domingo, 23 de agosto de 2020

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (3a.) O General Iván Fiódorovitch Epantchín...

O Idiota


Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


3a.



O General Iván Fiódorovitch Epantchín estava de pé, no meio da sala, e olhava com extrema curiosidade para o jovem que entrava. Deu mesmo dois passos em sua direção.

Míchkin aproximou-se, apresentando-se.

- Perfeitamente - disse o general - em que lhe posso ser útil?

- Não tenho nenhum assunto urgente. O objeto da minha visita é simplesmente travar conhecimento com o senhor. Peço desculpas de incomodá- lo, mas como não conheço seus ajustes e horários para receber visitas. Estou vindo diretamente da estação. Acabo de chegar da Suíça.

O general esteve a ponto de sorrir, mas refletiu melhor e se conteve. Refletiu outra vez, acomodou melhor a vista, examinou seu visitante da cabeça aos pés. Rapidamente aproximou dele uma cadeira, sentou-se, por sua vez, perto, e se virou com impaciente expectativa. Em pé, a um canto do escritório, Gánia arrumava uns papéis.

- Via de regra tenho muito pouco tempo para travar relações, - observou o general - mas como, sem dúvida, o senhor tem em mente algum...

- Eu esperava justamente que o senhor - interrompeu ao príncipe - julgaria ter eu algum motivo especial nesta minha visita. No entanto, posso assegurar-lhe que não tenho nenhum outro a não ser o prazer de travar conhecimento.

- Naturalmente que isso também é um prazer para mim, mas a vida não é feita só de prazeres, o senhor sabe, tem-se, às vezes. trabalho, é claro... De mais a mais, ainda não atinei com o que possa haver de comum entre nós, digamos, a razão, o motivo, o fim...

- Efetivamente não há razão alguma, e o que há de comum realmente é pouco. Ser eu Príncipe Míchkin e a Sra. Epantchiná ser da minha mesma família e nome, não constituem, de fato, razão, basicamente. Compreendo muito bem, Todavia, foi só isso que me trouxe! Passei quatro anos fora da Rússia, o que é muito tempo. E além disso, quando me ausentei, não estava em perfeito juízo. Não conhecia ninguém aqui, nessa ocasião, e agora menos ainda. Preciso procurar gente de bem. Tenho, por exemplo, um negócio de importância a decidir e não sei de quem me valer. Em Berlim me veio a lembrança de que os seus eram, por assim dizer, parentes meus, e que portanto devia começar por aqui. Podemos ser úteis um ao outro: o senhor a mim e eu ao senhor, visto a sua gente ser tão distinta como tantas vezes ouvi declararem que era.

- Isso me desvanece muito... - disse o general, surpreendido. - Permita-me perguntar-lhe onde está hospedado?

- Não estou hospedado em lugar nenhum, por enquanto.

- Veio, então, do trem para aqui? E... sem bagagem?

- Toda a bagagem que possuo é um embrulho com a minha roupa branca; não tenho mais nada, Geralmente o carrego comigo. Terei tempo para tomar um quarto mais tarde.

- Então o senhor pensa tomar um quarto em um hotel?

- Oh! Sim, naturalmente.

- Pelas suas palavras, no começo supus que tivesse vindo para permanecer aqui.

- Isso poderia ser só mediante um seu convite. Confesso todavia, que mesmo se fosse convidado não permaneceria, simplesmente porque seria contra a minha natureza.

- Então, dá no mesmo que eu não o tenha convidado nem o vá convidar. Conceda, príncipe, de maneira a tornar as coisas claras uma vez por todas: desde que estamos de acordo não podermos trazer à baila parentesco nem relações de amizade entre nós, parentesco e relações que aliás muito me desvaneceriam, não há mais nada senão,..

- Senão me levantar e ir embora?!

E Míchkin se ergueu, rindo com positiva jovialidade, apesar de toda a visível dificuldade da sua situação.

