O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
continuando... Por aqueles dias chegou um fotógrafo belga que instalou seu estúdio no Portal
dos Escrivães, e quem quer que tivesse com que pagar-lhe o trabalho aproveitou a
ocasião para tirar um retrato. Fermina e Hildebranda foram das primeiras.
Esvaziaram o guarda-roupa de Fermina Sánchez, repartiram as roupas mais
vistosas, as sombrinhas, os sapatos de festa, os chapéus, e se vestiram de damas da
metade do século. Gala Placídia as ajudou a apertar os corpetes, ensinou-as a andar
dentro das armações de arame das anquinhas, a calçar as luvas, a abotoar os botins
de salto alto. Hildebranda preferiu um chapéu de abas grandes com penas de
avestruz que lhe caíam sobre as costas. Fermina pôs um mais recente, enfeitado de
frutas de gesso pintado e flores de crinolina. Acabaram troçando de si mesmas
vendo-se no espelho tão semelhantes aos daguerreótipos das avós e saíram felizes,
mortas de rir, para tirarem retrato de suas vidas. Gala Placídia as viu da sacada
atravessando o parque com as sombrinhas abertas, se equilibrando como podiam
nos saltos, e empurrando as anquinhas com o corpo inteiro feito criança
aprendendo a andar com andadeiras, e lhes deu a bênção para que Deus as ajudasse
em seus retratos.
Havia um tumulto diante do estúdio do belga, porque estavam fotografando
Beny Centeno, que naqueles dias tinha ganho o campeonato de boxe no Panamá.
Estava de calções de luta, com as luvas calçadas e a coroa na cabeça, e não foi fácil
fotografá-lo porque precisava ficar em posição de assalto durante um minuto e
respirando o menos possível, mas logo que armava a guarda seus fanáticos
prorrompiam em ovações, e ele não resistia à tentação de satisfazê-los exibindo
suas artes. Quando chegou a vez das primas o céu nublara e a chuva parecia
iminente, mas elas se deixaram enfarinhar a cara com polvilho e se apoiaram com
tanta naturalidade numa coluna de alabastro que conseguiram ficar imóveis por
mais tempo do que parecia racional. Foi um retrato eterno. Quando Hildebranda
morreu, quase centenária em sua fazenda de Flores de Maria, encontraram sua
cópia debaixo de chave no armário do quarto, escondida entre as dobras dos lençóis
perfumados, junto com o fóssil de um pensamento numa carta apagada pelos anos.
Fermina Daza guardou a sua muitos anos na primeira folha de um álbum de
família, de onde desapareceu sem que se soubesse como, nem quando, e chegou às
mãos de Florentino Ariza por uma série de casualidades inverossímeis, quando
ambos já passavam dos sessenta anos.
A praça diante do Portal dos Escrivães estava apinhada até os sobrados quando
Fermina e Hildebranda saíram do estúdio do belga. Tinham esquecido que suas
caras estavam brancas de polvilho e os lábios pintados com uma pomada cor de
chocolate, e que suas roupas não eram apropriadas nem à hora nem à época. A rua
as recebeu com vaias e apupos. Estavam acuadas, procurando escapar à zombaria
pública, quando abriu caminho pelo tumulto o landô dos alazães dourados. A vaia
cessou e os grupos hostis debandaram. Hildebranda não esqueceria jamais a
primeira visão do homem que apareceu no estribo, o casaco de seda, o colete de
brocado, seus ademanes sábios, a doçura dos olhos, a autoridade da presença.
Embora nunca o tivesse visto, reconheceu-o logo. Fermina Daza tinha falado
nele, quase por casualidade e sem nenhum interesse, uma tarde do mês anterior em
que não tinha querido passar pela casa do Marquês de Casalduero porque o landô
dos cavalos de ouro estava estacionado à porta. Disse a ela quem era o dono e
procurou explicar as causas de sua antipatia, embora não dissesse palavra quanto às
pretensões dele. Hildebranda esqueceu. Mas quando o identificou à porta do carro
como uma aparição de fábula, um pé em terra outro no estribo, não compreendeu
os motivos da prima.
— Façam-me o favor de subir — disse o doutor Juvenal Urbino. — Levo-as para
onde mandarem.
Fermina Daza esboçou um gesto de dúvida, mas Hildebranda já havia aceito. O
doutor Juvenal Urbino saltou, e com a ponta dos dedos, quase sem tocá-la, ajudou-a
a subir no carro. Fermina, sem escolha, subiu depois dela, a cara ardendo de
contrariedade.
