domingo, 29 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Por aqueles dias

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Por aqueles dias chegou um fotógrafo belga que instalou seu estúdio no Portal dos Escrivães, e quem quer que tivesse com que pagar-lhe o trabalho aproveitou a ocasião para tirar um retrato. Fermina e Hildebranda foram das primeiras. Esvaziaram o guarda-roupa de Fermina Sánchez, repartiram as roupas mais vistosas, as sombrinhas, os sapatos de festa, os chapéus, e se vestiram de damas da metade do século. Gala Placídia as ajudou a apertar os corpetes, ensinou-as a andar dentro das armações de arame das anquinhas, a calçar as luvas, a abotoar os botins de salto alto. Hildebranda preferiu um chapéu de abas grandes com penas de avestruz que lhe caíam sobre as costas. Fermina pôs um mais recente, enfeitado de frutas de gesso pintado e flores de crinolina. Acabaram troçando de si mesmas vendo-se no espelho tão semelhantes aos daguerreótipos das avós e saíram felizes, mortas de rir, para tirarem retrato de suas vidas. Gala Placídia as viu da sacada atravessando o parque com as sombrinhas abertas, se equilibrando como podiam nos saltos, e empurrando as anquinhas com o corpo inteiro feito criança aprendendo a andar com andadeiras, e lhes deu a bênção para que Deus as ajudasse em seus retratos.
      Havia um tumulto diante do estúdio do belga, porque estavam fotografando Beny Centeno, que naqueles dias tinha ganho o campeonato de boxe no Panamá. Estava de calções de luta, com as luvas calçadas e a coroa na cabeça, e não foi fácil fotografá-lo porque precisava ficar em posição de assalto durante um minuto e respirando o menos possível, mas logo que armava a guarda seus fanáticos prorrompiam em ovações, e ele não resistia à tentação de satisfazê-los exibindo suas artes. Quando chegou a vez das primas o céu nublara e a chuva parecia iminente, mas elas se deixaram enfarinhar a cara com polvilho e se apoiaram com tanta naturalidade numa coluna de alabastro que conseguiram ficar imóveis por mais tempo do que parecia racional. Foi um retrato eterno. Quando Hildebranda morreu, quase centenária em sua fazenda de Flores de Maria, encontraram sua cópia debaixo de chave no armário do quarto, escondida entre as dobras dos lençóis perfumados, junto com o fóssil de um pensamento numa carta apagada pelos anos. Fermina Daza guardou a sua muitos anos na primeira folha de um álbum de família, de onde desapareceu sem que se soubesse como, nem quando, e chegou às mãos de Florentino Ariza por uma série de casualidades inverossímeis, quando ambos já passavam dos sessenta anos.
     A praça diante do Portal dos Escrivães estava apinhada até os sobrados quando Fermina e Hildebranda saíram do estúdio do belga. Tinham esquecido que suas caras estavam brancas de polvilho e os lábios pintados com uma pomada cor de chocolate, e que suas roupas não eram apropriadas nem à hora nem à época. A rua as recebeu com vaias e apupos. Estavam acuadas, procurando escapar à zombaria pública, quando abriu caminho pelo tumulto o landô dos alazães dourados. A vaia cessou e os grupos hostis debandaram. Hildebranda não esqueceria jamais a primeira visão do homem que apareceu no estribo, o casaco de seda, o colete de brocado, seus ademanes sábios, a doçura dos olhos, a autoridade da presença.
     Embora nunca o tivesse visto, reconheceu-o logo. Fermina Daza tinha falado nele, quase por casualidade e sem nenhum interesse, uma tarde do mês anterior em que não tinha querido passar pela casa do Marquês de Casalduero porque o landô dos cavalos de ouro estava estacionado à porta. Disse a ela quem era o dono e procurou explicar as causas de sua antipatia, embora não dissesse palavra quanto às pretensões dele. Hildebranda esqueceu. Mas quando o identificou à porta do carro como uma aparição de fábula, um pé em terra outro no estribo, não compreendeu os motivos da prima.

 — Façam-me o favor de subir — disse o doutor Juvenal Urbino. — Levo-as para onde mandarem.

