Edgar Allan Poe - Contos
A Ilha da Fada
Título original: The Island of the Fay
Publicado em 1841
Título original: The Island of the Fay
Publicado em 1841
A música — diz Marmontel nesses Contos Morais que os nossos tradutores persistem em chamar Moral Tales, como que a zombar do seu espírito — é o único dom que provoca prazer por si só; todos os outros exigem testemunhas. Ele confunde aqui o prazer de ouvir sons agradáveis com a faculdade de os criar. Do mesmo modo que qualquer outro dom, a música não é capaz de dar um gozo completo se não houver uma segunda pessoa para apreciar a sua execução. E a faculdade de produzir efeitos que se gozem plenamente na solidão não lhe é particular; ela é comum a todos os outros dons. A ideia, que o contista não conseguiu conceber claramente, ou que, na sua expressão, sacrificou ao amor nacional do conceito é, sem dúvida, a ideia muito defensável de que a música do mais elevado estilo é a mais sentida quando estamos absolutamente sós. A proposição, sob esta forma, será admitida à primeira vista por aqueles que amam a lira por amor da lira e pelas suas vantagens espirituais.
Mas há um prazer que está sempre ao alcance da humanidade decaída —
e é talvez o único —, que deve ainda mais que a música à sensação acessória do
isolamento. Refiro-me à felicidade que se experimenta na contemplação de um
quadro da natureza.
Na verdade, o homem que pretende contemplar de frente a glória de Deus
na Terra deve contemplar essa glória na solidão. Para mim, pelo menos, a
presença, não apenas da vida humana, mas da vida sob qualquer outra forma
como a da dos seres verdejantes que crescem no solo e não têm voz, é um
opróbrio para a paisagem; ela está em guerra com o génio do cenário. Sim, na
verdade, eu gosto de contemplar os vales sombrios, as rochas pardacentas, as
águas que sorriem silenciosamente, as florestas que suspiram em sono ansioso, e
as montanhas orgulhosas e vigilantes que olham tudo do alto. Gosto de
contemplar essas coisas pelo que elas são: membros gigantescos de um imenso
todo, animado e sensível — um todo cujo forma (a da esfera) é a mais perfeita e
a mais compreensível de todas as formas; cuja rota se faz na companhia de
outros planetas; cuja serva dócil é a Lua; cujo senhor mediatizado é o Sol; cuja
vida é a eternidade; cujo pensamento é o de um Deus, a fruição do qual é
conhecimento; cujos destinos se perdem na imensidade; para quem nós somos
uma noção correspondente à noção que temos dos animálculos que infestam o
cérebro —, um ser que nós olhamos, consequentemente, como inanimado e
puramente material — apreciação muito semelhante à que esses animálculos
devem fazer de nós.
Os nossos telescópios e as nossas investigações matemáticas confirmam
nos totalmente — não obstante a hipocrisia da padralhada mais ignorante — que
o espaço, e, por consequência, o volume, é uma consideração importante aos
olhos do Omnipotente. Os círculos em que se movem as estrelas são os mais
apropriados à evolução, sem conflito, do maior número de corpo» possível. As
formas desses corpos são exatamente escolhidas para conterem, sob uma dada
superfície, a maior quantidade possível de matéria; e as próprias superfícies estão
dispostas de forma a receberem uma população mais numerosa da que
poderiam conter se essas mesmas superfícies estivessem dispostas de outro
modo. E do facto de o espaço ser infinito nenhum argumento se pode tirar contra
esta ideia: que o volume tem um valor aos olhos de Deus, pois para preencher
esse espaço pode haver um infinito de matéria. E como vemos claramente que
dotar a matéria de vitalidade é um princípio — e mesmo, até onde nos é dado
julgar, o princípio capital nas operações da Divindade —, será lógico supô-lo
confinado na ordem da pequenez, onde ele se nos revela diariamente, e excluí-lo
das regiões do grandioso? Como nós descobrimos círculos nos círculos, sempre e
sem fim — todos, porém, evoluindo à volta de um centro infinitamente distante,
que é a Divindade —, não poderemos supor, analogicamente e da mesma
maneira, a vida na vida, a menor na maior, e todas; no Espírito divino? Em suma:
nós erramos nesciamente por fatuidade, imaginando que o homem, nos seus
destinos temporais ou futuros, é, perante o Universo, muito mais importante que o
vasto lodo do vale que ele cultiva e que despreza, e a que recusa uma alma pela
pouco profunda razão de que não a vê atuar.
