quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Sarau... Continuidade dos Parques - (Julio Cortázar)

Continuidade dos Parques


Julio Cortázar
(1914-1984)


Ele havia começado a ler o romance alguns dias antes. Deixou-o para negócios urgentes, reabriu-o ao voltar de trem para a fazenda; aos poucos foi se deixando interessar pelo enredo, pelo desenho dos personagens. Naquela tarde, depois de escrever uma carta a seu advogado e discutir com o mordomo uma questão de meação, voltou ao livro na tranquilidade do escritório que dava para o parque com seus carvalhos. Esticado em sua poltrona preferida, de costas para a porta que o incomodaria como uma irritante possibilidade de invasões, deixou a mão esquerda acariciar o veludo verde sem parar e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão novelística o conquistou quase imediatamente. Desfrutava do prazer quase perverso de romper linha por linha do ambiente, e ao mesmo tempo sentir que sua cabeça repousava confortavelmente no veludo do espaldar alto, que os cigarros ainda estavam ao seu alcance, que além das grandes janelas o o ar noturno dançava sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorto no sórdido dilema dos heróis, deixando-se levar pelas imagens que se concertavam e ganhavam cor e movimento, presenciou o último encontro na cabana da montanha. A mulher entrou primeiro, desconfiada; agora o amante chegou, com o rosto machucado pelo golpe de um galho. Admiravelmente ela estancou o sangue com seus beijos, mas ele rejeitou suas carícias, não veio repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. A adaga estava aquecendo contra seu peito, e abaixo dela batendo a liberdade agachada. O diálogo ansioso percorria as páginas como um fluxo de cobras, e parecia que tudo havia sido decidido para sempre. Mesmo aquelas carícias que enredavam o corpo do amante como se quisessem retê-lo e dissuadi-lo, delineavam abominavelmente a figura de um outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acaso, possíveis erros. A partir dessa hora, cada momento teve seu uso minuciosamente atribuído. A implacável revisão dupla foi interrompida apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Estava começando a escurecer. Mesmo aquelas carícias que enredavam o corpo do amante como se quisessem retê-lo e dissuadi-lo, delineavam abominavelmente a figura de um outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acaso, possíveis erros. A partir dessa hora, cada momento teve seu uso minuciosamente atribuído. A implacável revisão dupla foi interrompida apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Estava começando a escurecer. Mesmo aquelas carícias que enredavam o corpo do amante como se quisessem retê-lo e dissuadi-lo, delineavam abominavelmente a figura de um outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acaso, possíveis erros. A partir dessa hora, cada momento teve seu uso minuciosamente atribuído. A implacável revisão dupla foi interrompida apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Estava começando a escurecer.

Sem olhar mais um para o outro, rigidamente amarrados à tarefa que os esperava, eles se separaram na porta da cabine. Ela deveria seguir o caminho que ia para o norte. Do caminho oposto, ele se virou brevemente para vê-la correndo com o cabelo solto. Ele correu por sua vez, escondendo-se nas árvores e sebes, até que conseguiu distinguir na névoa lilás do crepúsculo o caminho que levava à casa. Cachorros não deveriam latir, e eles não latiam. O mordomo não estaria àquela hora, e não estava. Ela subiu os três degraus até a varanda e entrou. Do sangue galopando em seus ouvidos, vieram as palavras da mulher: primeiro um quarto azul, depois uma galeria, uma escada acarpetada. No topo, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta da sala, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o espaldar alto de uma poltrona forrada de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.


FINALIZAR


Ultimato , 1956
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