domingo, 2 de agosto de 2020

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo II

D. Quixote de la Mancha


Miguel de Cervantes

Vol 1



O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 

Miguel de Cervantes



PRIMEIRA PARTE

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO II

Que trata da primeira saída que de sua terra fez o engenhoso D. Quixote.

CONCLUÍDOS pois todos estes arranjos, não quis retardar mais o pôr em efeito o seu pensamento, estimulando-o a lembrança da falta que estava já fazendo ao mundo a sua tardança, segundo eram os agravos que pensava desfazer, sem-razões que endireitar, injustiças que reprimir, abusos que melhorar, e dívidas que satisfazer. 

E assim, sem a ninguém dar parte da sua intenção, e sem que ninguém o visse, uma manhã antes do dia, que era um dos encalmados de Julho, apercebeu-se de todas as suas armas, montou-se no Rocinante, posta a sua celada feita à pressa, embraçou a sua adarga, empunhou a lança, e pela porta furtada de um pátio se lançou ao campo, com grandíssimo contentamento e alvoroço, de ver com que felicidade dava princípio ao seu bom desejo.

Mas, apenas se viu no campo, quando o assaltou um terrível pensamento, e tal, que por pouco o não fez desistir da começada empresa: lembrou-lhe não ter sido ainda armado cavaleiro, e que, segundo a lei da cavalaria, não podia nem devia tomar armas com algum cavaleiro; e ainda que as tomara, havia de levá-las brancas, como cavaleiro donzel, sem empresa no escudo enquanto por seu esforço a não ganhasse.

Estes pensamentos não deixaram de lhe abalar os propósitos; mas, podendo nele mais a loucura do que outra qualquer razão, assentou em que se faria armar cavaleiro por algum que topasse, à imitação de muitos que também assim o fizeram, segundo ele tinha lido nos livros do seu uso; e, quanto a armas brancas, limparia as suas por modo, logo que para isso tivesse lugar, que nem um arminho lhes ganhasse.

Com isto serenou, e seguiu jornada por onde ao cavalo apetecia, por acreditar que nisso consistia a melhor venida para as aventuras.

Indo pois caminhando o nosso flamante aventureiro, conversava consigo mesmo e dizia:

— Quem duvida de que lá para o futuro, quando sair à luz a verdadeira história dos meus famosos feitos, o sábio que os escrever há-de pôr, quando chegar à narração desta minha primeira aventura tão de madrugada, as seguintes frases: “Apenas tinha o rubicundo Apolo estendido pela face da ampla e espaçosa terra as doiradas melanias dos seus formosos cabelos, e apenas os pequenos e pintados passarinhos, com as suas farpadas línguas, tinham saudado, com doce e melíflua harmonia, a vinda da rosada aurora, que, deixando a branda cama do zeloso marido, pelas portas e varandas do horizonte manchego aos mortais se mostrava; quando o famoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha, deixando as ociosas penas, se montou no seu famoso cavalo Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (e era verdade, que por esse mesmo campo é que ele ia);” e continuou dizendo: “Ditosa idade e século ditoso, aquele em que hão-de sair à luz as minhas famigeradas façanhas dignas de gravar-se em bronze, esculpir-se em mármores, e pintar-se em painéis para lembrança de todas as idades!” Ó tu, sábio encantador (quem quer que sejas) a quem há-de tocar ser o cronista desta história, peço-te que te não esqueças do meu bom Rocinante, meu eterno companheiro em todos os caminhos e carreiras.

E logo passava a dizer, como se verdadeiramente fora enamorado:

— Ó Princesa Dulcinéia, senhora deste cativo coração, muito agravo me fizestes em despedir-me e vedar-me com tão cruel rigor que aparecesse na vossa presença. Apraza-vos, senhora, lembrar-vos deste coração tão rendidamente vosso, que tantas mágoas padece por amor de vós.

E como estes ia tecendo outros disparates, todos pelo teor dos que havia aprendido nos seus livros, imitando, conforme podia, o próprio falar deles; e com isto caminhava tão vagaroso, e o sol caía tão rijo, que de todo lhe derretera os miolos se alguns tivera.

Caminhou quase todo o dia sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada; com o que ele se amofinava, pois era todo o seu empenho topar logo logo onde provar o valor do seu forte braço.