Estas ideias e outras análogas deram sempre às minhas meditações, no
meio das montanhas e das florestas, junto dos rios e do oceano, uma cambiante
que as pessoas vulgares não deixarão de apodar de fantástica. Os meus passeios
errantes no meio de quadros deste género têm sido numerosos, singularmente
curiosos, muitas vezes solitários; e o interesse com que eu vagueei por mais de
um vale profundo e sombrio, ou contemplei o céu de muitos lagos límpidos, era
grandemente aumentado pela ideia de que vagueava só, de que contemplava
sozinho. Um francês tagarela, aludindo à bem conhecida obra de Zimmermann,
disse: A solidão é uma bela coisa, mas é necessário alguém para nos dizer que a
solidão é uma bela coisa. Como epigrama, é perfeito. Mas esse «é necessário»...
Tal necessidade é coisa que não existe.
Foi numa das minhas viagens solitárias, numa região longínqua —
montanhas complicadas por montanhas, meandros de rios melancólicos, lagos
sombrios adormecidos —, que se me deparou certo regatozito onde havia uma
ilha. Cheguei ali subitamente num mês de junho, o mês da folhagem, e deitei-me
no chão, sob os ramos de um arbusto odorífero que me era desconhecido, no
intuito de repousar e, ao mesmo tempo, contemplar o quadro. Reconheci que só
daquela maneira o poderia ver bem, tal era o seu ângulo de visão.
De todos os lados, exceto a oeste, onde o sol mergulharia dentro em pouco,
se erguiam as muralhas verdejantes da floresta. O riozinho, que fazia um
cotovelo brusco, e assim se furtava subitamente à vista, parecia não conseguir
escapar da sua prisão; dir-se-ia, porém, que ele era absorvido para leste pela
densa verdura das árvores, e do lado oposto (assim me parecia, deitado e com o
olhar voltado para o céu) caía no vale, sem transição e sem ruído, uma cascata
maravilhosa de ouro e púrpura, provinda das fontes ocidentais do céu.
Pouco mais ou menos ao centro da estreita perspectiva que o meu olhar
visionário abrangia repousava no meio do solitário regato uma pequena ilha
circular, magnificamente recoberta de tons verdejantes.
A margem e a sua imagem de tal modo se fundiamQue o todo parecia suspenso no ar.
A água transparente assemelhava-se tanto a um espelho que era quase
impossível adivinhar em que ponto do talude de esmeralda começava o seu
domínio de cristal.
A posição em que me encontrava permitia que eu abrangesse com um só
olhar as duas extremidades, leste e este, da ilhota; e nos seus aspetos observei
uma diferença singularmente nítida.
A ocidente era tudo um radioso harém de belezas de jardim. Abrasado e
avermelhado pelo olhar oblíquo do sol, sorria extaticamente em todas as flores. A
relva era curta, elástica, odorífera e entremeada de belas cores. As árvores eram
flexíveis, alegres, eretas, esbeltas e graciosas, orientais pela forma e pela
folhagem, de casca polida, luzidia e versicolor. Dir-se-ia que circulava por toda a
parte um sentimento profundo de vida e de alegria; e, embora do céu não
soprasse a menor brisa, tudo, porém, parecia agitado por bandos de borboletas
que se poderiam tomar, nas suas fugas graciosas em ziguezague, por tulipas
aladas.
O outro lado, o lado leste da ilha, estava submerso na mais negra sombra.
Pairava sobre todas as coisas uma tristeza fúnebre, mas cheia de calma e beleza.
