Machado de Assis
Conto
ERNESTO DE TAL
(Capítulo IV)
O moço de nariz comprido não pertencia ao número de namorados de
arribação; seus intentos eram estritamente conjugais. Tinha vinte e seis
anos, era laborioso, benquisto, econômico, singelo e sincero, um
verdadeiro filho de Minas. Podia fazer a felicidade de uma moça.
A moça, pela sua parte, soubera insinuar-se tanto no espírito dele, que
por pouco lhe fez perder o emprego. Um dia, chegando-se o patrão à
escrivaninha em que ele trabalhava, viu um papelinho debaixo do tinteiro,
e leu a palavra amor, duas ou três vezes repetida. Uma que fosse bastava
para fazê-lo subir às nuvens. O Sr. Gomes Arruda contraiu as
sobrancelhas, concentrou as ideias, e improvisou uma alocução extensa e
ameaçadora, em que o mísero guarda-livros só percebeu a expressão
olho da rua.
Olho da rua é uma expressão grave. O guarda-livros meditou nela,
reconheceu a justiça do patrão, e tratou de emendar-se dos descuidos,
não do amor. O amor ia-se enraizando nele cada vez mais; era a primeira
paixão séria que o rapaz sentia, acrescendo que ele acertara logo de dar
com uma mestra no ofício.
“Isto assim não pode continuar”, pensava o rapaz de nariz comprido,
coçando o queixo e caminhando uma noite para casa, “o melhor é casar
me logo de uma vez. Com o que me dão lá em casa e o produto de
alguma escrita por fora, creio que poderei ocorrer às despesas, o resto
pertence a Deus”.
Não tardou que Ernesto desconfiasse das intenções do rapaz de nariz
comprido. Uma vez chegou a surpreender um olhar da moça e do rival.
Enfadou-se, e na primeira ocasião que teve interpelou a namorada a
respeito daquela circunstância equívoca.
— Confesse! dizia ele.
— Por minha causa? perguntou Ernesto com um tom gelado de ironia.
— Sim, examinava-lhe a gravata, que é muito bonita, para dar uma a
você no dia de ano-bom. Agora que me obrigou a descobrir tudo, veja se
me lembra outro mimo, porque esse já não serve.
Ernesto caiu em si; recordou que efetivamente havia no olhar da moça
uma tal ou qual intenção dadival, se me permitem este adjetivo obsoleto;
toda a sua cólera converteu-se num sorriso amável e contrito, e o arrufo
não foi adiante.
Dias depois, era um domingo, estando ele e ela na sala, e um filho de
Vieira à janela, foram os dois namorados interrompidos pelo pequeno que
descera, gritando:
— Aí vem ele! aí vem ele!
— Ele quem? disse Ernesto sentindo esmigalhar-se-lhe o coração.
Chegou à janela: era o rival.
Apareceu a tempo a tia de Rosina; uma tempestade iminente já pairava
na fronte afogueada de Ernesto.
Pouco depois entrou na sala o rapaz de nariz comprido, que, ao ver
Ernesto, pareceu sorrir maliciosamente. Ernesto encordoou-o. Seus
olhares, se fossem punhais, teriam cometido dois assassinatos naquele
instante. Conteve-se, porém, para melhor observar os dois. Rosina não
parecia prestar ao outro atenção de caráter especial; tratava-o com
polidez apenas. Isto aquietou um pouco o ânimo revolto do Ernesto, que
ao cabo de uma hora estava restituído à sua usual bem-aventurança.
Não reparou porém nos olhares desconfiados que o rapaz de nariz
comprido lhe lançava de quando em quando. O sorriso malicioso
desaparecera dos lábios do guarda-livros. A suspeita entrara-lhe no
espírito ao ver a maneira indiferente, ou quase, com que o tratava
Rosina, posto tratasse de igual modo ao outro pretendente.
“Será seriamente um rival?” pensava o rapaz de nariz comprido.
Na primeira ocasião em que pôde trocar duas palavras com a namorada,
sem testemunhas, o que foi logo no dia seguinte, manifestou a
desconfiança que lhe escurecera o espírito até ali tão cor-de-rosa. Rosina
soltou uma risada, — uma dessas risadas que levam a convicção ao fundo
d’alma — a tal ponto que o rapaz de nariz comprido julgou de sua
dignidade não insistir na absurda suspeita.
— Já lhe disse: ele bem vontade tem de que eu o namore, mas perde o
tempo: eu só tenho uma cara e um coração.
— Oh! Rosina, tu és um anjo!
— Quem dera!
— Um anjo, sim, insistiu o rapaz de nariz comprido; e creio que posso
chamar-te brevemente minha esposa.