- E pode crer, general, conquanto eu desconheça os costumes daqui, e nada saiba da vida prática, que ainda assim estou verificando que o que está acontecendo tinha de se dar. Talvez seja melhor dessa maneira. Aliás já não responderam à minha carta, logo... Bem, até à vista; e desculpe ter incomodado.

O rosto do príncipe foi tão cordial, nesse momento, e o seu sorriso tão limpo da menor sombra de qualquer gênero de malquerença, que o general ficou subitamente surpreso e passou a considerar o seu visitante sob um diferente ponto de vista. Deu-se logo uma mudança total na sua atitude.

- Quer saber de uma coisa, príncipe? Muito embora eu não o conheça - disse com uma voz muito outra - ainda assim Lizavéta Prokófievna gostará decerto de ver uma pessoa que tem o seu mesmo nome. Fique um pouco, se pode e se é que dispõe de tempo.

- Oh! Tempo é que não me falta; é inteiramente propriedade minha - e o príncipe imediatamente depôs o chapéu mole de abas redondas sobre a mesa -. Confesso que espero que Lizavéta Prokófievna venha a se lembrar de que lhe escrevi. O criado do senhor, ainda agora, quando eu estava esperando suspeitou que eu tivesse vindo para implorar auxílio. Percebi isso e concluí que se tratava de ordens estritas dadas a tal respeito. Mas, na verdade, não vim com essa intenção; vim apenas para travar relações. Apenas receio estar atrapalhando, e isso me constrange.

- Bem, príncipe, se realmente é a pessoa que parece ser - disse o general, com um sorriso bem-humorado - deve ser agradável travar relações com o senhor, mas acontece que sou um homem ocupado, como está vendo, e sou obrigado a sentar-me de novo, olhar e assinar certas coisas; depois, devo ir à casa de Sua Alteza e ao escritório da Companhia. Não posso me livrar destas contingências, embora goste de ver pessoas gentis, naturalmente. Estou certo de que é um homem bem-educado.. Qual a sua idade. príncipe?

- Vinte e seis.

- Oh! Pareceu-me bem mais moço.

- Realmente, já me disseram que aparento menos idade. Procurarei não estorvá-lo, pois não gosto de estorvar. E percebo. além do mais, que somos bem diversos, através de diversas circunstâncias, não podendo por isso ter muitos pontos em comum. Entretanto esta minha última proposição pode não valer, pois muitas vezes, parecendo não haver pontos em comum, os há e muitos... É só por comodidade que as pessoas se classificam segundo as aparências, acabando por não acharem nada de comum entre si. Mas, talvez eu o esteja incomodando, o senhor parece que...

- Duas palavras ainda. Tem o senhor recursos, ou pretende seguir alguma espécie de trabalho? Desculpe estar perguntando.

- Aprecio e compreendo a sua pergunta. No momento não disponho de recursos, nem de ocupação, mas terei. O dinheiro último que tive não era de minha propriedade, me foi dado para a viagem pelo Prof. Schneider, que me estava tratando e educando na Suíça. Chegou resvés para a viagem, de maneira que só tenho agora alguns copeques. Há, porém, uma coisa e sobre a qual até preciso muito me aconselhar, mas...

- Diga-me como pretende viver, então, enquanto isso? Quais são os seus planos?

- Desejo trabalhar seja no que for.

- Oh! Então o senhor é um filósofo? Acautelou-se, porém, com alguns talentos, alguma habilitação, fosse o que fosse, de qualquer maneira, de modo a poder ganhar a vida? Mais uma vez me perdoe.

- Oh! Por favor, não me peça desculpas. Não. Suponho que não tenho propensão nem habilitação particular alguma para nada. Pelo contrário, até, pois sou doente e não pude ter uma educação sistemática. Quanto à minha vida, pretendo...