As árvores tinham uma cor escura, as suas formas e as suas atitudes eram
lúgubres; torciam-se como espectros tristes e solenes, evocando ideias de
irremediável desgosto e morte prematura. A relva revestia-se da cor carregada
do cipreste, e das suas hastes pendiam languidamente as pontas. Erguiam-se,
dispersos, vários montículos disformes, baixos, estreitos, não muito compridos,
com o aspecto de túmulos, mas que o não eram, embora acima deles e à sua volta
medrassem a arruda e o alecrim. A sombra das árvores tombava pesadamente
na água e parecia ali sepultar-se, impregnando de trevas as profundezas do
elemento. Persuadia-me de que cada sombra, à medida que o Sol descia, se
separava contrariada do tronco que lhe dera origem e era absorvida pelo regato,
enquanto outras sombras nasciam a cada instante das árvores, tomando o lugar
que pertencera às suas defuntas irmãs mais velhas.
Esta ideia, desde que se me apoderou da imaginação, excitou-a fortemente
e perdi-me logo em devaneios..
« Se houve jamais ilha encantada — dizia eu para comigo —, é esta, com
toda a certeza. É o ponto de encontro de algumas graciosas Fadas que
sobreviveram à destruição da sua raça. E estes verdes túmulos serão os delas?
Findarão elas a sua doce vida da mesma maneira que a humanidade? Ou não
será, pelo contrário, a sua morte uma espécie de melancólico definhar?
Entregarão elas a sua existência a Deus, pouco a pouco, exaurindo lentamente a
sua substância até à morte, do mesmo modo que as árvores entregam as suas
sombras uma após outra? Aquilo que a árvore que se exaure é para a água que
lhe absorve a sombra, tornando-se mais negra com a presa que devora, não
poderia a vida da Fada ser o mesmo para a Morte que a devora?»
Enquanto assim devaneava, com os olhos semicerrados, e o Sol descia
rapidamente para o seu leito, e turbilhões giravam a toda a volta da ilha, levando
no seu seio grandes e luminosas escamas brancas, soltas dos troncos dos
sicómoros — escamas que uma imaginação viva poderia, graças às suas
variadas posições na água, converter naquilo que mais lhe agradasse —,
enquanto eu assim devaneava, pareceu-me ver o vulto de uma dessas Fadas com
que tinha sonhado destacar-se da parte luminosa e ocidental da ilha e avançar
lentamente para as trevas. Mantinha-se ereta sobre uma canoa singularmente
frágil, que ela movia com um remo fantástico. Enquanto esteve sob a influência
dos últimos e belos raios do Sol, a sua atitude parecia revelar alegria, mas, assim
que passou à região das sombras, a tristeza alterou-lhe as feições. Lentamente,
foi deslizando, pouco a pouco, dando a volta à ilha, e reentrou na zona de luz.
« O circuito que a Fada acaba de fazer — continuei eu, sempre a sonhar —
é o ciclo de um breve ano da sua vida. Ela atravessou o seu inverno e o seu
verão. Aproximou-se um ano da morte; eu bem vi que, quando ela entrava na
obscuridade, a sua sombra se separava dela e era tragada pela água escura,
tornando a sua negridão ainda mais profunda.»
E o barquinho apareceu de novo com a Fada; de novo da luz para a
escuridão, que se tornava mais densa de minuto a minuto, e novamente a sua
sombra, destacando-se, caiu no ébano líquido e foi absorvida pelas trevas.
Várias vezes ainda ela fez o circuito da ilha, enquanto o Sol se precipitava
para o seu leito; e, de cada vez que ela emergia para a luz, mais tristeza havia na
sua expressão e mais fraca, mais abatida e indistinta ela se mostrava; e de cada
vez que passava à obscuridade, destacava-se dela um espectro mais escuro, que
se submergia numa sombra mais profunda. Mas, por fim, quando o Sol
desapareceu totalmente, a Fada — a pobre inconsolável! — agora simples
fantasma de si própria, entrou com o seu barco na região do rio de ébano, — e se
jamais de lá saiu não o posso dizer, pois as trevas tombaram sobre todas as
coisas, e eu não tomei a ver a sua encantadora figura...
Fim
continua na página 382...
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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
_____________________
Leia também:
Edgar Allan Poe - Contos: MetzengersteinEdgar Allan Poe - Contos: Silêncio
Edgar Allan Poe - Contos: Um Manuscrito encontrado numa Garrafa
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Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.
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CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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