sábado, 1 de agosto de 2020

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.4) - O pai deu-lhe com as costas da mão

Cem Anos de Solidão



Gabriel Garcia Márquez


(1.4)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío



continuando...



O pai deu-lhe com as costas da mão uma violenta bofetada na boca, que lhe fez saltarem o sangue e as lágrimas. Essa noite, Pilar Temera pôs compressas de arnica na inchação, adivinhando no escuro o frasco e os algodões, e fez-lhe todas as vontades sem que ele se incomodasse, para amálo sem machucá-lo. Chegaram a tal estado de intimidade que um momento depois, sem se dar conta, estavam falando por cochichos. 

— Quero ficar sozinho com você — dizia ele. — Um dia conto tudo a todo mundo e se acabam os segredos. Ela não tentou apaziguá-lo.

— Seria ótimo — disse. — Se estivermos sozinhos, deixamos a luz acesa para nos vermos bem, e eu posso gritar tudo o que quiser sem que ninguém tenha que se meter, e você me diz no ouvido todas as porcarias que lhe vierem à cabeça.

Esta conversa, o rancor magoado que sentia contra o pai, e a iminente possibilidade do amor desaforado, inspiraram-lhe uma serena valentia. De modo espontâneo, sem nenhuma preparação, contou tudo ao irmão.

No princípio, o pequeno Aureliano só compreendia o risco, a imensa possibilidade de perigo que implicavam as aventuras de seu irmão, mas não conseguia imaginar a fascinação do objetivo. Pouco a pouco se foi contaminando de ansiedade. Fazia-o contar as minuciosas peripécias, identificava-se com o sofrimento e o gozo do irmão, sentia-se assustado e feliz. Esperava-o acordado até o amanhecer, na cama solitária que parecia ter uma esteira de brasas, e continuavam falando sem sono até a hora de levantar, de modo que em pouco tempo padeceram ambos da mesma sonolência, sentiram o mesmo desprezo pela alquimia e pela sabedoria do pai, e se refugiaram na solidão. “Estes meninos andam sorumbáticos”, dizia Úrsula. “Devem estar com lombrigas.” Preparou-lhes uma repugnante poção de erva-de-santa-maria amassada, que ambos beberam com imprevisto estoicismo, e se sentaram ao mesmo tempo nos penicos, onze vezes num só dia, e expulsaram umas parasitas rosadas, que mostraram a todos com grande júbilo, porque lhes permitiram enganar Úrsula quanto à origem das suas distrações e langores. Aureliano podia, então, não só entender, mas também viver como coisa própria as experiências de seu irmão, porque numa ocasião em que este explicava com muitos pormenores o mecanismo do amor, interrompeu-o para perguntar: “O que é que se sente?” José Arcadio deu-lhe uma resposta imediata:

— É como um tremor de terra.

Numa quinta-feira de janeiro, às duas da madrugada, nasceu Amaranta. Antes que alguém entrasse no quarto, Úrsula examinou-a minuciosamente. Era leve e aquosa como uma lagartixa, mas todas as suas partes eram humanas. Aureliano não se deu conta da novidade a não ser quando sentiu a casa cheia de gente. Protegido pela confusão, saiu em busca do irmão, que não estava na cama desde as onze, e foi uma decisão tão impulsiva que nem sequer teve tempo de se perguntar como faria para tirá-lo do quarto de Pilar Ternera. Esteve rondando a casa por várias horas, assoviando senhas próprias,que a proximidade da madrugada obrigou-o a regressar.No quarto da mãe, brincando com a irmãzinha recém-nascida e com uma cara que caía de inocente, encontrou José Arcadio.

