Diante da Dor dos Outros
2.
continuando...
Num sistema calcado na máxima reprodução e difusão de imagens, o ato de testemunhar requer a criação de testemunhas brilhantes, célebres por sua coragem e por sua dedicação na obtenção de fotos importantes e perturbadoras. Um dos primeiros números de Picture Post (3 de dezembro de 1938), que apresentava uma coletânea de fotos de Capa sobre a Guerra Civil Espanhola, usou na capa uma foto do belo rosto do fotógrafo, de perfil, segurando uma câmera junto ao rosto: “O maior fotógrafo de guerra do mundo: Robert Capa”. Os fotógrafos de guerra herdaram o glamour que o ato de ir para uma guerra ainda desfrutava entre os antibelicistas , em especial quando a guerra parecia ser um desses raros conflitos em que uma pessoa consciente era compelida a tomar partido. (A guerra na Bósnia, quase sessenta anos depois, inspirou sentimentos partidários semelhantes entre os jornalistas que viveram algum tempo na Sarajevo sitiada.) E, em contraste com a guerra de 1914- 18, que, como logo ficou claro para muitos dos vencedores, fora um erro colossal, a Segunda “Guerra Mundial” foi considerada de forma unânime, pelo lado vencedor, como uma guerra necessária, uma guerra que tinha de ser travada.
O fotojornalismo conquistou o reconhecimento que lhe era devido no início da década de 1940 — tempo de guerra. Esta que foi a menos controvertida das guerras modernas, cuja justiça foi ratificada pela revelação cabal do mal nazista quando a guerra terminou, em 1945, conferiu aos fotojornalistas uma nova legitimidade, deixando pouco espaço para a dissidência de esquerda que marcara grande parte do uso sério das fotos no período entre as guerras, inclusive Guerra contra guerra!, de Friedrich, e as primeiras fotos de Capa, a mais famosa personagem de uma geração de fotógrafos politicamente engajados cuja obra concentrava-se na guerra e nas vítimas. Em resultado do novo consenso liberal dominante acerca da maleabilidade dos problemas sociais agudos, as questões relativas aos meios de vida e à independência dos próprios fotógrafos deslocaram-se para o primeiro plano. Uma das consequências foi a criação, por iniciativa de Capa e de alguns amigos (entre eles Chim e Henri Cartier-Bresson), de uma cooperativa, a Agência Fotográfica Magnum, em Paris, em 1947. O propósito imediato da Magnum — que rapidamente se tornou o consórcio de fotojornalistas mais prestigioso e mais influente — era prático: representar fotógrafos autônomos e aventureiros perante as revistas fotográficas, que os enviavam em missões jornalísticas. Ao mesmo tempo, o regulamento da Magnum, moralista a exemplo de outros regulamentos de novas organizações e associações internacionais criadas no imediato pós-guerra, preconizava uma missão ampla e eticamente árdua para os fotojornalistas: fazer a crônica de seu tempo, fosse este de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de preconceitos chauvinistas.
Na voz da agência Magnum, a fotografia declarava-se uma atividade mundial. A nacionalidade do fotógrafo e sua filiação jornalística eram, em princípio, irrelevantes. O fotógrafo poderia ser de qualquer parte. E sua esfera de ação era “o mundo”. O fotógrafo era um errante que tinha como destino predileto guerras de interesse incomum (pois havia numerosas guerras).
