sábado, 28 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O arcebispo não foi

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      O arcebispo não foi. De maneira que o assédio teria acabado naquele dia, não fosse o fato de Hildebranda Sánchez ter vindo passar o Natal com a prima, o que mudou a vida de ambas. Foi recebida na roleta de Riohacha às cinco da manhã, em meio a uma turba de passageiros agonizantes de enjoo, mas ela desembarcou radiosa, mulher da cabeça aos pés, e com o espírito alvoroçado pela má noite no mar. Veio carregada de jacas de perus vivos e de quantos frutos brotavam em suas prósperas veigas, para que ninguém sentisse falta do que comer durante sua visita. Lisímaco Sánchez, o pai, mandava perguntar se eram necessários músicos para as festas de Natal, pois ele tinha os melhores à sua disposição, e prometia mandar mais para a frente um carregamento de fogos de artifício. Acrescentava ainda que não podia vir buscar a filha antes de março, de modo que havia tempo de sobra para se viver.
     As duas primas começaram sem perda de tempo. Tomaram banho juntas desde a primeira tarde, nuas, fazendo-se abluções recíprocas com a água da banheira de pedra. Ensaboavam-se, catavam lêndeas uma na outra, comparavam as nádegas, os seios imóveis, uma se olhando no espelho da outra para avaliar com quanta crueldade o tempo as tratara desde a última vez que tinham se visto nuas. Hildebranda era grande e maciça, de pele dourada, mas todo o pelo do seu corpo era de mulata, curto e enroscado feito palha de aço. Fermina Daza, de sua parte, tinha uma nudez pálida, de linhas grandes, de pele serena, de pelos macios. Gala Placídia tinha mandado pôr duas camas iguais para as duas no quarto, mas às vezes dormiam numa só e conversavam com as luzes apagadas até raiar o dia. Fumavam uns charutões de bandido que Hildebranda tinha trazido escondidos no forro do baú, e depois tinham que queimar folhas de papel da Armênia para purificar o ar de tugúrio que deixavam no quarto. Fermina Daza tinha fumado pela primeira vez em Valledupar, e tinha continuado a fazê-lo em Fonseca, em Riohacha, onde se trancavam até dez primas num quarto a falar de homens e a fumar às escondidas. Aprendeu a fumar ao contrário, com a brasa dentro da boca, como fumavam os homens nas noites das guerras para não serem denunciados pela ponta incandescente do charuto. Mas nunca tinha fumado sozinha. Com Hildebranda na casa passou a fazê-lo todas as noites antes de dormir, e desde então adquiriu o hábito de fumar, embora sempre às escondidas, mesmo do marido e dos filhos, não só porque era mal visto que mulher fumasse em público, como porque tinha o prazer associado à clandestinidade.
     A viagem de Hildebranda também tinha sido imposta pelos pais para ver se a afastavam de seu amor impossível, embora a tivessem convencido de que era para ajudar Fermina a se decidir por um bom partido. Hildebranda aceitara na esperança de enganar o esquecimento, como fizera a prima no seu momento, e combinara com o telegrafista de Fonseca para que enviasse suas mensagens debaixo do maior sigilo. Por isso foi tão amarga sua desilusão quando soube que Fermina Daza repudiara Florentino Ariza. Além disso, Hildebranda tinha uma concepção universal do amor, e achava que qualquer coisa que acontecesse com uma pessoa afetava todos os amores do mundo inteiro. Contudo, não renunciou ao projeto. Com uma audácia que provocou em Fermina Daza uma crise de espanto, foi sozinha à agência do telégrafo disposta a conquistar a boa vontade de Florentino Ariza.
     Não o teria identificado, pois não tinha um traço que correspondesse à imagem que ela formara através de Fermina Daza. À primeira vista lhe pareceu impossível que a prima tivesse estado a ponto de enlouquecer por aquele empregado quase invisível, com um ar de cachorro batido, cuja indumentária de rabino caído em desgraça e cujas maneiras solenes não podiam alterar o coração de ninguém. Mas logo se arrependeu da primeira impressão, pois Florentino Ariza se pôs a seu serviço incondicional sem saber quem era: não soube nunca. Ninguém a teria compreendido melhor do que ele, por isso não lhe exigiu que se identificasse nem lhe pediu endereço algum. Sua solução foi muito simples: ela passaria toda quarta feira à tarde na agência do telégrafo para que ele lhe entregasse as respostas em sua mão, e nada mais. Por outro lado, quando ele leu a mensagem que Hildebranda trazia escrita, perguntou a ela se aceitava uma sugestão, e ela concordou. Florentino Ariza fez primeiro umas correções entre linhas, suprimiu-as, tornou a escrever, ficou sem espaço, e afinal rasgou a folha e escreveu completa uma mensagem diferente que a ela pareceu enternecedora. Quando saiu do escritório do telégrafo, Hildebranda estava à beira das lágrimas.

