"a vida metódica de um casal que abre mão das suas individualidades para serem um só corpo e assim tornarem-se obedientes as normas sociais... a religião... pensando no passado ou no futuro, esquecendo o presente que inventa, conduz e desobedece, escolheram a tarefa de serem iguais aos demais, anônimos do clube das pessoas da família patriarcal que obedecem ao que os outros esperam delas, até que envelhecidos paramos de olhar para os outros e percebemos a nós mesmos e... passamos a obedecer a nós mesmos ou continuamos obedientes?"
Releitura semiótica dos contos da Clarice Lispector
- Os obedientes
"Trata-se de uma situação simples, um fato a contar e esquecer.
Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé
afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que também nós nos arriscamos,
já não se trata mais de um fato a contar, começam a faltar as palavras que não o trairiam. A essa
altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se tornar apenas a sua difusa
repercussão. Que, se for retardada demais, vem um dia explodir como nesta tarde de domingo,
quando há semanas não chove e quando, como hoje, a beleza ressecada persiste embora em
beleza. Diante da qual assumo uma gravidade como diante de um túmulo. A essa altura, por
onde anda o fato inicial? ele se tornou esta tarde. Sem saber como lidar com ela, hesito em ser
agressiva ou recolher-me um pouco ferida. O fato inicial está suspenso na poeira ensolarada deste
domingo - até que me chamam ao telefone e num salto vou lamber grata a mão de quem me ama
e me liberta.
Cronologicamente a situação era a seguinte: um homem e uma mulher estavam casados.
Já em constatar este fato, meu pé afundou dentro.
Fui obrigada a pensar em alguma coisa. Mesmo que eu nada mais dissesse, e encerrasse a
história com esta constatação, já me teria comprometido com os meus mais desconhecíveis
pensamentos. Já seria como se eu tivesse visto, risco negro sobre fundo branco, um homem e
uma mulher. E nesse fundo branco meus olhos se fixariam já tendo bastante o que ver, pois toda
palavra tem a sua sombra.
Esse homem e essa mulher começaram - sem nenhum objetivo de ir longe demais, e não se
sabe levados por que necessidade que pessoas têm - começaram a tentar viver mais intensamente.
A procura do destino que nos precede? e ao qual o instinto quer nos levar? instinto?!
A tentativa de viver mais intensamente levou-os, por sua vez, numa espécie de constante
verificação de receita e despesa, a tentar pesar o que era e o que não era importante. Isso eles o
faziam a modo deles: com falta de jeito e de experiência, com modéstia. Eles tateavam. Num
vício por ambos descoberto tarde demais na vida, cada qual pelo seu lado tentava continuamente
distinguir o que era do que não era essencial, isto é, eles nunca usariam a palavra essencial, que
não pertencia a seu ambiente. Mas de nada adiantava o vago esforço quase constrangido que
faziam: a trama lhes escapava diariamente. Só, por exemplo, olhando para o dia passado é que
tinham a impressão de ter - de algum modo e por assim dizer à revelia deles, e por isso sem
mérito - a impressão de ter vivido. Mas então era de noite, eles calçavam os chinelos e era de
noite.
Isso tudo não chegava a formar uma situação para o casal. Quer dizer, algo que cada um
pudesse contar mesmo a si próprio na hora em que cada um se virava na cama para um lado e,
por um segundo antes de dormir, ficava de olhos abertos. E pessoas precisam tanto poder contar
a história delas mesmas. Eles não tinham o que contar. Com um suspiro de conforto, fechavam
os olhos e dormiam agitados. E quando faziam o balanço de suas vidas, nem ao menos podiam
nele incluir essa tentativa de viver mais intensamente, e descontá-la, como em imposto de renda.
Balanço que pouco a pouco começavam a fazer com maior frequência, mesmo sem o
equipamento técnico de uma terminologia adequada a pensamentos. Se se tratava de uma
situação, não chegava a ser uma situação de que viver ostensivamente.
Mas não era apenas assim que sucedia. Na verdade também estavam calmos porque "não
conduzir", "não inventar", "não errar" lhes era, muito mais que um hábito, um ponto de honra
assumido tacitamente. Eles nunca se lembrariam de desobedecer.
Tinham a compenetração briosa que lhes viera da consciência nobre de serem duas pessoas
entre milhões iguais. "Ser um igual" fora o papel que lhes coubera, e a tarefa a eles entregue. Os
dois, condecorados, graves, correspondiam grata e civicamente à confiança que os iguais haviam
depositado neles. Pertenciam a uma casta. O papel que cumpriam, com certa emoção e com
dignidade, era o de pessoas anônimas, o de filhos de Deus, como num clube de pessoas.
Talvez apenas devido à passagem insistente do tempo tudo isso começara, porém, a se
tornar diário, diário, diário. Às vezes arfante. (Tanto o homem como a mulher já tinham iniciado
a idade crítica.) Eles abriam as janelas e diziam que fazia muito calor. Sem que vivessem
propriamente no tédio, era como se nunca lhes mandassem notícias. O tédio, aliás, fazia parte de
uma vida de sentimentos honestos.
Mas, enfim, como isso tudo não lhes era compreensível, e achava-se muitos e muitos pontos
acima deles, e se fosse expresso em palavras eles não o reconheceriam - tudo isso, reunido e
considerado já como passado, assemelhava-se à vida irremediável. A qual eles se submetiam com
um silêncio de multidão e com o ar um pouco magoado que têm os homens de boa-vontade.
Assemelhava-se à vida irremediável para a qual Deus nos quis.
