terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 2 (2a)

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 2


Bordel; as putas preparam os cartazes, como quem se dedica aos afazeres domésticos; uma delas canta, junto ao piano. Uma puta canta "folhetim".


Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia-luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior
E que me possuis
Mas na manha seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim





O piano segue tocando; entra Max com o embrulho sob o braço; logo depois entra Geni; as putas, meio sem graça, procuram esconder as tintas, os panos, os cartazes.


MAX
Oh, não se incomodem, queridas. Vocês estão atarefadas com os trabalhos manuais, né mesmo? Podem continuar, façam de conta que eu não estou aqui.

DORINHA
Nem devia estar. Deixa o Tigrão saber. . .

MAX
Ah, Dorinha Tubão, você tá cada dia mais gostosa! É que nem o vinho. . .

DORINHA
Eu tô falando sério, Max. Cai fora.

MAX
Puxa, eu fico emocionado de ver como as mulheres estão se afligindo por mim. . . O que é que tá aí nesse cartaz? Morte aos contrabandistas? Excelente! Contrabandista tem que abater a tiro de canhão. Mas, Dorinha, não fique aí se roendo toda por minha causa, tá? Afinal, todo mundo sabe que eu frequento este cabaré às sextas. Com toda a polícia atrás de mim, ninguém vai pensar que eu sou louco de baixar neste cabaré logo hoje, uma sexta. Né? Olha a Mimi Bibelô! Ta chorando por quê, Mimi? Brigou com o teu noivo desembargador?

MIMI
Não é desembargador. (Soluça) É comandante da Panair.

MAX
Assim você borra todo o seu cartaz. Não dá pra ler nada, parece a Semana de Arte Moderna. . . Ué, quem é essa? O quê! Artigo novo na praça e o Duran nem participa à família? Vem cá, brotinho, vem! (Estende-se numa poltrona e senta Fichinha sobre a sua perna direita) Precisamos inaugurar isso, hein? Urgentemente! Qual é o teu nome, hein?

FICHINHA
Margareth. . .

GENI (Senta-se rapidamente na perna esquerda de Max)
Cheguei!

MAX
Porra, Genival, quer me deixar em paz? Tem trabalho pra ti lá no escritório!

GENI
Só vou se você deixar eu ler a tua mão.

MAX
Mas que lindo nome, Margareth. Você deve ser parenta da princesinha da Inglaterra, não é não?

FICHINHA
Sei não senhor.

MAX
Aposto que é. Cê tem todos os traços da família real.

GENI
Ei, todo mundo, a Fichinha agora deu pra se chamar Margareth!

MAX
Margareth, amanhã a tua tarde é minha, tá?

FICHINHA
Só se dona Dorinha deixar. Amanhã tem desafio e dona Dorinha é presidenta da sindicância.

GENI
Amanhã tem desfile e a Dorinha é presidenta do sindicato.

MAX
Não diga! Dorinha Tubão depois de velha virou pelega? Mas a Fichinha não vai ao desfile, né mesmo, Margareth? (Dá-lhe um beijo na boca; sua mão direita apalpa os seios de Fichinha, enquanto Geni lê a mão esquerda; chega Shirley com uma taça) Ah, Shirley, meu amor, eu sabia que você não ia se esquecer do meu daiquiri. (Abre a boca e Shirley despeja um gole)

GENI
Estou vendo uma coisa! Ah, uma mulher muito importante na tua vida. . .

MAX
Genival, todas as mulheres da minha vida são muito importantes. (Dá um longo beijo na boca de Fichinha e acaricia as coxas de Shirley)

GENI
Esta mulher é mais importante que todas as outras... Porque vai te trair.

MAX (Interrompe o beijo e as carícias)
E diz o nome dela aí?

GENI
Só uma letra. A inicial.

MAX
Vamos ver. . . É tê?

GENI
Não, é gê.

MAX Gê? Gê de Geralda? Não conheço nenhuma Geralda. Nem Geraldina. . . Glauce, também não. Gumercinda, muito menos. Porra, será que nunca comi nenhuma mulher com gê? Ah, só se for você, boneca. . . Geni solta a mão de Max e sai às pressas; Max levanta-se.

MAX
E vocês, Shirley, Fichinha, não vão me mostrar os seus desenhos?

FICHINHA
Eu só sei fazer bolinha, sim senhor.

MAX
Ah, sei. Você é que bota os pingos nos ii. Shirley, essa cartolina é tua? Olha que poema, tem rima e tudo! "Abaixo a corrupção/Max e Chaves na prisão." Quem diria, Shirley! Que papelão! Logo você, a mãe dos meus fetos!

SHIRLEY
Eu não queria, Max, juro que eu não queria!

MAX
Que decepção, Shirley! Será que você não sabe que corrupção é com cê cedilha? Oh, Jussara Pé de Anjo, eu não tinha visto você! Puxa, eu fiquei preocupado com o teu sumiço. Sabe que eu me encontrei num jantar com o Tigrão e pedi a ele que se interessasse pelo teu caso? Que bom que ele me atendeu. . .

JUSSARA
Não te engraça pro meu lado, Max, que hoje eu não tô boa.

MAX
Teu cartaz tá em branco, Jussara?

JUSSARA
 O que eu tenho engasgado pra dizer, não cabe nem em cartaz de cinema.

MAX
Posso dar umas sugestões? Que tal "abaixo a exploração"? O Duran vai adorar. "Abaixo a escravidão!" "Abaixo o monopólio da cafetinagem."

DORINHA
Vamos ao trabalho, meninas.

MAX
"Abaixo os pelegos!" "Por uma associação livre!" "Por melhores condições de trabalho!" "Dignidade pra trepar! " Vamos falar claramente, meninas. Vocês querem que eu me dane, né? E por quê? Porque o Duran quer que eu me dane. E por quê? Porque ele não tem condições de enfrentar uma concorrência. Então, bastou ele ouvir falar que eu tava comprando a Taverna da Glória pra ficar com o cabelo em pé!

SHIRLEY
Taverna da Glória?

MAX
E então. Aquilo ali tá uma porcaria, mas com a reforma que o Le Corbusíer projetou, eu ia ficar com o maior cabaré da América do Sul. Uma beleza, todo envidraçado! No mesmo estilo do Ministério da Educação. . . Bem, eu vou andando. . .

SHIRLEY
Acabei de aprontar mais um daiquiri. . .

MIMI
Você me apresenta ao Le Corbusier?

MAX
Eu acho que vocês adorariam trabalhar no meu cabaré. Quer dizer, pensando bem, não sei. . . É, acho que vocês devem mesmo continuar com o Duran. Lá no meu café-concerto vocês não iam se sentir à vontade. Ia lotar daqueles turistas americanos que são uns milionários muito chatos, muito velhos, bebem muito, falam alto. E os meus turistas americanos iam morrer de rir dessas roupas que vocês usam. Esse vestido da Dorinha, por exemplo, eu vi um igualzinho há cinco anos, num museu da Filadélfia. Deixa eu ver uma coisa. (Levanta a saia de Dorinha) Meias de seda, Dorinha? Ainda? Espera aí, cadê o meu embrulho? (Pega o embrulho e abre) Pode ser que a gente não se veja mais. . . (Tira uma meia de náilon e estica) Já viu isso, Dorinha? Não se usa outra coisa no mundo civilizado. (Dorinha toca a meia timidamente) Pode ficar. É tua!

TODAS
Eu também quero!

MAX
Calma, tem pra todo mundo!


continua pág 91 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

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Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
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Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 2 (2a)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.

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