segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte II (b) - Você, Quaresma, É um Visionário

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





TERCEIRA PARTE


II - Você, Quaresma, É um Visionário


Quaresma recolheu-se ao seu quarto e continuou os seus estudos guerreiros. Os mais dias que passou naquele extremo da cidade não eram diferentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra caía na banalidade da repetição dos mesmos episódios.
A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, saía. Descia a cidade e deixava o posto entregue a Polidoro ou a Fontes, se estava.
Raras vezes o fazia de dia, porque Polidoro, o mais assíduo, marceneiro de profissão e em atividade numa fábrica de móveis, só vinha à noite.
No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o governo pagava soldos dobrados, e, às vezes, gratificações, além do que havia também a morte sempre presente; e tudo isso estimulava o divertir-se. Os teatros eram frequentados e os restaurantes noturnos também.
Quaresma, porém, não se metia naquele ruído de praça semi-sitiada. Ia às vezes ao teatro, à paisana, e, logo acabado o espetáculo, voltava para o quarto da cidade ou para o posto.
Em outras tardes, logo que Polidoro chegava, saía a pé, pelas ruas dos arredores, pelas praias até o Campo de São Cristóvão.
Ia vendo aquela sucessão de cemitérios, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar; aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da morte.
As casas tinham um aspecto fúnebre, recolhidas e concentradas; o mar marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e lúgubre.
A paisagem se impregnara da Morte e o pensamento de quem passava ali mais ainda, para fazer sentir nela tão forte aspecto funéreo.
Foi vindo até ao Campo; aí deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa e afinal entrou na residência do General Albernaz. Devia-lhe aquela visita e aproveitou o ensejo.
Acabavam de jantar e jantara com o general, além do Tenente Fontes e o Almirante Caldas, o comandante de Quaresma, o Tenente-Coronel Inocêncio Bustamante.
Bustamante era um comandante ativo, mas dentro do quartel. Não havia quem como ele se interessasse pelos livros, pela boa caligrafia com que eram escritos os livros mestres, as relações de mostra, os mapas de companhia e outros documentos. Com auxílio deles, a organização do seu batalhão era irrepreensível; e, para não deixar de vigiar a escrituração, aparecia de onde em onde nos destacamentos do seu corpo.
Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, ele logo perguntou ao major:

- Quantas deserções?

- Até hoje, nove, disse Quaresma.

Bustamante coçou a cabeça desesperado e refletiu:

- Eu não sei o que tem essa gente... É um desertar sem nome... Falta-lhes patriotismo!

- Fazem muito bem... Ora! disse o almirante.

Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora o governo não lhe tinha dado cousa alguma. O seu patriotismo se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia vice-almirante. É verdade que o governo ainda não organizara a sua esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, ele não comandaria nem uma divisão. Uma iniqüidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por não ter nunca comandado, nessa matéria ele podia despender toda uma energia moça.

- O almirante não deve falar assim... A pátria está logo abaixo da humanidade.

- Meu caro tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas cousas...

- Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.

- Que tenho eu com eles? fez agastado Caldas.

Bustamente, o general e Quaresma assistiam à pequena discussão calados e os dous primeiros um tanto sorridentes com a fúria de Caldas, que não se cansava de dançar a perna e alisar os longos favoritos brancos. O tenente respondeu:

- Muito, almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam épocas melhores, de ordem, de felicidade e evolução moral.

- Nunca houve e nunca haverá! disse de um jato Caldas.

- Eu também penso assim, acrescentou Albernaz.

- Isto há de sempre ser o mesmo, aduziu ceticamente Bustamante.

O major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em face daquelas contestações, ao contrário dos seus congêneres de seita, não se agastou. Ele era magro e chupado, moreno carregado e a oval do seu rosto estava amassada aqui e ali.
Com a sua voz arrastada e nasal, agitando a mão direita no jeito favorito dos sermonários, depois de ouvir todos, falou com unção:

- Houve já um esboço: a Idade Média.

Ninguém ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia história do Brasil e os outros nenhuma.
E a sua afirmação fez calar todos, embora no íntimo duvidosos. É uma curiosa Idade Média, essa de elevação moral, que a gente não sabe onde fica, em que ano? Se a gente diz: “No tempo de Clotário, ele próprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o seu filho Crame mais a mulher deste e filhos” - o positivista objeta: “Ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da igreja.” “São Luís”, diremos logo nós, “quis executar um senhor feudal porque mandou enforcar três crianças que tinham morto um coelho nas suas matas.” Objeta o fiel: “Você não sabe que a nossa Idade Média vai até o aparecimento da Divina Comédia? São Luís já era a decadência”... Citam-se as epidemias de moléstias nervosas, a miséria dos campônios, as ladroagens à mão armada dos barões, as alucinações do milênio, as cruéis matanças que Carlos Magno fez aos saxões; eles respondem: uma hora que ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente moral da igreja; outra que ele já tinha desaparecido.
Nada disso foi objetado ao positivista e a conversa resvalou para a revolta. O almirante criticava severamente o governo.
Não tinha plano algum, levava a dar tiros à toa; na sua opinião, já devia ter feito todo o esforço para ocupar a ilha das Cobras, embora isso custasse rios de sangue. Bustamente não tinha opinião assentada; mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma aventura arriscada e de uma improficuidade patente. Albernaz ainda não tinha dado o seu aviso, e veio a fazê-lo assim:

- Mas nós reconhecemos Humaitá, e por pouco!

- Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturais eram outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente inútil... O senhor sabe, esteve lá!

- Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o Camisão disse-me que foi arriscado.

Quaresma voltara ao silêncio. Ele procurava ver Ismênia. Fontes lhe tinha inteirado do seu estado e o major se sentia por qualquer cousa preso à moléstia da moça. Viu todos: Dona Maricota, sempre ativa e diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa interminável, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala de visitas à sala de jantar onde ele estava. Por fim, não se conteve, perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia pior, cada vez mais abismada na sua mania, enfraquecendo-se de corpo. O general contou tudo com franqueza a Quaresma e quando acabou de narrar aquela sua desgraça íntima, disse com um longo suspiro:

- Não sei, Quaresma... Não sei.

Eram dez horas quando o major se despediu. Voltou de bonde para a Ponta do Caju. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio da perturbação especial que põe em nós o luar que estava lindo, terno e leitoso, naquela noite. É uma emoção de desafogo do corpo, de delíquio; parece que nos tiram o envoltório material e ficamos só alma, envolvidos numa branda atmosfera de sonhos e quimeras. O major não colhia bem a sensação transcendente, mas sofria sem perceber o efeito da luz pálida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido, não por sono, mas em virtude daquela doce embriaguez que o astro lhe tinha posto nos sentidos.
Dentro em pouco Ricardo veio chamá-lo: o marechal estava aí. Era seu hábito sair à noite, às vezes, de madrugada, e ir de posto em posto. O fato se espalhou pelo público que o apreciava extraordinariamente, e o Presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de estadista consumado.
Quaresma veio ao seu encontro. Floriano vestia chapéu de feltro mole, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de malfeitor ou de exemplar chefe de família em aventuras extraconjugais.
O major cumprimentou-o e esteve a dar-lhe notícias do ataque que fora feito ao seu posto, há dias passados. O marechal respondia por monossílabos preguiçosos e olhava ao redor. Quase ao despedir-se, falou mais, dizendo vagarosamente, lentamente:

- Hei de mandar pôr um holofote aqui.

Quaresma veio acompanhá-lo até ao bonde. Atravessaram o velho sítio de recreio dos imperadores.
Um pouco afastada da estação uma locomotiva, semiacessa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os carros, pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, sossegados como que dormiam.
As anosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali, pareciam polvilhadas preciosamente de prata.
O luar estava magnífico. Os dous andavam, o marechal perguntou:

- Quantos homens tem você?

- Quarenta.

O marechal mastigou um: “não é muito”; e voltou ao mutismo. Num dado momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua. Pareceu-lhe mais simpática a fisionomia do ditador. Se lhe falasse...
Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronunciá-la. Continuaram a andar. O major pensou: que é que tem? não há desrespeito algum. Aproximaram-se do portão. Num dado momento como que houve uma bulha atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quase não o fez.
Os edifícios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o branco luar. O major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era indispensável; o portão estava a dous passos. Tomou coragem, ousou e falou:

- Vossa Excelência já leu o meu memorial, marechal?

Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:

- Li.

Quaresma entusiasmou-se:

- Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em vez de tributários, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa Excelência quisesse...

À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia ver bem a fisionomia do ditador, encoberto agora como lhe estava o rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de esfriar, pois havia na sua máscara sinais do aborrecimento mais mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele apelo à legislação, a medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quisesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:

- Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...

Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:

- Mas, não é isso, marechal. Vossa Excelência, com o seu prestígio e poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o aparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de favorecê-lo e torná-lo remunerador... Bastava, por exemplo...

Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava lindo, plástico e opalescente.
Um grande edifício inacabado que havia na rua parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da lua. Era um palácio de sonho.
Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; ele se despediu do major, dizendo com aquela sua placidez de voz:

- Você, Quaresma, é um visionário...

O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava fisionomia às cousas, fazia nascer sonhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua luz emprestada...
 

continua na página 83...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro
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O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte II (a) - Você, Quaresma, É um Visionário
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte II (b) - Você, Quaresma, É um Visionário
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte III (a) - ...E Tornaram Logo Silenciosos...

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