Comecemos a semana com Clarice
Carlos Eduardo Valente
Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde uma doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida.
Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como
água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas,
constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa
e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis,
sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na
carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima
a lágrimas.
Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou.
Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento,
nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e
era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do
noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo
delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada
nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo -
o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?",
dizia ausente.
Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Uma
tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos.
A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar.
Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse
momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se poderia fazer
por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um
suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu
repouso na tristeza.
Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se
sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser antiga e pura. Sim, havia profundeza nela.
Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza,
como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse,
depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas,
por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.
Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas
suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância,
olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.
Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria
queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em
que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não
contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um
mistério.
Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão
de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.
Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol;
que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para
servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que
trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de
uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.
A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto
era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando
levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela
também aprendera nas suas florestas.
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