segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Machado de Assis - O alienista: 11 - O assombro de Itaguaí

Papéis Avulsos - O Alienista

Machado de Assis



CAPÍTULO XI
O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ



E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua. 

— Todos?

— Todos.

— É impossível; alguns, sim, mas todos...

— Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara.

De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1º, que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2°, que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3°, que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º, que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5°, que tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º, que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.





continua página 26...

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Leia também:

Machado de Assis - O alienista: 01 - De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates
Machado de Assis - O alienista: 02 - Torrente De Loucos
Machado de Assis - O alienista: 03 - Deus sabe o que faz
Machado de Assis - O alienista: 04 - Uma Teoria Nova
Machado de Assis - O alienista: 05 - O Terror
Machado de Assis - O alienista: 06 - A Rebelião
Machado de Assis - O alienista: 07 - O Inesperado
Machado de Assis - O alienista: 08 - As Angústias do Boticário
Machado de Assis - O alienista: 09 - Dois Lindos Casos
Machado de Assis - O alienista: 10 - A Restauração
Machado de Assis - O alienista: 12 - O Final do § 4º

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ÍNDICE:

ADVERTÊNCIA 
O ALIENISTA 
TEORIA DO MEDALHÃO 
A CHINELA TURCA 
NA ARCA 
D. BENEDITA 
O SEGREDO DO BONZO 
O ANEL DE POLÍCRATES
O EMPRÉSTIMO 
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA 
O ESPELHO 
UMA VISITA DE ALCIBÍADES 
VERBA TESTAMENTÁRIA 
NOTAS DO AUTOR
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Papéis Avulsos

Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882.




Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?



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