quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...

Capítulo 2




continuando... 


Como esta pausa era de extremo significado na sua história — mais ainda do que muitos acontecimentos que fazem os homens caírem de joelhos e os rios correrem com sangue —, é conveniente perguntarmos por que ele parou; e respondermos, depois da devida reflexão, que foi por uma razão como esta. A natureza, que tem pregado tantas peças em nós, plasmando-nos tão desigualmente de argila e de diamantes, de arco-íris e de granito, e encerrando tudo em uma caixa frequentemente tão insólita — pois o poeta tem cara de açougueiro e o açougueiro cara de poeta —, a natureza, que se compraz com a confusão e o mistério, de modo que, mesmo hoje (1º de novembro de 1927), não sabemos por que subimos ou por que descemos novamente, nossos mais quotidianos movimentos são como a passagem de um navio por um mar desconhecido e os marinheiros no mastro principal perguntam, apontando suas lunetas para o horizonte: há terra à vista ou não? Ao quê, se somos profetas, respondemos sim; se somos verdadeiros, dizemos não; a natureza, que tem muito mais a responder do que pela talvez canhestra extensão desta frase, complicou ainda mais a sua tarefa e aumentou a nossa confusão, provendo-nos interiormente não apenas com uma perfeita miscelânea de velharias — um pedaço das calças de um policial ao lado do véu de casamento da rainha Alexandra —, mas obrigando todo esse sortimento a ser alinhavado por um único fio. A memória é a costureira, e uma costureira caprichosa. A memória faz a agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para lá e para cá. Não sabemos o que vem a seguir ou o que virá depois. Assim, o movimento mais comum do mundo, como o de sentar-se à mesa e puxar para si o tinteiro, pode agitar mil fragmentos díspares e desconexos, ora brilhantes, ora embaçados, pendendo, flutuando, mergulhando, tremulando, como a roupa branca de uma família de 14 pessoas numa corda ao vento. Em vez de serem uma obra simples, clara, firme, da qual nenhum homem necessitasse se envergonhar, nossos atos mais comuns estão envoltos por um trêmulo e vacilante bater de asas, um acender e apagar de luzes. Assim foi que Orlando, mergulhando a pena na tinta, viu a face irônica da princesa perdida e instantaneamente se fez um milhão de perguntas que eram como flechas embebidas em fel. Onde estava ela e por que o tinha abandonado? O embaixador era seu tio ou seu amante? Estariam mancomunados? Teria sido forçada? Seria casada? Estaria morta? — e tudo isso o envenenou tanto que, para desafogar sua agonia em algum lugar, mergulhou a pena tão profundamente no tinteiro que a tinta esguichou sobre a mesa, o que, seja qual for a explicação que dermos (e talvez nenhuma explicação seja possível — a memória é inexplicável), de uma vez substituiu o rosto da princesa por um rosto diferente. Mas que rosto era esse?, ele se perguntava. E teve de esperar talvez meio minuto olhando para a nova figura que se sobrepunha à antiga, como uma ilustração transparece na seguinte, antes que pudesse dizer para si mesmo: “Este é o rosto daquele homem gordo e andrajoso que se sentava na sala em Twitchett há muitos anos, quando a velha rainha Bess veio jantar aqui e eu o vi”, Orlando continuou, agarrando outro daqueles fragmentos coloridos, “sentado à mesa, quando espreitei ao descer a escada, e ele tinha os mais curiosos olhos”, dizia Orlando, “que jamais se viram, mas que diabo era ele?” Orlando perguntava, pois aqui a Memória acrescentava à testa e aos olhos primeiro uma gola vulgar e gordurenta, depois um gibão marrom e finalmente um pesado par de botas, tais como usam os cidadãos em Cheapside. “Não era um nobre; não era um de nós”, disse Orlando (o que ele não disse em voz alta, pois era o mais cortês dos cavalheiros; mas evidencia o efeito que um berço nobre tem sobre a mente e como é difícil para um nobre ser escritor), “um poeta, ouso dizer”. Por todas as suas leis, a Memória, tendo-o perturbado suficientemente, deveria agora apagar tudo por completo ou deter-se em qualquer coisa tão idiota e fora de propósito — como um cachorro caçando um gato, ou uma velha assoando o nariz num lenço vermelho de algodão — que, em desespero por não acompanhar os passos de suas fantasias, Orlando, com determinação, golpeara o papel com a pena. (Pois podemos expulsar de casa, se decidirmos, a Memória e toda a sua comitiva.) Mas Orlando se deteve. A Memória ainda apresentava diante dele a imagem de um homem maltrapilho, de grandes olhos brilhantes. Continuava olhando, continuava parado. São estas pausas que são a nossa destruição. É aí que a insurreição adentra a fortaleza e as nossas tropas se levantam revoltadas. Ele já se detivera antes e o amor tinha irrompido, com o seu horrível tumulto, suas charamelas, seus címbalos e suas cabeças decapitadas e com mechas manchadas de sangue. Por amor ele sofrera as torturas dos condenados. De vez em quando detinha-se e pela fresta aberta pulavam a Ambição — essa megera — e a Poesia — essa feiticeira — e o Desejo da Fama — essa rameira; e, de mãos dadas, faziam do coração dele o terreiro de sua dança. De pé na solidão de seu quarto, jurou que seria o primeiro poeta de sua raça e que traria brilho imortal ao seu nome. Disse (recitando os nomes e os feitos de seus antepassados) que Sir Boris tinha lutado e matado o Infiel; Sir Gawain, o turco; Sir Miles, o polaco; Sir Andrew, o franco; Sir Richard, o austríaco; Sir Jordan, o francês, e Sir Herbert, o espanhol. Mas o que restara de todas essas mortes e lutas, bebidas e amores, gastos e caçadas, cavalgadas e corridas? Um crânio, um dedo. Ao passo que, dizia ele voltando à página de Sir Thomas Browne, aberta sobre a mesa — e novamente se deteve. Como um encantamento, surgindo de todas as partes do quarto, do vento da noite e do luar, rolava a divina melodia daquelas palavras que, para não ofuscar esta página, deixaremos sepultadas, não mortas, apenas embalsamadas, tal a frescura de sua cor, tal a pureza de seu alento — e Orlando, comparando essa obra com a dos seus antepassados, proclamou que eles e seus feitos eram poeira e cinzas, mas este homem e suas palavras eram imortais.