A memória da guerra, porém, como qualquer memória, é sobretudo local. Os armênios, na maioria em diáspora, mantêm viva a memória do genocídio armênio de 1915; os gregos não esquecem a sangrenta guerra civil que assolou a Grécia, ao longo da década de 1940. Mas para uma guerra ultrapassar sua esfera imediata e tornar-se objeto da atenção internacional, precisa ser vista como uma espécie de exceção entre as guerras e representar algo mais do que o choque de interesses dos próprios beligerantes. A maioria das guerras não alcança a exigida significação mais plena. Um exemplo: a Guerra do Chaco (1932-35), uma carnificina levada a cabo pela Bolívia (1 milhão de habitantes) e pelo Paraguai (3,5 milhões de habitantes) que roubou a vida de 100 mil soldados e foi coberta por um fotojornalista alemão, Willi Ruge, cujas excelentes fotos de batalha em close andam tão esquecidas quanto essa guerra. Mas a Guerra Civil Espanhola na segunda metade da década de 1930, as guerras dos servocroatas contra a Bósnia em meados da década de 1990, o drástico agravamento do conflito entre israelenses e palestinos que teve início em 2000 — essas contendas tiveram assegurada a atenção de muitas câmeras porque se revestiam do significado de lutas mais amplas: a Guerra Civil Espanhola, por ser uma resistência contra a ameaça fascista e (em retrospecto) um ensaio geral para a futura guerra européia, ou “mundial”; a guerra na Bósnia, porque se tratava da resistência de um pequeno e novato país do Sul da Europa que desejava permanecer multicultural e independente, contra o poder dominante na região e contra seu programa neofascista de limpeza étnica; e o contínuo conflito em torno do caráter e do controle dos territórios reivindicados por judeus de Israel e por palestinos, em virtude da diversidade de aspectos explosivos, a começar pela fama, ou triste fama, inveterada do povo judeu, o eco sem paralelo do extermínio nazista dos judeus europeus, o apoio crucial que os Estados Unidos fornecem a Israel e a identificação desse país como um Estado de apartheid que mantém um domínio brutal sobre o território conquistado em 1967. Enquanto isso, guerras muito mais cruéis em que civis são implacavelmente massacrados por ataques aéreos e trucidados no solo (a guerra civil no Sudão, com décadas de duração, as campanhas do Iraque contra os curdos, as invasões e a ocupação russas da Tchetchênia) transcorreram relativamente isentas de documentação fotográfica.
continua pág 97...
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
para David
… aux vaincus!
Baudelaire
A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson
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Num sistema calcado na máxima reprodução e difusão de imagens, o ato de testemunhar requer a criação de testemunhas brilhantes, célebres por sua coragem e por sua dedicação na obtenção de fotos importantes e perturbadoras. Um dos primeiros números de Picture Post (3 de dezembro de 1938), que apresentava uma coletânea de fotos de Capa sobre a Guerra Civil Espanhola, usou na capa uma foto do belo rosto do fotógrafo, de perfil, segurando uma câmera junto ao rosto: “O maior fotógrafo de guerra do mundo: Robert Capa”. Os fotógrafos de guerra herdaram o glamour que o ato de ir para uma guerra ainda desfrutava entre os antibelicistas , em especial quando a guerra parecia ser um desses raros conflitos em que uma pessoa consciente era compelida a tomar partido. (A guerra na Bósnia, quase sessenta anos depois, inspirou sentimentos partidários semelhantes entre os jornalistas que viveram algum tempo na Sarajevo sitiada.) E, em contraste com a guerra de 1914- 18, que, como logo ficou claro para muitos dos vencedores, fora um erro colossal, a Segunda “Guerra Mundial” foi considerada de forma unânime, pelo lado vencedor, como uma guerra necessária, uma guerra que tinha de ser travada.