Úrsula mal havia cumprido o seu resguardo de quarenta dias quando os ciganos voltaram. Eram os mesmos saltimbancos e malabaristas que haviam trazido o gelo. Em contraste com a tribo de Melquíades, tinham demonstrado em pouco tempo que não eram arautos do progresso e sim mercadores de diversões. Inclusive, quando trouxeram o gelo, não o anunciaram em função da sua utilidade na vida dos homens, mas como uma mera curiosidade de circo. Desta vez, entre muitos os jogos de artifício, traziam um tapete voador. Não o ofereceram, porém, como uma contribuição fundamental para o desenvolvimento dos transportes e sim como um objeto de recreação. O povo, evidentemente, desenterrou os seus últimos tostões para desfrutar de um voo fugaz sobre as casas aldeia. Amparados pela deliciosa impunidade da desordem coletiva, José Arcadio e Pilar viveram horas de folga. Foram namorados felizes entre a multidão, e até chegaram a suspeitar de que o amor podia ser um sentimento mais repousado e profundo que a felicidade arrebatada, mas momentânea, suas noites secretas. Pilar, entretanto, quebrou o encanto. Estimulada pelo entusiasmo com que José Arcadio desfrutava a sua companhia, escolheu errado a forma e a ocasião e de um só golpe jogou-lhe o mundo nos ombros. “Agora sim você é um homem”, disse a ele. E como não entendesse o que ela queria dizer, explicou-lhe letra por letra:

— Você vai ser pai.

José Arcadio não se atreveu a sair de casa durante vários dias. Bastava escutar a gargalhada trepidante de Pilar na cozinha para se esconder correndo no laboratório, onde os aparelhos de alquimia tinham revivido, com a bênção de Úrsula. José Arcadio Buendía recebeu com alvoroço o filho extraviado, e iniciou-o na busca da pedra filosofal, que tinha por fim empreendido. Uma tarde, os rapazes se entusiasmaram com o tapete voador, que passou veloz ao nível da janela do laboratório, levando o cigano condutor e várias crianças da aldeia, que faziam alegres cumprimentos com a mão, e José Arcadio Buendía nem sequer olhou. “Deixem que sonhem”, disse. “Nós voaremos melhor que eles, com recursos mais científicos que essa miserável colcha.” Apesar do seu fingido interesse, José Arcadio nunca entendeu os poderes do ovo filosófico, que simplesmente lhe parecia um frasco malfeito. Não conseguia fugir da preocupação. Perdeu o apetite e o sono, sucumbiu ao mau humor igual ao pai diante do fracasso de alguma das suas empresas, e foi tal o seu transtorno que o próprio José Arcadio Buendía o liberou dos deveres no laboratório, achando que ele tinha levado a sério demais a alquimia. Aureliano, evidentemente, percebeu que a aflição do irmão não tinha origem na busca da pedra filosofal, mas não lhe conseguiu arrancar nem uma confidência. Tinha perdido a sua antiga espontaneidade. De cúmplice e comunicativo fez-se hermético e hostil. Ansioso de solidão, picado por um virulento rancor contra o mundo, certa noite abandonou a cama como de costume, mas em vez de ir à casa de Pilar Ternera perdeu-se no tumulto da feira. Depois de perambular por toda espécie de máquinas de diversão sem se interessar por nenhuma, fixou-se em algo que não estava no jogo: uma cigana muito jovem, quase uma garota, afogada em miçangas, a mulher mais bela que José Arcadio tinha visto na vida. Estava entre a multidão que presenciava o triste espetáculo do homem que se transformara em víbora por desobedecer aos pais.

José Arcadio não prestou atenção. Enquanto se desenrolava o triste interrogatório do homem-víbora, tinha aberto caminho entre a multidão até a primeira fila, onde se encontrava a cigana, e tinha se detido atrás dela. Apertou-se contra as suas costas. A moça tentou se afastar, mas José Arcadio se apertou com mais força contra as suas costas. Então, ela o sentiu. Ficou imóvel contra ele, tremendo de surpresa e pavor, sem poder acreditar na evidência, e por fim voltou a cabeça e olhou para ele com um sorriso trêmulo. Nesse instante, dois ciganos meteram o homem-víbora na jaula e o levaram para o interior da tenda. O cigano que dirigia o espetáculo anunciou:

— E agora, senhoras e senhores, vamos apresentar a prova terrível da mulher que terá que ser decapitada todas as noites a esta hora, durante cento e cinqüenta anos, como castigo por ter visto o que não devia.