Logo percebeu que as batalhas que Sir Miles e os outros travaram contra cavaleiros de armadura para conquistar o reino não eram tão árduas quanto esta que ele agora empreendia contra a língua inglesa para ganhar a imortalidade. Qualquer um moderadamente familiarizado com os rigores da composição não necessitará que a história seja contada em detalhes; como escreveu e lhe pareceu bom; leu e pareceu-lhe ruim; corrigiu e rasgou; cortou; introduziu; ficou em êxtase; em desespero; teve noites boas e manhãs ruins; procurou captar ideias e perdeu-as; viu nitidamente diante de si o seu livro e este desapareceu; representou as partes de seus personagens enquanto comia; recitou-as enquanto andava; ora chorava; ora ria; vacilava entre um estilo e outro; ora preferia o heroico e pomposo; em seguida, o claro e o simples; ora os vales de Tempe; depois os campos de Kent ou Cornwall; e não conseguiu decidir se era o mais divino dos gênios ou o maior louco do mundo.

Foi para esclarecer esta última questão que decidiu, depois de muitos meses de trabalho febril, quebrar a solidão de anos e se comunicar com o mundo exterior. Tinha um amigo em Londres, um tal Giles Isham, de Norfolk, que, embora nobre de nascença, era relacionado com escritores e podia, sem dúvida, pô-lo em contato com algum membro dessa abençoada, na verdade sagrada, irmandade. Pois para Orlando, no estado em que se encontrava agora, havia uma tamanha glória em torno de um homem que escrevera um livro e o fizera imprimir, que ofuscava todas as glórias de sangue e posição. Em sua imaginação, parecia que mesmo os corpos daqueles que eram movidos com tão divinos pensamentos deviam ser transfigurados. Deviam ter auréolas no cabelo; incenso como respiração e rosas crescendo entre seus lábios — o que certamente não acontecia nem com ele nem com o sr. Dupper. Não podia imaginar maior felicidade do que ter permissão para sentar por trás de uma cortina e ouvi-los conversar. A simples imaginação desse discurso atrevido e variado fazia com que a lembrança das conversas que costumava ter com seus amigos cortesões — um cachorro, um cavalo, uma mulher, um jogo de cartas — lhe parecesse extremamente grosseira. Orgulhava-se de sempre terem-no chamado de literato e de escarnecerem do seu amor à solidão e aos livros. Nunca possuíra aptidão para belas frases. Ficava paralisado, corava e caminhava como um granadeiro numa sala de visitas feminina. Caíra do cavalo duas vezes, por simples distração. Quebrara o leque de Lady Winchilsea, certa ocasião, enquanto fazia um verso. Relembrando avidamente estas e outras situações de sua incapacidade para a vida em sociedade, uma esperança inefável o possuiu, de que toda a turbulência de sua juventude, seu desajeitamento, seus rubores, seus longos passeios e seu amor pelo campo provassem que pertencia à raça mais sagrada que a dos nobres — que fosse de nascença um escritor, mais do que um aristocrata. Pela primeira vez desde a noite da grande inundação se sentiu feliz.

Orlando encarregou o sr. Isham, de Norfolk, de entregar ao sr. Nicholas Greene, da Estalagem Clifford, um documento que revelava admiração por sua obra (pois Nick Greene era um escritor muito famoso naquela época) e seu desejo de conhecê-lo; o que mal ousava pedir; pois não tinha nada a oferecer em troca; mas, se o sr. Nicholas Greene condescendesse em visitá-lo, uma carruagem de quatro cavalos estaria na esquina de Fetter Lane, a qualquer hora que o sr. Greene escolhesse, para conduzi-lo a salvo à casa de Orlando. Pode-se completar as frases que então se seguiram e imaginar a alegria de Orlando quando, em pouco tempo, o sr. Greene informou a aceitação ao convite do nobre senhor; tomou assento na carruagem e foi recebido no salão sul do prédio principal, pontualmente às sete horas de segunda-feira, 21 de abril.

Muitos reis, rainhas e embaixadores tinham sido recebidos ali. Juízes, com seus arminhos, ali estiveram. As mais belas mulheres da terra tinham ido lá; e os mais bravos guerreiros. Ali pendiam bandeiras que tinham estado em Flodden e em Agincourt. Lá estavam expostos os brasões de armas pintados com seus leões, leopardos e coroas. Lá estavam as mesas compridas onde repousavam baixelas de ouro e prata; e as amplas lareiras talhadas em mármore italiano onde todas as noites ardia até as cinzas um carvalho, com seus milhões de folhas, seus ninhos de gralhas e de carriças. Nicholas Greene, o poeta, estava ali naquele momento, modestamente vestido, com seu chapéu de abas largas e um gibão negro, com uma maleta na mão.