Dizem alguns autores que a sua primeira aventura foi a de Porto Lápice; outros, que foi a dos moinhos de vento. Mas o que eu pude averiguar, e o que achei escrito nos anais da Mancha, é que ele andou todo aquele dia, e, ao anoitecer, ele com o seu rocim se achava estafado e morto de fome; e que, olhando para todas as partes, a ver se se lhe descobriria algum castelo, ou alguma barraca de pastores, onde se recolher, e remediar sua muita necessidade, viu não longe do caminho uma venda, que foi como aparecer-lhe uma estrela que o encaminhava, se não ao alcáçar, pelo menos aos portais da sua redenção.

Deu-se pressa em caminhar, e chegou a tempo, que já a noite se ia cerrando.

Achavam-se acaso à porta duas mulheres moças, destas que chamam de boa avença, as quais se iam a Sevilha com uns arrieiros, que nessa noite acertaram de pousar na estalagem.

E como ao nosso aventureiro tudo quanto pensava, via, ou imaginava, lhe parecia real, e conforme ao que tinha lido, logo que viu a locanda se lhe representou ser um castelo com suas quatro torres, e coruchéus feitos de luzente prata, sem lhe faltar sua ponte levadiça, e cava profunda, e mais acessórios que em semelhantes castelos se debuxam.

Foi-se chegando à pousada (ou castelo, pelo que se lhe representava); e a pequena distância colheu as rédeas a Rocinante, esperando que algum anão surdiria entre as ameias a dar sinal de trombeta por ser chegado cavaleiro ao castelo.

Vendo porém que tardava, e que Rocinante mostrava pressa em chegar à estrebaria, achegou-se à porta da venda, e avistou as duas divertidas moças que ali estavam, que a ele lhe pareceram duas formosas donzelas, ou duas graciosas damas, que diante das portas do castelo se espaireciam.

Sucedeu acaso que um porqueiro, que andava recolhendo de uns restolhos a sua manada de porcos (que este, sem faltar à cortesia, é que é o nome deles), tocou uma buzina a recolher. No mesmo instante se figurou a D. Quixote o que desejava; a saber: que lá estava algum anão dando sinal da sua vinda. E assim, com estranho contentamento, chegou à venda e às damas.

Elas, vendo acercar-se um homem daquele feitio, e com lança e adarga, cheias de susto já se iam acolhendo à venda, quando D. Quixote, conhecendo o medo que as tomara, levantando a viseira de papelão, e descobrindo o semblante seco e empoeirado, com o tom mais ameno e voz mais repousada lhes disse:

— Não fujam Suas Mercês, nem temam desaguisado algum, porquanto a Ordem de cavalaria que professo a ninguém permite que ofendamos, quanto mais a tão altas donzelas, como se está vendo que ambas sois.

Miravam-no as moças, e andavam-lhe com os olhos procurando o rosto, que a desastrada viseira em parte lhe encobria; mas como se ouviram chamar donzelas, coisa tão alheia ao seu modo de vida, não puderam conter o riso; e foi tanto, que D. Quixote chegou a envergonhar-se e dizerlhes:

— Comedimento é azul sobre o ouro da formosura; e demais, o rir sem causa grave denuncia sandice. Não vos digo isto para que vos estomagueis, que a minha vontade outra não é senão servir-vos.

A linguagem que as tais fidalgas não entendiam, e o desajeitado do nosso cavaleiro, ainda acrescentavam nelas as risadas, e estas nele o enjôo; e adiante passara, se a ponto não saísse o vendeiro, sujeito que por muito gordo era muito pacífico de gênio. Este, vendo aquela despropositada figura, com arranjos tão disparatados como eram os aparelhos, as armas, lança, adarga, e corsolete, esteve para fazer coro com as donzelas nas mostras de hilaridade. Mas, reparando melhor naquela quantia de petrechos, teve mão em si, assentou em lhe falar comedidamente, e disse-lhe desta maneira:

— Se Vossa Mercê, senhor cavaleiro, busca pousada, excetuando o leito (porque nesta venda nenhum há) tudo mais achará nela de sobejo.

Vendo D. Quixote a humildade do “alcaide da fortaleza”, respondeu:

— Para mim, senhor castelão, qualquer coisa basta porque

“minhas pompas são as armas,
meu descanso o pelejar.” etc.

Figurou-se ao locandeiro que o nome de castelão seria troca de castelhano (ainda que ele era andaluz, e dos da praia de S. Lucar, que em tunantes não lhe ficam atrás, e são mais ladrões que o próprio Caco, e burlões como estudante ou pajem); e assim lhe respondeu:

— Segundo isso (como também lá reza a trova),

“colchões lhe serão as penhas,
e o dormir sempre velar.”

