terça-feira, 18 de agosto de 2020

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




I . Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade do meio físico e sua reflexão na História. Ação do meio na fase inicial da formação das raças. A formação brasileira no Norte.

II . Gênese do jagunço; colaterais prováveis dos paulistas. Função histórica do rio S. Francisco. O vaqueiro, mediador entre o bandeirante e o padre. Fundações jesuíticas na Bahia. Um parêntese irritante. Causas favoráveis à formação mestiça dos sertões, distinguindo-a dos cruzamentos no litoral. Uma raça forte.

III . O sertanejo. Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho. Os vaqueiros. Servidão inconsciente; vida primitiva. A vaquejada e a arribada. Tradições. A seca. Insulamento no deserto. Religião mestiça; seus fatores históricos. Caráter variável da religiosidade sertaneja: a Pedra Bonita e Monte Santo. As missões atuais.

IV . Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo. Um gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso, representante natural do meio em que nasceu. Antecedentes de família: os Maciéis. Uma vida bem auspiciada. Primeiros reveses; e a queda. Como se faz um monstro. Peregrinações e martírios. Lendas. As prédicas. Preceitos de montanista. Profecias. Um heresiarca do século II em plena idade moderna. Tentativas de reação legal. Hégira para o sertão.

V . Canudos — antecedentes — aspecto original — e crescimento vertiginoso. Regime da urbs. Polícia de bandidos. População multiforme. O templo. Estrada para o céu. As rezas. Agrupamentos bizarros. Por que não pregar contra a República? Uma missão abordada. Maldição sobre a Jerusalém de taipa.




I





Complexidade do problema etnológico no Brasil


Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos. 

Está apenas delineado.

Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a pré-história indígena patenteiam modelos de observação sutil e conceito crítico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente firmado, contravindo ao pensar dos caprichosos construtores da ponte Alêutica, o autoctonismo das raças americanas.

Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacam-se o nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça organização científica de Meyer, a rara lucidez de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gliddon no definir, de uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erige-se autônomo entre as raças o homo americanus.

A face primordial da questão ficou assim aclarada. Quer resultem do “homem da Lagoa Santa” cruzado com o pré-colombiano dos “sambaquis”; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte, de que se supõem oriundos dos tupis tão numerosos na época do descobrimento — os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa terra.

Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena, as investigações convergiram para a definição da sua psicologia especial; e enfeixaram-se, ainda, em algumas conclusões seguras.

Não precisamos revivê-las. Sobre faltar-nos competência, nos desviaríamos muito de um objetivo prefixado.

Os dous outros elementos formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O negro banto, ou cafre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.

Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado.

Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciador — e ainda, sob todas as suas formas, as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e opostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas.

É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indoguarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.

É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema.

É fácil demonstrar.

Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três elementos constituintes de nossa raça em si mesmos, intactas as capacidades que lhes são próprias.

Vemos, de pronto, que, mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitável determina, no caso mais simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram-se; originam número igual de subformações — substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mameluco ou curiboca, e o cafuz.1 As sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravando-o e dificultando-o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante as dosagens variáveis do sangue.

O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima afirmado, só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.

Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos sucessivos do mulato, do curiboca e do cafuz.

Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado diferente nos diferentes tratos do território; as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.

Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os nossos antropólogos. Forrando-se, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de subjetivismo no ânimo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de cousas tão sérias, com uma volubilidade algo escandalosa, atentas às proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica sonhadora alguns precipitados fictícios.

Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígine.

Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica; devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas, porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias.

Outros vão terra a terra demais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam-no o mais característico tipo da nossa subcategoria étnica.

O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.

Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único, quando há, certo, muitos.

Não temos unidade de raça.

Não a teremos, talvez, nunca.

Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.

Estamos condenados à civilização.

Ou progredimos, ou desaparecemos.

A afirmativa é segura.

Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram.

A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns momentos.





continua 030...

______________________

Leia também:

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: III O clima
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV As caatingas
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV A tormenta
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: V Como se extingue o deserto
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: I Variabilidade do meio físico

______________________

Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.



Nenhum comentário:

Postar um comentário