Que Orlando, ao se apressar para cumprimentá-lo, ficasse um pouco decepcionado era inevitável. O poeta não tinha mais que a estatura média; era uma figura mesquinha; magro, um pouco curvado, e ao entrar tropeçou no mastim — o cachorro mordeu-o. Além disso, Orlando, com todo o seu conhecimento da humanidade, estava perplexo e não sabia onde classificá-lo. Havia algo nele que não correspondia nem ao criado, nem ao cavalheiro, nem ao nobre. A cabeça, com sua testa arredondada e nariz bicudo, era distinta, porém o queixo desaparecia. Os olhos eram brilhantes, mas os lábios eram frouxos e babavam. Contudo, era a expressão do rosto, como um todo, que era inquietante. Não havia nada da compostura digna que torna os rostos dos nobres tão agradáveis de se olhar; nada também da servilidade dignificante de um empregado doméstico bem-treinado; era um rosto marcado, enrugado e contraído. Embora fosse poeta, parecia mais acostumado a repreender do que a elogiar; a brigar do que a murmurar; a arrastar-se do que a montar; a lutar do que a descansar; a odiar do que a amar. Isto também se constatava pela rapidez dos seus movimentos; e por algo ardente e suspeito em seu olhar. Orlando estava um pouco perplexo. Mas foram jantar.

Aí Orlando, que geralmente achava as coisas naturais, ficou pela primeira vez bastante envergonhado do número de seus criados e do esplendor de sua mesa. Mais estranho ainda, pensava com orgulho — pois a lembrança era geralmente desagradável — naquela avó Moll que ordenhara vacas. Estava prestes a aludir àquela mulher humilde e a seus baldes de leite quando o poeta se antecipou a ele dizendo ser esquisito que o nome Greene fosse tão comum, pois a família viera com o Conquistador e era da mais alta nobreza da França. Infelizmente haviam decaído e feito pouco mais do que deixar seu nome ao burgo real de Greenwich. Seguiram-se conversas do mesmo tipo — sobre castelos perdidos, brasões de armas, primos que eram baronetes no norte, alianças por casamentos com famílias nobres do oeste, como alguns Green escreviam o nome com “e” no final e outros sem “e” — que duraram até a chegada da caça à mesa. Então Orlando conseguiu dizer algo sobre a avó Moll e suas vacas e já tinha aliviado um pouco do peso do coração quando foram servidas as aves selvagens. Mas só quando a Malvasia estava sendo servida livremente é que Orlando ousou mencionar que considerava um assunto mais importante do que os Green ou as vacas; ou seja, o sagrado tema da poesia. À primeira menção da palavra, os olhos do poeta flamejaram; abandonou os ares finos de cavalheiro, que adotara; bateu com o copo na mesa e iniciou uma das mais longas, intrincadas, apaixonadas e amargas narrativas que Orlando tinha ouvido, exceto dos lábios de uma mulher abandonada, ou de outro poeta e de um crítico, sobre uma peça sua. Da própria natureza da poesia. Orlando apenas conseguiu saber que era mais difícil de vender do que a prosa, e, embora as linhas fossem mais curtas, demoravam mais a serem escritas. Assim a conversa continuou com desdobramentos intermináveis, até que Orlando se aventurou a insinuar que ele mesmo já tinha sido suficientemente imprudente para escrever — mas nesse momento o poeta deu um pulo da cadeira. Um rato havia guinchado nos lambris, disse ele. A verdade é que, explicou, seus nervos estavam em tal estado que o guincho de um rato o aborrecia por 15 dias. Sem dúvida a casa estava cheia de bichos, mas Orlando não os escutava. O poeta então contou a Orlando a história completa de sua saúde nos últimos dez anos. Tinha estado tão mal que podia se admirar de ainda estar vivo. Tivera paralisia, gota, malária, hidropisia e três tipos de febre, uma após outra; juntava-se a isso que tinha coração dilatado, baço hipertrofiado e fígado doente. Mas, sobretudo, dizia a Orlando, tinha sensações na espinha que eram indescritíveis. Havia um calombo na altura da terceira vértebra de cima para baixo, que ardia como fogo; um outro à altura da segunda de baixo para cima, que era frio como gelo. Às vezes acordava com a cabeça como chumbo; outras como se mil velas estivessem acesas e as pessoas soltassem foguetes dentro dele. Era capaz de sentir uma pétala de rosa através do colchão, dizia; podia se orientar em Londres pela sensação do calçamento. Todo ele era uma peça de maquinária tão finamente construída e tão curiosamente montada (aqui levantou a mão como se inconscientemente, e na verdade era a mais bela forma imaginável) que ficava consternado em pensar que vendera apenas quinhentas cópias de seu poema, mas sem dúvida isso era devido à conspiração que havia contra ele. Tudo o que podia dizer, concluiu batendo com o punho na mesa, era que a arte da poesia estava morta na Inglaterra.