O fotojornalismo conquistou o reconhecimento que lhe era devido no início da década de 1940 — tempo de guerra. Esta que foi a menos controvertida das guerras modernas, cuja justiça foi ratificada pela revelação cabal do mal nazista quando a guerra terminou, em 1945, conferiu aos fotojornalistas uma nova legitimidade, deixando pouco espaço para a dissidência de esquerda que marcara grande parte do uso sério das fotos no período entre as guerras, inclusive Guerra contra guerra!, de Friedrich, e as primeiras fotos de Capa, a mais famosa personagem de uma geração de fotógrafos politicamente engajados cuja obra concentrava-se na guerra e nas vítimas. Em resultado do novo consenso liberal dominante acerca da maleabilidade dos problemas sociais agudos, as questões relativas aos meios de vida e à independência dos próprios fotógrafos deslocaram-se para o primeiro plano. Uma das consequências foi a criação, por iniciativa de Capa e de alguns amigos (entre eles Chim e Henri Cartier-Bresson), de uma cooperativa, a Agência Fotográfica Magnum, em Paris, em 1947. O propósito imediato da Magnum — que rapidamente se tornou o consórcio de fotojornalistas mais prestigioso e mais influente — era prático: representar fotógrafos autônomos e aventureiros perante as revistas fotográficas, que os enviavam em missões jornalísticas. Ao mesmo tempo, o regulamento da Magnum, moralista a exemplo de outros regulamentos de novas organizações e associações internacionais criadas no imediato pós-guerra, preconizava uma missão ampla e eticamente árdua para os fotojornalistas: fazer a crônica de seu tempo, fosse este de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de preconceitos chauvinistas.
Na voz da agência Magnum, a fotografia declarava-se uma atividade mundial. A nacionalidade do fotógrafo e sua filiação jornalística eram, em princípio, irrelevantes. O fotógrafo poderia ser de qualquer parte. E sua esfera de ação era “o mundo”. O fotógrafo era um errante que tinha como destino predileto guerras de interesse incomum (pois havia numerosas guerras).
A memória da guerra, porém, como qualquer memória, é sobretudo local. Os armênios, na maioria em diáspora, mantêm viva a memória do genocídio armênio de 1915; os gregos não esquecem a sangrenta guerra civil que assolou a Grécia, ao longo da década de 1940. Mas para uma guerra ultrapassar sua esfera imediata e tornar-se objeto da atenção internacional, precisa ser vista como uma espécie de exceção entre as guerras e representar algo mais do que o choque de interesses dos próprios beligerantes. A maioria das guerras não alcança a exigida significação mais plena. Um exemplo: a Guerra do Chaco (1932-35), uma carnificina levada a cabo pela Bolívia (1 milhão de habitantes) e pelo Paraguai (3,5 milhões de habitantes) que roubou a vida de 100 mil soldados e foi coberta por um fotojornalista alemão, Willi Ruge, cujas excelentes fotos de batalha em close andam tão esquecidas quanto essa guerra. Mas a Guerra Civil Espanhola na segunda metade da década de 1930, as guerras dos servocroatas contra a Bósnia em meados da década de 1990, o drástico agravamento do conflito entre israelenses e palestinos que teve início em 2000 — essas contendas tiveram assegurada a atenção de muitas câmeras porque se revestiam do significado de lutas mais amplas: a Guerra Civil Espanhola, por ser uma resistência contra a ameaça fascista e (em retrospecto) um ensaio geral para a futura guerra européia, ou “mundial”; a guerra na Bósnia, porque se tratava da resistência de um pequeno e novato país do Sul da Europa que desejava permanecer multicultural e independente, contra o poder dominante na região e contra seu programa neofascista de limpeza étnica; e o contínuo conflito em torno do caráter e do controle dos territórios reivindicados por judeus de Israel e por palestinos, em virtude da diversidade de aspectos explosivos, a começar pela fama, ou triste fama, inveterada do povo judeu, o eco sem paralelo do extermínio nazista dos judeus europeus, o apoio crucial que os Estados Unidos fornecem a Israel e a identificação desse país como um Estado de apartheid que mantém um domínio brutal sobre o território conquistado em 1967. Enquanto isso, guerras muito mais cruéis em que civis são implacavelmente massacrados por ataques aéreos e trucidados no solo (a guerra civil no Sudão, com décadas de duração, as campanhas do Iraque contra os curdos, as invasões e a ocupação russas da Tchetchênia) transcorreram relativamente isentas de documentação fotográfica.
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Leia também:
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."
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"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."
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