     Fermina Daza esboçou um gesto de dúvida, mas Hildebranda já havia aceito. O doutor Juvenal Urbino saltou, e com a ponta dos dedos, quase sem tocá-la, ajudou-a a subir no carro. Fermina, sem escolha, subiu depois dela, a cara ardendo de contrariedade.
      A casa ficava a apenas três quarteirões. As primas não notaram que o doutor Urbino tivesse entrado em acordo com o cocheiro, mas deve ter sido assim, porque o carro levou mais de meia hora para chegar. Iam sentadas no assento principal, e ele diante delas, de costas para o sentido da marcha do carro. Fermina virou a cara para a janela e mergulhou no vazio. Hildebranda, em compensação, estava encantada, e o doutor Urbino mais encantado ainda com o encantamento dela. Logo que o carro se pôs a andar, ela sentiu o cheiro cálido do couro natural dos assentos, a intimidade do interior acolchoado, e disse que aquilo lhe parecia um lugar bom da gente ficar vivendo. Começaram logo a rir, a trocar chistes de velhos amigos, e acabaram no jogo de um jargão inventado, que consistia em intercalar entre cada sílaba uma sílaba convencional. Fingiam acreditar que Fermina não compreendia o que diziam, embora não só soubessem que sim como que estava presa ao que diziam, e por isso insistiam. Ao fim de um momento, depois de muito rir, Hildebranda confessou que não aguentava mais o suplício dos botins.
     
 — Nada mais fácil — disse o doutor Urbino. — Vamos ver quem acaba primeiro.

      Começou a soltar o cordão das botas, e Hildebranda aceitou o repto. Não achou fácil, por causa do corpete de varetas que não permitiam que se curvasse, mas o doutor Urbino demorou de propósito, até que ela tirou os botins de debaixo das saias com uma gargalhada de triunfo, como se acabasse de pescá-los num tanque. Ambos olharam então para Fermina, e viram seu magnífico perfil de ave mais afiado do que nunca contra o incêndio do entardecer. Estava três vezes furiosa: pela situação imerecida em que se encontrava, pela conduta libertina de Hildebranda, e pela certeza de que o carro dava voltas sem sentido para retardar a chegada. Mas Hildebranda corria sem madrinha.

 — Agora estou vendo — disse — que o que me atrapalhava não eram os sapatos, e sim esta gaiola de arame.

     O doutor Urbino compreendeu que se referia às anquinhas, e pegou a ocasião no vôo. "Nada mais simples", disse. "Tire fora." Com um rápido passe de prestidigitador puxou o lenço do bolso e com ele vendou os olhos.

 — Não estou olhando — disse.

      A venda realçou a pureza dos seus lábios entre a barba redonda e negra e o bigode de guias afiadas, e ela se sentiu sacudida por uma vergastada de pânico. Olhou Fermina e agora não a viu furiosa e sim apavorada com a idéia de que ela fosse capaz de tirar a saia. Hildebranda ficou séria e lhe perguntou em linguagem de dedos: "Que fazemos?" Fermina Daza respondeu no mesmo código que se não fossem diretamente a casa se atiraria do carro em marcha.

 — Estou esperando — disse o médico.

 — Já pode olhar — disse Hildebranda.

     O doutor Juvenal Urbino a viu diferente quando tirou a venda, e compreendeu que o jogo tinha terminado, e terminado mal. A um sinal seu o cocheiro fez o carro dar uma volta completa, e entrou na praça dos Evangelhos no momento em que o acendedor municipal acendia as luminárias. Todas as igrejas deram o ângelus. Hildebranda desceu depressa, um pouco preocupada com a ideia de ter desgostado a prima, e se despediu do médico com um aperto de mãos sem cerimônias. Fermina a imitou, mas quando quis retirar a mão com a luva de seda, o doutor Urbino lhe apertou com força o dedo médio, o do coração.

— Estou esperando sua resposta — disse.

      Fermina deu então um puxão mais forte, e a luva vazia ficou pendurada da mão do médico, mas não esperou para recuperá-la. Foi se deitar sem comer. Hildebranda, como se nada houvesse acontecido, entrou no quarto depois de jantar com Gala Placídia na cozinha, e comentou com sua graça natural os incidentes da tarde. Não disfarçou seu entusiasmo pelo doutor Urbino, por sua elegância e sua simpatia, e Fermina não correspondeu com nenhum comentário, mas estava refeita do aborrecimento. A um certo momento, Hildebranda confessou: quando o doutor Juvenal Urbino vendou os olhos e ela viu o brilho dos seus dentes perfeitos entre os lábios rosados, tinha tido um desejo irresistível de comê-lo aos beijos. Fermina Daza se virou para a parede e pôs fim à conversa sem intuito de ofender, até sorrindo, mas com todo o coração.

— Que puta que você é! — disse.

continua na página 104...
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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