Como podia isso ser verdade, com Shakespeare, Marlowe, Ben Jonson, Browne, Donne, todos escrevendo agora, ou já tendo escrito? Orlando, recitando os nomes dos seus heróis favoritos, não podia entender.

Greene riu sardonicamente. Shakespeare, ele admitia, escrevera algumas cenas bastante boas; porém ele as tirara principalmente de Marlowe. Marlowe era um rapaz promissor, mas o que se poderia dizer de um jovem que morreu antes dos trinta? Quanto a Browne, decidiu escrever poesia em prosa, e as pessoas logo se cansam de caprichos como esse. Donne era um charlatão que dissimulava sua falta de ideias com palavras difíceis. Os crédulos se deixavam enganar; mas o estilo estaria fora de moda daqui a 12 meses. Quanto a Ben Jonson — Ben Jonson era seu amigo, e ele nunca falava mal de seus amigos.

Não, concluiu, a grande época da literatura é o passado; a grande época da literatura foi a grega; a época elisabetana era inferior à grega em todos os aspectos. Naqueles tempos os homens acalentavam uma divina ambição a que ele chamava La Gloire (1) (pronunciava “Glour”, de modo que Orlando, a princípio, não entendeu o que ele queria dizer). Agora todos os jovens escritores estavam a soldo dos livreiros e despejavam qualquer lixo que vendesse. Shakespeare era o principal culpado disso e já estava sofrendo as consequências. Sua própria época, dizia, era marcada por conceitos preciosistas e experimentos selvagens — nenhum dos quais os gregos teriam tolerado por um só momento. Embora lhe custasse muito dizer — pois ele amava a literatura como amava a vida —, não via nada de bom no presente e não tinha esperança no futuro. Então, serviu-se de mais um copo de vinho.

Orlando estava chocado por essas doutrinas; contudo, não podia deixar de observar que o próprio crítico não parecia deprimido. Ao contrário, quanto mais denunciava a sua própria época, mais complacente ficava. Podia lembrar, disse, de uma noite na Taverna do Galo, na rua Fleet, quando Kit Marlowe estava lá com alguns outros. Kit estava alegre, um pouco bêbado — o que facilmente ficava — e disposto a dizer bobagens. Podia vê-lo ainda erguendo o copo para os companheiros e gaguejando: “Raios te partam, Bill!” (isso era para Shakespeare). “Está vindo uma grande onda e tu estás no topo dela”, querendo com isso dizer — Greene explicou — que eles estavam à beira de uma grande época da literatura inglesa e que Shakespeare seria um poeta de alguma importância. Felizmente para ele, foi assassinado duas noites depois, numa briga de bêbados, e assim não viveu para ver como se concretizara a sua predição. “Pobre coitado”, disse Greene, “dizer uma coisa destas. Uma grande época, mesmo — a era elisabetana, uma grande época!”

— Assim, meu caro senhor — continuou, acomodando-se confortavelmente na cadeira e rolando entre os dedos o copo de vinho —, devemos tirar o máximo disto, apreciar o passado e honrar aqueles escritores — há uns poucos deles — que tomam a antiguidade como modelo e escrevem não por dinheiro mas por “Glour”. — (Orlando desejaria uma pronúncia melhor). — A “Glour” — disse Greene — “é o aguilhão das almas nobres. Se eu tivesse uma pensão de trezentas libras ao ano, paga trimestralmente, viveria exclusivamente para a “Glour”. Ficaria na cama todas as manhãs, lendo Cícero. Imitaria seu estilo, de forma que não se pudesse fazer diferença entre nós. Isto é o que eu chamo de boa escrita — disse Greene —, isto é o que eu chamo de “Glour”. Mas é necessário ter uma pensão para fazer isso.

