estou gostando muito de você, Kólia. 

- Escute, de que maneira pretende o senhor viver aqui? Estou dando um jeito de arranjar um emprego, e breve estarei ganhando alguma coisa. Moremos juntos. O senhor, eu e Ippolít. Alugaremos uma peça e consentiremos que o general venha ver-nos. 

- Com o maior prazer. Mas havemos de estudar isso, pois ainda me sinto muito zonzo. Quê? Chegamos? É esta a casa? Que entrada magnífica! E tem porteiro, no vestíbulo! Bem, Kólia, não sei o que sucederá. O príncipe deteve-se, deslumbrado. 

- Amanhã o senhor me contará. O principal é não ficar constrangido. Deus o acompanhe, pois sei que as suas decisões têm sempre em mira o bem. Adeus. Volto e vou contar a Ippolít a nossa combinação. E não tenha dúvida, garanto que ela o recebe! Não se perturbe. Ela é muito extravagante. É no primeiro andar pela escadaria, pergunte ao porteiro.


continua página 121...

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