— É feio e triste — disse a Fermina Daza — mas é todo amor.

      O que mais chamou a atenção de Hildebranda foi a solidão da prima. Parecia, lhe disse, uma solteirona de vinte anos. Acostumada a uma família numerosa e dispersa, em casas onde ninguém sabia de ciência certa quantos moravam nem quem ia comer a cada refeição, Hildebranda nem podia imaginar uma moça da sua idade reduzida ao claustro da vida privada. Assim era: desde que se levantava às seis da manhã até que apagava a luz do quarto, se consagrava à perda do tempo. A vida lhe era imposta de fora. Primeiro, com os últimos gaios, o leiteiro a acordava com a aldraba do portão. Depois tocava a peixeira com um caixote de pargos moribundos num leito de algas, as quitandeiras com os cestos tornados suntuosos com as hortaliças de Maria La Baja e as frutas de São Jacinto. Em seguida, durante todo o dia, tocavam todos: os mendigos, as moças das rifas, as irmãs de caridade, o amolador, o garrafeiro, o que comprava ouro quebrado, o que comprava papel de jornal, as falsas ciganas que se ofereciam para ler a sorte nas cartas, nas linhas da mão, na borra do café, nas águas das bacias. A semana de Gala Placídia se esvaía no abrir e fechar do portão para dizer que não, volte outro dia, ou gritando da sacada já sem paciência que não amolem mais, porra, que já compramos tudo que não tinha na casa. Substituíra tia Escolástica com tanto fervor e tanta graça que Fermina a confundia com a outra até para gostar mais dela. Tinha obsessões de escrava. Logo que encontrava um tempo livre ia para o quarto de serviço para passar a roupa branca, que deixava perfeita, que guardava nos armários com flores de alfazema, e não só passava e dobrava a que acabava de lavar como também a que tivesse perdido seu esplendor pela falta de uso. Com o mesmo cuidado continuava conservando o vestuário de Fermina Sánchez, mãe de Fermina, morta quatorze anos antes. Mas era Fermina Daza quem tomava as decisões. Resolvia o que se havia de comer, o que se havia de comprar, o que se tinha que fazer em cada caso, e desta forma determinava a vida de uma casa que na realidade não tinha nada que determinar. Quando acabava de lavar as gaiolas e pôr a comida dos pássaros, e de ver que nada faltasse às flores, ficava sem rumo. Muitas vezes, depois de ser expulsa do colégio, adormeceu na hora da sesta e só foi acordar no dia seguinte. As aulas de pintura eram apenas uma forma mais entretida de perder o tempo.
     As relações com o pai careciam de afeto desde o exílio de tia Escolástica, embora ambos tivessem encontrado o modo de viver juntos sem se atrapalhar. Quando ela se levantava, ele já tinha ido aos seus negócios. Poucas vezes faltava ao rito do almoço, embora quase nunca comesse, pois lhe bastavam os aperitivos e os acepipes galegos do Café da Paróquia. Tampouco jantava: deixavam sua porção na mesa, toda num prato só e tapada com outro, embora soubessem que ele só a comeria no dia seguinte requentada na hora do café. Uma vez por semana dava à filha o dinheiro da despesa, que ele calculava muito bem e que ela administrava com rigor, mas atendia com gosto a qualquer pedido que ela fizesse para gastos imprevistos. Nunca lhe regateava um vintém, nunca lhe pedia contas, mas ela se comportava como se tivesse que prestá-las perante o tribunal do Santo Ofício. Nunca lhe falara da índole ou estado dos seus negócios, nunca a levara a conhecer seus escritórios do porto, que estavam num lugar vedado a senhoritas decentes mesmo que acompanhadas do pai. Lorenzo Daza não chegava a casa antes das dez da noite, que era a hora do toque de recolher nas épocas menos críticas das guerras. Ficava até essa hora no Café da Paróquia, jogando o que fosse, porque era especialista em todos os jogos de salão, além de bom professor deles. Sempre entrou em casa em seu perfeito juízo, sem despertar a filha, apesar de tomar a primeira pinga de anis ao acordar e de continuar mastigando a ponta do charuto apagado e tomando tragos espaçados durante o resto do dia. Uma noite, contudo, Fermina percebeu que ele entrava. Ouviu seus passos de cossaco nas escadas, ouviu seu arquejo enorme no corredor do segundo andar, seus golpes com a palma da mão na porta do quarto. Ela lhe abriu a porta, e pela primeira vez se assustou com seu olho torto e o engrolamento de suas palavras.