A essa altura, Orlando já perdera toda a esperança de discutir sua obra com o poeta; mas isso importava menos do que a conversa que ora mantinham sobre as vidas e os personagens de Shakespeare, de Ben Jonson e dos demais, todos os quais Greene tinha conhecido intimamente e a respeito de quem tinha mil anedotas divertidas para contar. Orlando nunca rira tanto em sua vida. Esses, então, eram os seus deuses! Metade deles bêbados, todos libertinos. Muitos brigavam com suas mulheres; nenhum estava acima de uma mentira ou de uma intriga torpe. Sua poesia era rabiscada no verso de rolo de roupa, apoiada na cabeça de um aprendiz de tipógrafo, à porta da rua. Assim, Hamlet foi para a impressão; assim, Lear; assim, Otelo. Não é de admirar, como dizia Greene, que estas peças tenham os erros que têm. O resto do tempo era gasto em farras e festejos, em tabernas e cervejarias, onde eram ditas coisas que passavam por inteligentes e onde se faziam coisas tais que, se comparadas às maiores loucuras da corte, estas pareciam ingênuas. Tudo isso Greene contava com uma espirituosidade que despertava em Orlando o mais alto grau de prazer. Ele tinha um poder de mímica que trazia os mortos à vida e podia dizer as mais belas coisas a respeito de livros, desde que tivessem sido escritos há trezentos anos.

Assim passava o tempo, e Orlando sentia por seu hóspede uma estranha mistura de simpatia e desdém, de admiração e pena, bem como alguma coisa muito indefinida para ter qualquer nome, mas era algo de medo e de fascinação. Ele falava incessantemente de si, mas era tão boa companhia que se podia ouvir a vida inteira a história de sua malária. Ora era tão espirituoso; ora tão irreverente; ora tomava liberdade com os nomes de Deus e da Mulher; ora cheio de artimanhas e de estranhos saberes na cabeça; podia preparar uma salada de trezentas maneiras diferentes; sabia tudo sobre a mistura de vinhos; tocava meia dúzia de instrumentos musicais, e foi a primeira pessoa, e talvez a última, a tostar queijo na grande lareira italiana. Que não distinguisse um gerânio de um cravo, um carvalho de uma bétula, um mastim de um galgo, um cordeiro de uma ovelha, trigo de cevada, terra arada de terreno baldio; que ignorasse a rotação das colheitas; pensasse que as laranjas crescessem embaixo da terra e os nabos nas árvores; que preferisse qualquer paisagem da cidade à do campo — tudo isso e muito mais divertia Orlando, que nunca em sua vida encontrara alguém desse tipo. Até as empregadas, que o desprezavam, riam de suas piadas, e os empregados que o detestavam, ficavam por perto para ouvir suas histórias. Na verdade, a casa nunca estivera tão animada quanto agora, que ele estava lá — tudo isso deu a Orlando muitos motivos para pensar e fez com que comparasse esta maneira de viver com a anterior. Lembrou o tipo de conversa que costumava ter sobre a apoplexia do rei da Espanha, ou sobre o cruzamento de uma cadela; relembrou como passava o dia entre os estábulos e o quarto de vestir; lembrou como os Lordes roncavam sobre os copos de vinho e detestavam quem os acordasse. Relembrou quão ativos e valentes eram de corpo; quão preguiçosos e tímidos de espírito. Preocupado com estes pensamentos e incapaz de encontrar um equilíbrio adequado, chegou à conclusão de que admitira em casa um calamitoso espírito de intranquilidade que nunca mais lhe permitiria dormir em paz.




continua pag 42...


(1) Em francês no texto: A Glória. (N.E.)

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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.

No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.

A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).

As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.



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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando... 
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
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