Vida irremediável, mas não concreta. Na verdade era uma vida de sonho. Às vezes, quando
falavam de alguém excêntrico, diziam com a benevolência que uma classe tem por outra: "Ah,
esse leva uma vida de poeta". Pode-se talvez dizer, aproveitando as poucas palavras que se
conheceram do casal, pode-se dizer que ambos levavam, menos a extravagância, uma vida de
mau poeta: vida de sonho.
Não, não é verdade. Não era uma vida de sonho, pois este jamais os orientara. Mas de
irrealidade. Embora houvesse momentos em que de repente, por um motivo ou por outro, eles
afundassem na realidade. E então lhes parecia ter tocado num fundo de onde ninguém pode
passar.
Como, por exemplo, quando o marido voltava para casa mais cedo do que de hábito e a
esposa ainda não havia regressado de alguma compra ou visita. Para o marido interrompia-se
então uma corrente. Ele se sentava cuidadoso para ler o jornal, dentro de um silêncio tão calado
que mesmo uma pessoa morta ao lado quebraria. Ele fingindo com severa honestidade uma
atenção minuciosa ao jornal, os ouvidos atentos. Nesse momento é que o marido tocava no fundo
com pés surpreendidos. Não poderia permanecer muito tempo assim, sem risco de afogar-se,
pois tocar no fundo também significa ter a água acima da cabeça. Eram assim os seus momentos
concretos. O que fazia com que ele, lógico e sensato, se safasse depressa. Safava-se depressa,
embora curiosamente a contragosto, pois a ausência da esposa era uma tal promessa de prazer
perigoso que ele experimentava o que seria a desobediência. Safava-se a contragosto mas sem
discutir, obedecendo ao que dele esperavam. Não era um desertor que traísse a confiança dos
outros. Além do mais, se esta é que era a realidade, não havia como viver nela ou dela.
A esposa, esta tocava na realidade com mais frequência, pois tinha mais lazer e menos ao
que chamar de fatos, assim como colegas de trabalho, ônibus cheio, palavras administrativas.
Sentava-se para emendar roupa, e pouco a pouco vinha vindo a realidade. Era intolerável
enquanto durava a sensação de estar sentada a emendar roupa. O modo súbito do ponto cair no i,
essa maneira de caber inteiramente no que existia e de tudo ficar tão nitidamente aquilo mesmo -
era intolerável. Mas, quando passava, era como se a esposa tivesse bebido de um futuro possível.
Aos poucos o futuro dessa mulher passou a se tornar algo que ela trazia para o presente, alguma
coisa meditativa e secreta.
Era surpreendente de como os dois não eram tocados, por exemplo, pela política, pela
mudança de governo, pela evolução de um modo geral, embora também falassem às vezes a
respeito, como todo o mundo. Na verdade eram pessoas tão reservadas que se surpreenderiam,
lisonjeadas, se alguma vez lhes dissessem que eram reservadas. Nunca lhes ocorreria que se
chamava assim. Talvez entendessem mais se lhes dissessem: "vocês simbolizam a nossa reserva
militar". Deles alguns conhecidos disseram, depois que tudo sucedeu: eram boa gente. E nada
mais havia a dizer, pois que o eram.
Nada mais havia a dizer. Faltava-lhes o peso de um erro grave, que tantas vezes é o que abre
por acaso uma porta. Alguma vez eles tinham levado muito a sério alguma coisa. Eles eram
obedientes.
Também não apenas por submissão: como num soneto, era obediência por amor à simetria.
A simetria lhes era a arte possível.
Como foi que cada um deles chegou à conclusão de que, sozinho, sem o outro, viveria mais - seria caminho longo para se reconstruir, e de inútil trabalho, pois de vários cantos muitos já
chegaram ao mesmo ponto.
A esposa, sob a fantasia contínua, não só chegou temerariamente a essa conclusão como esta
transformou sua vida em mais alargada e perplexa, em mais rica, e até supersticiosa. Cada coisa
parecia o sinal de outra coisa, tudo era simbólico, e mesmo um pouco espírita dentro do que o
catolicismo permitiria. Não só ela passou temerariamente a isso como - provocada
exclusivamente pelo fato de ser mulher - passou a pensar que um outro homem a salvaria. O que
não chegava a ser um absurdo. Ela sabia que não era. Ter meia razão a confundia, mergulhava-a
em meditação.
O marido, influenciado pelo ambiente de masculinidade aflita em que vivia, e pela sua
própria, que era tímida mas efetiva, começou a pensar que muitas aventuras amorosas seriam a
vida.
Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era heroico suportar. Calados quanto ao
entrevisto por cada um, discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um servindo de
sacrifício para o outro, amor é sacrifício.
Assim chegamos ao dia em que, há muito tragada pelo sonho, a mulher, tendo dado uma
mordida numa maçã, sentiu quebrar-se um dente da frente. Com a maçã ainda na mão e
olhando-se perto demais no espelho do banheiro - e deste modo perdendo de todo a perspectiva - viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os próprios olhos... tocando o
fundo, e com a água já pelo pescoço, com cinquenta e tantos anos, sem um bilhete, em vez de ir
ao dentista, jogou-se pela janela do apartamento, pessoa pela qual tanta gratidão se poderia
sentir, reserva militar e sustentáculo de nossa desobediência.
Quanto a ele, uma vez seco o leito do rio e sem nenhuma água que o afogasse, ele andava
sobre o fundo sem olhar para o chão, expedito como se usasse bengala. Seco inesperadamente o
leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair de
bruços mais adiante."
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