 — Estamos na ruína — disse ele. — Ruína total, pode ficar sabendo.

     Foi tudo que disse, e nunca mais tornou a dizê-lo nem aconteceu nada que indicasse se dissera a verdade, mas depois daquela noite Fermina Daza ficou consciente de que estava só no mundo. Vivia num limbo social. Suas antigas companheiras de colégio estavam num céu proibido para ela, muito mais ainda depois da desonra da expulsão, mas nem por isso ela era vizinha dos vizinhos, porque estes a haviam conhecido sem passado e com o uniforme da Apresentação da Santíssima Virgem. O mundo de seu pai era de traficantes e estivadores, de refugiados de guerras no albergue público do Café da Paróquia, de homens sós. No último ano, as aulas de pintura haviam aliviado um pouco sua reclusão, porque a professora preferia as aulas coletivas e costumava trazer outras alunas ao quarto de costura. Mas eram moças de condições sociais dispersas e mal definidas, e para Fermina Daza não passavam de amigas emprestadas cujo afeto acabava com cada aula. Hildebranda queria abrir a casa, ventilá-la, trazer os músicos e os foguetes e fogueteiros de seu pai e fazer um baile de carnaval cujas ventanias varressem o desânimo e as traças que roíam a vida da prima, mas em pouco tempo percebeu que seus propósitos eram inúteis. Por uma razão simples: não havia com quem.
     De qualquer maneira, foi ela quem a pôs a viver. À tarde, depois das aulas de pintura, ela se fazia levar à rua para conhecer a cidade. Fermina Daza lhe mostrou o caminho que fazia todos os dias com tia Escolástica, o banco da pracinha onde Florentino Ariza fingia ler para esperá-la, as ruelas por onde a seguia, os esconderijos das cartas, o palácio sinistro que abrigara o cárcere do Santo Ofício, e que depois tinha sido restaurado e convertido no Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, que ela odiava com toda a sua alma. Subiram a colina do cemitério dos pobres, onde Florentino Ariza tocava violino segundo o rumo dos ventos para que ela o escutasse na cama, e dali viram inteira a cidade histórica, os telhados quebrados e os muros carcomidos, os escombros das fortalezas entre os matagais, a fileira de ilhas na baía, os barracões da miséria ao redor dos pântanos, o Caribe imenso.
     Na noite de Natal, foram à missa do galo na catedral. Fermina ocupou o assento onde lhe chegava melhor a música confidencial de Florentino Ariza, e mostrou à prima o lugar exato em que uma noite como aquela tinha visto de perto pela primeira vez seus olhos espantados. Arriscaram-se sozinhas até o Portal dos Escrivães, compraram doces, se divertiram na loja dos papéis de fantasia, e Fermina Daza assinalou para a prima o lugar em que descobrira de golpe que seu amor não passava de uma miragem. Não tinha percebido ela própria que cada passo seu da casa ao colégio, cada lugar da cidade, cada instante de seu passado recente só pareciam existir por obra e graça de Florentino Ariza. Foi o que Hildebranda a fez ver, mas ela não admitiu, pois jamais reconheceria como realidade que Florentino Ariza, para o bem ou para o mal, era a única coisa que lhe acontecera na vida.

continua na página 101...
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O Amor nos Tempos de Cólera: O arcebispo não foi
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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