O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
continuando... Desde a entrega da carta, um mês antes, ele havia contrariado muitas
vezes a promessa de não voltar à pracinha, mas tinha tomado boas precauções para
não se deixar ver. Tudo continuava no mesmo. A aula de leitura debaixo das árvores
terminava por volta das duas da tarde, quando a cidade acordava da sesta, e Fermina
Daza continuava bordando com a tia até que declinava o calor. Florentino Ariza não
esperou que a tia entrasse na casa e foi atravessando a rua com umas passadas
marciais que lhe permitiram dominar o desalento dos joelhos. Mas não se dirigiu a
Fermina Daza, e sim à tia.
— Atrevido! — disse a tia. — Não há assunto dela que eu não conheça.
— Atrevido! — disse a tia. — Não há assunto dela que eu não conheça.
Não eram essas as maneiras que Escolástica Daza esperava do noivo ideal, mas
se levantou assustada, porque teve pela primeira vez a impressão avassaladora de
que Florentino Ariza estava falando por inspiração do Espírito Santo. Por isso
entrou na casa para trocar de agulhas e deixou sós os dois jovens debaixo das
amendoeiras do portal.
Na realidade, era muito pouco o que sabia Fermina Daza daquele pretendente
taciturno que aparecera em sua vida feito uma andorinha de inverno, e de quem
não saberia sequer o nome se não fosse a assinatura da carta. Apurara desde então
que era filho sem pai de uma solteira laboriosa e séria, mas marcada sem remédio
pelo estigma de fogo de um único mau passo juvenil. Descobrira que não era
mensageiro do telégrafo, como supunha, e sim um assistente bem qualificado e de
futuro promissor, e achou que levara o telegrama a seu pai apenas como um
pretexto para vê-la. Essa suposição a comoveu. Também sabia que era um dos
músicos do coro, e embora nunca tivesse ousado levantar a vista para comprová-lo
durante a missa, um domingo teve a revelação de que enquanto os outros
instrumentos tocavam para todos o violino tocava só para ela. Não era o tipo de
homem que houvesse escolhido. Seus óculos de menino enjeitado, sua postura
clerical, seus recursos misteriosos haviam suscitado nela uma curiosidade difícil de
resistir, mas nunca imaginara que a curiosidade fosse outra das tantas ciladas do
amor.
Ela própria não sabia explicar a si mesma por que havia aceito a carta. Não é que
se culpasse por isso, mas o compromisso cada vez mais premente de dar uma
resposta acabara convertido num empecilho à vida. Cada palavra do seu pai, cada
olhar casual, seus gestos mais triviais lhe pareciam semeados de truques para
descobrir seu segredo. Era tal seu estado de alarma que evitava falar à mesa, de
modo que um descuido pudesse delatá-la, e se tornou evasiva até com a tia
Escolástica, que compartilhava de sua ansiedade reprimida como se fosse dela
própria. Trancava-se no banheiro a qualquer hora, sem necessidade, e tornava a ler
a carta procurando descobrir um código secreto, uma fórmula mágica escondida em
alguma das trezentas e quatorze letras de suas cinquenta e oito palavras, na
esperança de que dissessem mais do que diziam. Mas não encontrou nada além do
que havia entendido da primeira leitura, quando correu a se trancar no banheiro
com o coração enlouquecido, e despedaçou o envelope na ilusão de que fosse uma
carta abundante e febril, só encontrando um bilhete perfumado cuja determinação a
assustou.
A princípio não havia pensado a sério que estivesse obrigada a dar uma resposta,
mas a carta era tão explícita que não havia maneira de contorná-la. Enquanto isso,
na tempestade das dúvidas, surpreendeu-se pensando em Florentino Ariza com
mais freqüência e mais interesse do que queria permitir a si mesma, e até
perguntava atribulada por que não estava ele na pracinha à hora de sempre, sem
lembrar que ela é que havia pedido que ele não voltasse enquanto ela pensava na
resposta. Acabou pensando nele como jamais imaginara que se pudesse pensar em
alguém, pressentindo-o onde não estava, desejando-o onde não podia estar,
acordando de súbito com a sensação física de que ele a contemplava na escuridão
enquanto ela dormia, de maneira que na tarde em que sentiu seus passos resolutos
no tapete de folhas amarelas da pracinha custou a crer que não fosse outro embuste
da sua fantasia. Mas quando ele lhe exigiu a resposta com uma autoridade que nada
tinha a ver com suas maneiras lânguidas, conseguiu dominar o espanto e tratou de
se evadir pela verdade: não sabia o que responder. No entanto, Florentino Ariza não
havia transposto um abismo para se amedrontar com os seguintes.