Os olhos da moça faiscaram de contentamento.
— Sim, continuou o namorado; daqui a dois meses estaremos casados...
— Ah!
— Se todavia...
Rosina empalideceu.
— Todavia? repetiu ela.
— Se todavia, o Sr. Vieira consentir...
— Por que não? disse a moça tranquilizando-se do susto que tivera; ele
deseja a minha felicidade; e o casamento contigo é a minha felicidade
maior. Ainda quando porém se oponha aos impulsos do meu coração,
basta que eu queira para que os nossos desejos se realizem. Mas
descansa, meu tio não porá obstáculos.
O rapaz de nariz comprido ficou ainda a olhar para a moça alguns minutos
sem dizer palavra; admirava duas coisas: a força d’alma de Rosina e o
amor que ela lhe dedicava. Quem rompeu o silêncio foi ela.
— Mas então daqui a dois meses?
— Só se a sorte me for adversa.
— E poderá sê-lo?
— Quem sabe? respondeu o rapaz de nariz comprido com um suspiro de
dúvida.
Logo depois desta perspectiva de felicidade, a concha em que pesavam as
esperanças de Ernesto começou a subir um pouco. Ele via que Rosina
efetivamente parecia ir diminuindo as cartas, e nas poucas que já então
recebia dela, a paixão era menos intensa, a frase estudada, acanhada e
fria. Quando estavam juntos havia menos intimidade expansiva; a
presença dele parecia constrangê-la. Ernesto entrou seriamente a crer
que a batalha estava perdida.
Infelizmente a tática deste namorado era perguntar à própria moça se
eram fundadas as suspeitas dele, ao que ela respondia vivamente que
não, e isto bastava a restituir-lhe a paz do espírito. Não era longa nem
profunda a quietação; o laconismo epistolar de Rosina, a frieza de seus
modos, a presença do outro, tudo isso sombreava singularmente o
espírito de Ernesto. Mas tão depressa caía no abismo do desespero, como
ascendia às regiões da celeste bem-aventurança, — mostrando assim o
que a natureza queria que ele fosse, — alma inconsistente e passiva —
levada, como a folha, ao sabor de todos os ventos.
Entretanto, era difícil que a verdade não se lhe metesse pelos olhos. Um
dia reparou que além da suspeitosa afetuosidade de Rosina, havia da
parte do tio certas atenções características para com o rival. Não se
enganava; conquanto o novo pretendente ainda não houvesse pedido
formalmente a mão da moça, era quase certo para o Sr. Vieira que nele
se preparava novo sobrinho, e acertando de ser este um homem do
comércio, não podia haver, na opinião do tio, mais feliz escolha.
Desisto de pintar os desesperos, os terrores, as imprecações de Ernesto
no dia em que a certeza da derrota mais funda e de raiz se lhe cravou no
coração. Já então lhe não bastou a negativa de Rosina, que aliás lhe
pareceu frouxa, e efetivamente o era. O triste moço chegou a desconfiar
que a amada e o rival estariam de acordo para mofar dele.
Como por via de regra, é da nossa miserável condição que o amor-próprio
domine o simples amor, apenas aquela suspeita lhe pareceu provável,
apoderou-se dele uma feroz indignação, e duvido que nenhum quinto ato
de melodrama ostente maior soma de sangue derramado do que ele
verteu na fantasia. Na fantasia, apenas, compassiva leitora, não só
porque ele era incapaz de fazer mal a um seu semelhante, mas sobretudo
porque repugnava à sua natureza achar uma resolução qualquer. Por esse
motivo, depois de muito e longo cogitar, confiou todos os seus pesares e
suspeitas ao companheiro de casa e pediu-lhe um conselho; Jorge deu-lhe
dois.
— Minha opinião, disse Jorge, é que não te importes com ela e vás
trabalhar, que é coisa mais séria.
— Nunca!
— Nunca trabalhar?
— Não; nunca esquecê-la.
— Bem, disse Jorge descalçando a bota do pé esquerdo, nesse caso vai
ter com esse sujeito de quem desconfias e entende-te com ele.
— Aceito! exclamou Ernesto; é o melhor. Mas, continuou ele depois de
refletir um instante, e se ele não for meu rival, que hei de fazer? como
descobrir se há outro?
— Nesse caso, disse Jorge, estendendo-se filosoficamente na marquesa,
nesse caso o meu conselho é que tu, ele e ela vão todos para o diabo que
os carregue.
Ernesto cerrou os ouvidos à blasfêmia, vestiu-se e saiu.
Advertência
continua na página 60...
__________________
Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Ernesto de Tal (IV)
__________________
Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
Nenhum comentário:
Postar um comentário