O general interrompeu-o e começou a interrogá-lo. Disse-lhe o príncipe tudo quanto já foi narrado até aqui. Parece que o general já tinha ouvido falar do seu benfeitor Pavlíchtchev e que o conhecera mesmo pessoalmente. Por que se interessara Pavlíchtchev na sua educação, não soube o príncipe explicar; provavelmente, decorrera isso de simples amizade, de longa data, com seu pai. Perdera Míchkin os pais quando era bem criança. Crescera e passara toda a vida no campo, cujo ar era essencial à sua saúde. Pavlíchtchev pusera-o a cargo de umas senhoras de idade, suas parentas, contratando-lhe uma governanta e depois um tutor. Disse o príncipe que, conquanto se recordasse de muita coisa, muitas peripécias havia na sua vida que não saberia explicar porque nunca as viera a entender completamente. Que frequentes ataques de uma moléstia tinham feito dele um idiota - empregou pessoalmente essa palavra “idiota” -. Explicou que Pavlíchtchev encontrara em Berlim o Prof. Schneider, um especialista suíço em tais doenças, com uma instituição no Cantão de Valais, onde cuidava de doentes que sofriam de idiotia e de loucura, tratando-os por métodos próprios, com duchas frias e ginástica, educando-os, superintendendo o desenvolvimento mental deles. E que, então, Pavlíchtchev o mandara para a Suíça, para esse médico, havia aproximadamente cinco anos, tendo, porém, morrido logo dois anos depois, sem ter tomado providências a seu respeito. E que Schneider o conservara durante mais dois anos, continuando o tratamento e a educação; conquanto não o tivesse curado de todo, tinha conseguido melhorar sobremaneira a sua condição. Por último, por deliberação própria, e devido, principalmente, a certo fato que inesperadamente acontecera, o tinha mandado de volta à Rússia. O general ficou muito surpreendido, e perguntou: 

- E o senhor não tem ninguém na Rússia? Absolutamente ninguém? 

- No momento, ninguém. Mas tenho esperanças. Recebi uma carta estranha sobre a qual até... 

O general cortou-lhe a frase, fazendo outra pergunta imediata: 

- Foi o senhor, todavia, treinado, no mínimo, para alguma coisa? Essa sua aflição doentia não o impediria, por exemplo, de ocupar algum posto fácil? 

- Oh! Certamente que não impediria. E como eu ficaria contente com um lugar qualquer! Ao menos para ver de que sou capaz. Estive estudando sem interrupção, durante estes últimos quatro anos, embora por um sistema adequado, inteiramente fora dos planos habituais dos outros. E me entretive muito a ler o russo também. 

- O russo? O senhor conhece, então, a gramática russa, e pode escrever sem erros? 

- Oh! Perfeitamente. 

- Ótimo, ótimo; e a sua caligrafia? 

A minha letra? É excelente. Posso até chamar a isso um talento, pois sou um perfeito calígrafo. Deixe-me escrever-lhe qual quer coisa, como amostra - disse o príncipe, entusiasmando-se com a melhor das boas vontades. 

Sabe bem que é uma coisa essencial, saber escrever. E a sua presteza me agrada, príncipe. O senhor é muito agradável, deixe-me dizer-lhe. 

- Que material esplêndido para escrita, esse que o senhor tem aqui! Que porção de penas! Quantos lápis! Este papel é magnífico! Sempre preferi papel assim compacto! Que maravilhoso escritório. Conheço aquela paisagem. É uma vista da Suíça. Garanto que o artista a pintou no próprio sítio, que aliás também conheço. É no Cantão de Uri... 

- Muito provavelmente. Mas foi comprada aqui. Gánia, dê ao príncipe algum papel. Escolha a pena que quiser. E o papel. Escreva naquela mesinha. Que é isso? - perguntou o general, voltando-se para Gánia que nesse ínterim tinha tirado da pasta uma grande fotografia, tendo-a agora nas mãos. 

- Ah! Nastássia Filíppovna! Foi ela quem lhe mandou? Ela mesma? - perguntou com muita curiosidade e de modo impetuoso. 

- Deu-me agora mesmo. Quando lhe fui levar as minhas congratulações. Há muito tempo que eu lhe vinha pedindo. Nem sei se não teria sido proposital, da parte dela, por ter aparecido lá com as mãos vazias em uma data como esta - ajuntou Gánia com um sorriso desagradável. 