E sendo assim, pode muito bem apear-se, com a certeza de achar nesta choça ocasião e ocasiões para não dormir em todo um ano, quanto mais uma noite.

E dito isto, foi segurar no estribo a D. Quixote, o qual se apeou com muita dificuldade e trabalho, como homem que em todo o dia nem migalha tinha provado.

Disse logo ao hospedeiro que tivesse muito cuidado naquele cavalo, porque era a melhor peça de quantas consumiam pão neste mundo.

Reparou nele o vendeiro, e nem por isso lhe pareceu tão bom como D. Quixote lhe dizia, e nem metade. Acomodou-o na cavalariça, e voltou a saber o que o seu hóspede mandava; achou-o já às boas com as donzelas, que o estavam desarmando. Do peito de armas e couraça bem o tinham elas desquitado; mas o que nunca puderam, foi desencaixar-lhe a gola, nem tirar-lhe a composta celada, que trazia atada com umas fitas verdes, com tão cegos nós, que só cortando-as; no que ele de modo nenhum consentiu.

E assim passou a noite com a celada posta, que era a mais extravagante e graciosa figura que se podia imaginar.

Enquanto o estiveram desarmando, ele, que imaginava serem damas e senhoras, das principais do castelo, aquelas duas safadas firmas, com muito donaire lhes repetia:

— Nunca fora cavaleiro
de damas tão bem servido,
como ao vir de sua aldeia
D. Quixote o esclarecido:
donzelas tratavam dele,
princesas do seu rocim,


ou Rocinante, que este é o nome do meu cavalo, senhoras minhas, e D. Quixote de la Mancha o meu. Não quisera eu descobrir-me, até que as façanhas, obradas em vosso serviço e prol, por si me proclamassem; mas a necessidade de acomodar ao lance presente este romance antigo de Lançarote ocasionou que viésseis a saber o meu nome antes de tempo. Dia porém virá em que Vossas Senhorias me intimem suas ordens, e eu lhas cumpra, mostrando com o valor do meu braço o meu grande desejo de servir-vos.

As moças, que não andavam correntes em semelhantes retóricas, não respondiam palavra; unicamente lhe perguntaram se queria comer alguma coisa.

— Da melhor vontade, e seja o que for — respondeu D. Quixote —, porque, segundo entendo, bom prol me faria.

Quis logo a mofina que fosse aquele dia uma sexta-feira, não havendo na locanda senão umas postas de um pescado, que em Castela se chama abadejo, e em Andaluzia bacalhau, noutras partes curadillo, e noutras truchuela.

Perguntaram-lhe se porventura comeria Sua Mercê truchuela, atendendo a não haver por então outro conduto.

— Muitas truchuelas — respondeu D. Quixote — que são diminutivos, somarão uma truta; tanto me vale que me dêem oito reais pegados, como em miúdos. E quem sabe se as tais truchuelas não serão como a vitela, que é melhor do que a vaca, como o cabrito é mais saboroso que o bode? Seja porém o que for, venha logo, que o trabalho e peso das armas não se pode levar sem o governo das tripas.

Puseram-lhe a mesa à porta da venda para estar mais à fresca, e trouxe-lhe o hospedeiro uma porção do mal remolhado e pior cozido bacalhau, e um pão tão negro e de tão má cara, como as armas de D. Quixote.

Pratinho para boa risota era vê-lo comer; porque, como tinha posta a celada e a viseira erguida, não podia meter nada para a boca por suas próprias mãos; e por isso uma daquelas senhoras o ajudava em tal serviço. Agora o dar-lhe de beber é que não foi possível, nem jamais o seria, se o vendeiro não furara os nós de uma cana, e, metendo-lhe na boca uma das extremidades dela, lhe não vazasse pela outra o vinho. Com tudo aquilo se conformava o sofrido fidalgo, só por se lhe não cortarem os atilhos da celada.

Nisto estavam, quando à venda chegou um capador de porcos e deu sinal de si correndo a sua gaita de canas quatro ou cinco vezes; com o que se acabou de capacitar D. Quixote de que estava em algum famoso castelo, e o serviam com música, e que o abadejo eram trutas, o pão candial, as duas mulherinhas damas, e o vendeiro castelão do castelo; e com isto dava por bem empregada a sua determinação e saída.

O que porém sobretudo o desassossegava era não se ver ainda armado cavaleiro, por lhe parecer que antes disso não lhe era dado entrar por justos cabais em aventura alguma.







continua página 33...

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Leia também:

D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo III

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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho
Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 

Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com



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