— Se aceitou a carta — lhe disse — é falta de educação não respondê-la.
Esse foi o final do labirinto. Fermina Daza, senhora de si mesma, se desculpou
pela demora, e lhe deu sua palavra de honra de que teria uma resposta antes do fim
das férias. Cumpriu. Na última sexta-feira de fevereiro, três dias antes da reabertura
dos colégios, tia Escolástica foi ao telégrafo perguntar quanto custava um telegrama
para o povoado de Pedras de Moer, que sequer figurava na lista, e se deixou atender
por Florentino Ariza como se nunca se tivessem visto, mas ao sair fingiu esquecer
em cima do balcão um breviário encadernado em couro de lagarto dentro do qual
havia um envelope de papel de linho com arabescos dourados. Transtornado pela
ventura, Florentino Ariza passou o resto da tarde comendo rosas e lendo a carta,
repassando-a letra por letra uma vez e mais outra e comendo mais rosas quanto
mais lia a carta, e à meia-noite já a lera tanto e comera tantas rosas que a mãe teve
que subjugá-lo e prender-lhe a cabeça por trás, como a um bezerro, para que
engolisse uma poção de óleo de rícino.
Foi o ano do namoro encarniçado. Nem ele nem ela tinham vida para nada que
não fosse pensar no outro, para sonhar com o outro, para esperar as cartas com a
mesma ansiedade com que as respondiam. Jamais, naquela primavera de delírio, ou
no ano seguinte, tiveram ocasião de se comunicarem de viva voz. E mais: do
instante em que se viram pela primeira vez até o instante em que ele reiterou sua
determinação meio século depois, jamais tiveram uma oportunidade de se verem a
sós nem de falar do seu amor. Mas nos três primeiros meses não se passou um só
dia sem que se escrevessem, e em certa época até duas vezes por dia, até que tia
Escolástica se assustou com a voracidade da fogueira que ela própria ajudara a
atear.
Depois da primeira carta, que levou ao telégrafo sentindo algum rescaldo de
vingança contra sua própria sorte, permitira a troca de recados quase diários em
encontros de rua que pareciam casuais, mas não teve coragem de patrocinar uma
conversa, por banal e momentânea que fosse. Contudo, ao fim de três meses
compreendeu que a sobrinha não estava à mercê de um capricho juvenil, como lhe
parecera a princípio, e que sua própria vida estava ameaçada por aquele incêndio de
amor. Na verdade, Escolástica Daza só tinha como modo de subsistência a caridade
do irmão, que com seu caráter tirânico jamais perdoaria semelhante abuso da sua
confiança, Mas na hora da decisão final não teve coração para lançar a sobrinha no
mesmo infortúnio irreparável com que tivera de viver desde a juventude, e deixou
que ela usasse de um recurso que lhe deixava uma ilusão de inocência. Foi um
método simples. Fermina Daza punha sua carta em algum esconderijo no percurso
diário entre a casa e o colégio, e nessa mesma carta indicava a Florentino Ariza onde
esperava receber a resposta, Florentino Ariza fazia o mesmo. Desse modo os
conflitos de consciência de tia Escolástica foram transferidos pelo resto do ano para
os batistérios das igrejas, o oco das árvores, as fendas das fortalezas coloniais em
ruínas. Às vezes encontravam as cartas empapadas de chuva, sujas de lama,
raspadas pela adversidade, e algumas se perderam por motivos diversos, mas os
dois sempre descobriram os meios e modos de reatar o contato.