- Oh! Não - afirmou o general com muita convicção -. Que mania tem você de entender as coisas! Provavelmente ela não quis insinuar isso. De mais a mais, não é interesseira. E afinal, que espécie de presente lhe poderia você oferecer? Teria de custar alguns mil rublos! Você lhe poderia dar o seu retrato, talvez? E, a propósito, ela ainda não lhe pediu um retrato seu? 

- Não pediu e, decerto, nunca o fará. Não vá se esquecer da recepção esta noite, Iván Fiódorovitch. Naturalmente, o senhor é um dos mais especialmente convidados. 

- Não me esquecerei. Fique tranquilo que não me esquecerei Hei de ir. Pelo que me parece, ela faz vinte e cinco anos!... Ouça, Gánia, não pretendo contar-lhe um segredo; prepare-se, em todo o caso. Ela nos prometeu, a mim e a Afanássii Ivánovitch, dizer a palavra final, na recepção desta noite. Prepare pois o seu espírito. Gánia ficou tão repentinamente zonzo que empalideceu um pouco 

- Ela disse isso? Deveras? - perguntou ele com voz trêmula 

- Deu-nos a sua promessa, anteontem. Nós a apertamos tanto que acabou prometendo. Mas me recomendou que não lhe dissesse nada antes. 

O general olhou Gánia com firmeza: evidentemente não lhe agradava a perturbação que o outro não sabia disfarçar. 

- Iván Fiódorovitch há de recordar - disse Gánia hesitante e preocupado - que Nastássia Filíppovna me deixou em franca liberdade até que ela resolvesse, ficando ainda assim a decisão como última palavra minha. 

- Que é que você quer dizer com isso?... Que é que você quer dizer com isso? 

O general ficou alarmado. 

- Não quero dizer nada. 

- Veja lá, por Deus, em que situação nos vai você querer deixar! 

- Não estou dizendo que recuso. Não me exprimi bem... 

- Recusar? Que ideia é essa? - perguntou o general, patenteando bem a sua decepção. - Não se trata de recusar, sabemos, meu rapaz. Trata-se da presteza do prazer e do júbilo com que você deve receber a notícia de uma tal promessa... As coisas em casa, como vão? 

- Isso não importa! Quem decide as coisas em casa sou eu. Só meu pai é que continua a se fazer de maluco, como de hábito; o senhor sabe bem a que ponto lastimável ele chegou. Não nos falamos; mas estou sempre de olho nele e, se não fosse minha mãe, já o teria posto fora de casa. Minha mãe não faz outra coisa senão chorar, é lógico; minha irmã emburra. Mas já lhes disse de uma vez para sempre que faço o que quero e que em casa quem manda sou eu... Esclareci isto muito direitinho à minha irmã, na presença de minha mãe. 

- Ora aí está um ponto que ainda não consegui compreender, meu rapaz - observou o general, como que meditando; depois, mexendo com as mãos e encolhendo os ombros, prosseguiu - Nina Aleksándrovna, no outro dia, quando me veio ver, soluçou e se lastimou; você há de se lembrar. Que seria? me pergunto eu. Parece que considera uma desonra. Mas permita que pergunte: Desonra em quê e por quê? De que se pode exprobrar Nastássia Filíppovna? Que se pode censurar nela? Ter vivido com Tótskii? Mas, dadas as circunstâncias, isso é tão pueril! “O senhor não a apresentaria às suas filhas!” diz ela. Bem, e que mais? Como é que ela não enxerga? Como é que ela não entende... 

- Não entende o quê? A sua própria situação? - insinuou Gánia ao general que se interrompera embaraçado. 

- Que quer o senhor? Não há meios dela entender, mas não se zangue com ela por isso. Já lhe dei uma lição para não se intrometer mais em assuntos alheios. E olhe, se em casa todavia ainda estão relativamente quietos é por não ter Nastássia Filíppovna dado uma resposta definitiva! Mas a tempestade está próxima. Tão próxima, que será hoje, na certa, que se desencadeará. 

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