José Arcadio e a moça não presenciaram a decapitação. Foram à barraca dela, onde se beijaram com uma ansiedade desesperada enquanto iam tirando a roupa. A cigana se desfez de suas camisetas superpostas, das suas numerosas anáguas de renda engomada, do seu inútil espartilho de arame, da sua carga de miçangas, e ficou praticamente reduzida a nada. Era uma rãzinha lânguida, de seios incipientes e pernas finas que não ganhavam em diâmetro aos braços de José Arcadio, mas tinha uma decisão e um calor que compensava sua fragilidade. Entretanto, José Arcadio não podia corresponder, porque estavam numa espécie de tenda pública, por onde os ciganos passavam com os seus instrumentos de circo e arrumavam as suas coisas, e até se demoravam junto à cama para jogar uma partida de dados. A lâmpada pendurada no mastro central iluminava todo o âmbito. Numa pausa das carícias, José Arcadio estirou-se nu na cama, sem saber o que fazer enquanto a moça tratava de excitá-lo. Uma cigana de carnes esplêndidas entrou pouco depois, acompanhada de um homem que não fazia parte da farândola, mas que tampouco era da aldeia, e ambos começaram a despir-se diante da cama. Distraidamente, a mulher olhou para José Arcadio e examinou com uma espécie de fervor patético o seu magnífico animal em repouso.

— Rapaz — exclamou — que Deus o conserve para ti.

A companheira de José Arcadio pediu-lhes que os deixassem em paz, e o casal se deitou no chão, muito perto da cama. A paixão dos outros despertou a febre de José Arcadio. Ao primeiro contato, os ossos da moça pareceram se desarticular, com um rangido desordenado como o de um fichário de dominó, e a sua pele se desfez num suor pálido e os seus se encheram de lágrimas e todo o seu corpo exalou um rito lúgubre e um vago cheiro de lodo. Mas suportou o impacto com uma firmeza de ânimo e uma valentia admiráveis. José Arcadio se sentiu então etereamente elevado a um estado de inspiração seráfica, onde o seu coração se desbaratou num manancial de obscenidades ternas que entravam na moça pelos ouvidos e lhe saíam pela boca, traduzidas ao seu idioma. Era quinta-feira. Na noite de sábado, José Arcadio amarrou um pano vermelho na cabeça e foi-se embora com os ciganos.

Quando Úrsula descobriu a sua ausência, procurou-o por toda a aldeia. No acampamento desmanchado dos ciganos, não havia mais que uma vala de detritos, entre as cinzas ainda fumegantes das fogueiras apagadas. Alguém que andava por ali procurando miçangas no lixo disse a Úrsula que na noite anterior tinha visto o seu filho no tumulto da farândola, puxando uma carreta com a jaula do homem-víbora.

“Entrou pra cigano!”, gritou ela ao marido, que não tinha dado o menor sinal de alarme pelo desaparecimento.

— Oxalá seja verdade — disse José Arcadio Buendía, amassando no almofariz a matéria mil vezes amassada e reaquecida e tornada a amassar. — Assim vai aprender a ser homem.

Úrsula perguntou por onde tinham ido os ciganos. Continuou perguntando no caminho que lhe indicaram, e pensando que ainda tinha tempo de alcançá-los, continuou se afastando da aldeia, até que teve consciência de estar tão longe que já não pensou mais em voltar. José Arcadio Buendía não deu falta da mulher senão às oito da noite, quando deixou a matéria esquentando numa camada de esterco, e foi ver o que estava acontecendo com a pequena Amaranta, que estava rouca de tanto chorar. Em poucas horas, reuniu um grupo de homens bem equipados, pôs Amaranta nas mãos de uma mulher que se ofereceu para amamentá-la, e se perdeu por caminhos invisíveis atrás de Úrsula. Aureliano os acompanhou. Alguns pescadores indígenas, cuja língua desconheciam, indicaram-lhes por sinais, ao amanhecer, que não tinham visto ninguém passar. Ao fim de três dias de busca inútil, regressaram à aldeia. Durante várias semanas, José Arcadio Buendía deixou-se vencer pela consternação. Ocupava-se como mãe da pequena Amaranta. Banhava-a e mudava-lhe a roupa, levava-a para ser amamentada quatro vezes por dia e até cantava para ela, de noite, as canções que Úrsula nunca soube cantar. Certa ocasião, Pilar Ternera se ofereceu para fazer os serviços da casa, enquanto Úrsula não voltava. Aureliano, cuja misteriosa intuição se tinha sensibilizado com a desgraça, experimentou um fulgor de clarividência ao vê -la entrar. Então soube que, de um modo inexplicável, era dela a culpa da fuga do irmão e o consequente desaparecimento da mãe, e a perseguiu de tal maneira, com uma calada e implacável hostilidade, que a mulher não voltou mais à casa.