Florentino Ariza escrevia todas as noites sem piedade consigo mesmo,
envenenando-se letra a letra com a fumaça das candeias de óleo de coco no cômodo
de trás do armarinho, e suas cartas iam ficando mais extensas e lunáticas à medida
que ele se esforçava por imitar seus poetas preferidos da Biblioteca Popular, que já
por essa época ia chegando aos oitenta volumes. Sua mãe, que com tanto ardor o
havia incitado a desfrutar do seu tormento, começou a se alarmar por sua saúde.
"Você vai gastar o siso", gritava para ele do quarto de dormir quando ouvia cantar os
primeiros gaios. "Não há mulher que mereça tanto." Não se lembrava de ter
conhecido ninguém em tal cotado de perdição. Mas ele não ligava. Às vezes chegava
ao escritório sem dormir, os cabelos desgrenhados de amor, depois de ter deixado a
carta no esconderijo previsto para que Fermina Daza a encontrasse a caminho do
colégio. Ela, por sua vez, submetida à vigilância do pai e à tocaia viciosa das freiras,
mal chegava a completar meia folha do caderno escolar trancada nos banheiros ou
fingindo tomar notas durante as aulas. Mas não apenas devido às pressas e sustos,
como também por seu caráter, as cartas dela se desviavam de escolhos sentimentais
e se limitavam a contar incidentes de sua vida cotidiana no estilo utilitário de um
diário de bordo. Na realidade, eram cartas de distração, destinadas a manter as
brasas vivas mas sem botar a mão no fogo, enquanto Florentino Ariza se incinerava
a cada linha. Aflito por contagiá-la com sua própria loucura, mandava-lhe versos de
miniaturista gravados com a ponta de um alfinete na pétala das camélias. Foi ele e
não ela quem teve a audácia de pôr um cacho de cabelo dentro de uma carta, mas
não recebeu nunca a resposta ambicionada, que era um fio completo da trança de
Fermina Daza. Conseguiu pelo menos que ela desse mais um passo, pois a partir daí
começou a lhe mandar nervuras de folhas ressecadas em dicionários, asas de
borboleta, penas de pássaros mágicos, e lhe deu de aniversário um centímetro
quadrado do hábito de São Pedro Claver, dos que se vendiam então às escondidas a
um preço inatingível para uma colegial da sua idade. Uma noite, sem qualquer
aviso, Fermina Daza acordou assustada por uma serenata de uma valsa só em solo
de violino. Iluminou-a a clarividência de que cada nota era uma ação de graças pelas
pétalas dos seus herbários, pelo tempo roubado à aritmética para escrever suas
cartas, pelo susto dos exames pensando mais nele do que nas Ciências Naturais,
mas não se atreveu a acreditar que Florentino Ariza fosse capaz de semelhante
imprudência.
No dia seguinte, ao café da manhã, Lorenzo Daza não aguentava a curiosidade.
Em primeiro lugar, porque não sabia o que significava uma só peça na linguagem
das serenatas, e em segundo porque, apesar da atenção com que escutara, não tinha
conseguido descobrir de que casa vinha a música. Tia Escolástica, com um sangue
frio que devolveu o fôlego à sobrinha, assegurou ter visto através das frestas da
cortina do quarto que o violinista solitário estava do outro lado da praça, e disse que
em todo o caso uma peça única era uma notificação de rompimento. Na sua carta
desse dia, Florentino Ariza confirmou que ele tinha feito a serenata, e que a valsa
tinha sido composta por ele e tinha o nome pelo qual conhecia Fermina Daza em
seu coração: A Deusa Coroada. Não voltou a tocá-la na praça, mas continuou a fazê-lo em noites de luar em lugares escolhidos de propósito para que ela o escutasse
sem sobressaltos no quarto. Um de seus lugares preferidos era o cemitério dos
pobres, exposto ao sol e à chuva numa colina indigente onde dormiam os urubus, e
onde a música adquiria sonoridades sobrenaturais. Mais tarde aprendeu a conhecer
a direção dos ventos, e assim ficou seguro de que sua voz chegava onde devia.
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continua na página 056...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Desde a entrega da carta
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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