A casa ficava a apenas três quarteirões. As primas não notaram que o doutor
Urbino tivesse entrado em acordo com o cocheiro, mas deve ter sido assim, porque
o carro levou mais de meia hora para chegar. Iam sentadas no assento principal, e
ele diante delas, de costas para o sentido da marcha do carro. Fermina virou a cara
para a janela e mergulhou no vazio. Hildebranda, em compensação, estava
encantada, e o doutor Urbino mais encantado ainda com o encantamento dela. Logo
que o carro se pôs a andar, ela sentiu o cheiro cálido do couro natural dos assentos,
a intimidade do interior acolchoado, e disse que aquilo lhe parecia um lugar bom da
gente ficar vivendo. Começaram logo a rir, a trocar chistes de velhos amigos, e
acabaram no jogo de um jargão inventado, que consistia em intercalar entre cada
sílaba uma sílaba convencional. Fingiam acreditar que Fermina não compreendia o
que diziam, embora não só soubessem que sim como que estava presa ao que
diziam, e por isso insistiam. Ao fim de um momento, depois de muito rir,
Hildebranda confessou que não aguentava mais o suplício dos botins.
— Nada mais fácil — disse o doutor Urbino. — Vamos ver quem acaba primeiro.
Começou a soltar o cordão das botas, e Hildebranda aceitou o repto. Não achou
fácil, por causa do corpete de varetas que não permitiam que se curvasse, mas o
doutor Urbino demorou de propósito, até que ela tirou os botins de debaixo das
saias com uma gargalhada de triunfo, como se acabasse de pescá-los num tanque.
Ambos olharam então para Fermina, e viram seu magnífico perfil de ave mais
afiado do que nunca contra o incêndio do entardecer. Estava três vezes furiosa: pela
situação imerecida em que se encontrava, pela conduta libertina de Hildebranda, e
pela certeza de que o carro dava voltas sem sentido para retardar a chegada. Mas
Hildebranda corria sem madrinha.
— Agora estou vendo — disse — que o que me atrapalhava não eram os sapatos, e
sim esta gaiola de arame.
O doutor Urbino compreendeu que se referia às anquinhas, e pegou a ocasião no
vôo. "Nada mais simples", disse. "Tire fora." Com um rápido passe de prestidigitador
puxou o lenço do bolso e com ele vendou os olhos.
— Não estou olhando — disse.
A venda realçou a pureza dos seus lábios entre a barba redonda e negra e o
bigode de guias afiadas, e ela se sentiu sacudida por uma vergastada de pânico.
Olhou Fermina e agora não a viu furiosa e sim apavorada com a idéia de que ela
fosse capaz de tirar a saia. Hildebranda ficou séria e lhe perguntou em linguagem de
dedos: "Que fazemos?" Fermina Daza respondeu no mesmo código que se não
fossem diretamente a casa se atiraria do carro em marcha.
— Estou esperando — disse o médico.
— Já pode olhar — disse Hildebranda.
O doutor Juvenal Urbino a viu diferente quando tirou a venda, e compreendeu
que o jogo tinha terminado, e terminado mal. A um sinal seu o cocheiro fez o carro
dar uma volta completa, e entrou na praça dos Evangelhos no momento em que o
acendedor municipal acendia as luminárias. Todas as igrejas deram o ângelus.
Hildebranda desceu depressa, um pouco preocupada com a ideia de ter desgostado a
prima, e se despediu do médico com um aperto de mãos sem cerimônias. Fermina a
imitou, mas quando quis retirar a mão com a luva de seda, o doutor Urbino lhe
apertou com força o dedo médio, o do coração.
— Estou esperando sua resposta — disse.
Fermina deu então um puxão mais forte, e a luva vazia ficou pendurada da mão
do médico, mas não esperou para recuperá-la. Foi se deitar sem comer.
Hildebranda, como se nada houvesse acontecido, entrou no quarto depois de jantar
com Gala Placídia na cozinha, e comentou com sua graça natural os incidentes da
tarde. Não disfarçou seu entusiasmo pelo doutor Urbino, por sua elegância e sua
simpatia, e Fermina não correspondeu com nenhum comentário, mas estava refeita
do aborrecimento. A um certo momento, Hildebranda confessou: quando o doutor
Juvenal Urbino vendou os olhos e ela viu o brilho dos seus dentes perfeitos entre os
lábios rosados, tinha tido um desejo irresistível de comê-lo aos beijos. Fermina
Daza se virou para a parede e pôs fim à conversa sem intuito de ofender, até
sorrindo, mas com todo o coração.
— Que puta que você é! — disse.
continua na página 104...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Por aqueles dias
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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