O tempo pôs as coisas no lugar. José Arcadio Buendía e o filho viram-se outra vez no laboratório, sacudindo a poeira, botando fogo no alambique, entregues uma vez mais à paciente manipulação da matéria adormecida há vários meses na sua camada de esterco. Até Amaranta, deitada num cestinho de vime, observava com curiosidade o absorvente trabalho do pai e do irmão, no quartinho rarefeito pelos vapores do mercúrio. A certa altura, meses depois da partida de Úrsula, começaram a acontecer coisas estranhas. Um frasco vazio que durante muito tempo esteve esquecido num armário,fez-se tão pesado que foi impossível movê-lo. Uma chaleira d’água, colocada na mesa de trabalho, ferveu sem fogo durante meia hora, até evaporar-se a água por completo. José Arcadio Buendía e seu filho observavam aqueles fenômenos com assustado alvoroço, sem conseguir explicá-los, mas interpretando-os como anúncios da matéria. Um dia, o cestinho de Amaranta começou a se mover com impulso próprio e deu uma volta completa no quarto, diante da consternação de Aureliano, que se apressou em detê-lo. Mas seu pai não alterou. Pôs o cestinho no lugar e amarrou-o na perna de uma mesa, convencido de que o acontecimento esperado era iminente. Foi esta a ocasião em que Aureliano ouviu-o dizer:

— Se você não teme Deus, tema os metais.

De repente, quase cinco meses depois do seu desaparecimento, Úrsula voltou. Chegou exaltada, rejuvenescida, com roupas novas, de um estilo desconhecido na aldeia. José Arcadio Buendía mal pôde resistir ao impacto. “Era isto!”, gritava. “Eu sabia que ia acontecer.” E acreditava mesmo nisto, porque nas suas concentrações, enquanto manipulava a matéria, rogava do fundo do seu coração que o prodígio esperado não fosse a descoberta da pedra filosofal, nem a liberação do sopro que faz viverem os metais, nem a faculdade de transformar em ouro as dobradiças e fechaduras da casa, mas o que agora tinha acontecido: a volta de Úrsula. Mas ela não compartilhava do seu alvoroço. Deu-lhe um beijo convencional, como se não tivesse estado ausente mais de uma hora, e lhe disse:

— Chegue aqui na porta.

José Arcadio Buendía levou muito tempo para se restabelecer da perplexidade, quando saiu na rua e viu a multidão. Não eram ciganos. Eram homens e mulheres como ele, de cabelos lisos e pele parda, que falavam a sua mesma língua e se lamentavam das mesmas dores. Traziam mulas carregadas de coisas de comer, carroças de bois com móveis e utensílios domésticos, puros e simples acessórios terrestres postos à venda sem estardalhaço pelos mercadores da realidade cotidiana. Vinham do outro lado do pântano, de a apenas dois dias de viagem, onde existiam povoados que recebiam o correio todos os meses e conheciam as máquinas do bem-estar. Úrsula não tinha alcançado os ciganos, mas encontrara a rota que seu marido não tinha podido descobrir na sua frustrada busca das grandes invenções.





continua página 28...

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Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.2) - Quando os ciganos voltaram...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.3) - Quando o pirata Francis Drake assaltou
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