Machado de Assis
Conto
ERNESTO DE TAL
(Capítulo III)
— Um palerma — é o que Rosina queria dizer quando defendeu a
fidelidade de Ernesto, maliciosamente atacada pelas duas amigas.
Havia apenas três meses que Ernesto namorava a sobrinha de Vieira, que
se carteava com ela, que protestavam um ao outro eterna fidelidade, e
nesse curto espaço de tempo tinha já descoberto cinco ou seis mouros na
costa. Nessas ocasiões fervia-lhe a cólera, e era capaz de deitar tudo
abaixo. Mas a boa menina, com a sua varinha mágica, trazia o rapaz a
bom caminho, escrevendo-lhe duas linhas ou dizendo-lhe quatro palavras
de fogo. Ernesto confessava que tinha visto mal, e que ela era
excessivamente misericordiosa para com ele.
— Merecia bem que eu o não amasse mais, observava Rosina com
gracioso enfado.
— Oh! não!
— Para que há de inventar essas coisas?
— Eu não invento... disseram-me.
— Pois fez mal em acreditar.
— Fiz mal, sim... você é um anjo do céu!
Rosina perdoava-lhe a calúnia, e as coisas continuavam como dantes.
Um amigo a quem Ernesto confiava todas as suas alegrias e mágoas, a
quem tomava por conselheiro e que era seu companheiro de casa, muitas
vezes lhe dizia:
— Olha, Ernesto, eu creio que estás perdendo o teu trabalho.
— Como assim?
— Ela não gosta de ti.
— Impossível!
— Tu és apenas um passatempo.
— Enganas-te; ama-me.
— Mas ama também a outros muitos.
— Jorge!
— Em suma...
— Nem mais uma palavra!
— É uma namoradeira, concluía o amigo tranquilamente.
Ouvindo este peremptório juízo do amigo, Ernesto despedia um olhar
longo e profundo, capaz de paralisar todos os movimentos conhecidos da
mecânica; como porém o rosto do amigo não revelasse a menor
impressão de temor ou arrependimento, Ernesto recolhia o olhar — mais
cordato neste ponto que o senador D. Manuel, a quem o visconde de
Jequitinhonha dizia um dia no Senado que recolhesse um riso, e
continuava a rir — e tudo acabava em boa e santa paz.
Tal era a confiança de Ernesto na flor da Rua do Conde. Se ela lhe
dissesse um dia que tinha na algibeira do vestido uma das torres da
Candelária, não é certo, mas é muito provável que Ernesto lhe aceitasse a
notícia.
Desta vez porém o arrufo era sério. Ernesto vira positivamente a moça
receber uma cartinha, às furtadelas, da mão de uma espécie de primo
que frequentava a casa de Vieira. Seus olhos faiscaram de raiva quando
viram alvejar a misteriosa epístola nas mãos da moça. Fez um gesto de
ameaça ao rapaz, lançou um olhar de desprezo à moça, e saiu. Depois
escreveu a carta de que temos notícia, e foi esperar a resposta na esquina
da rua. Que resposta, se ele vira o gesto de Rosina? Leitor ingênuo, ele
queria uma resposta que lhe demonstrasse não ter visto coisa alguma,
uma resposta que o fizesse olhar para si mesmo com desprezo e nojo.
Não achava possível semelhante explicação; mas no fundo d’alma era isso
o que ele queria.
A resposta veio no dia seguinte. O rapaz que morava com ele foi acordá-lo às oito horas da manhã, para lhe entregar uma cartinha de Rosina.
Ernesto deu um salto na cama, assentou-se, abriu a epístola, e leu-a
rapidamente. Um ar de celeste bem-aventurança revelou ao companheiro
de Ernesto o conteúdo da carta.
— Tudo está sanado, disse Ernesto fechando a carta e descendo da cama;
ela explicou tudo, eu tinha visto mal.
— Ah! disse Jorge olhando com lástima para o amigo; então que diz ela?
Ernesto não respondeu imediatamente; abriu a carta outra vez, leu-a
para si, tornou a fechá-la, olhou para o teto, para as chinelas, para o
companheiro, e só depois desta série de gestos indicativos da profunda
abstração do seu espírito, é que respondeu a Jorge, dizendo:
— Ela explica tudo; a carta que eu pensei ser de amores era um bilhete
do primo pedindo algum dinheiro ao tio. Diz que eu sou muito mau em
obrigá-la a falar nestas fraquezas de família, e conclui jurando que me
ama como nunca seria capaz de amar ninguém. Lê.
Jorge recebeu a carta e leu, enquanto Ernesto passeava de um para outro
lado, gesticulando e monossilabando consigo mesmo, como se redigisse
mentalmente um ato de contrição.
— Então? que tal? disse ele quando Jorge lhe entregou a carta.
— Tens razão, tudo se explica, respondeu Jorge.
Ernesto foi nessa mesma tarde à Rua do Conde. Ela recebeu-o com um
sorriso logo de longe. Na primeira ocasião que tiveram, tudo ficou
explicado, declarando-se Ernesto compungido por haver suspeitado de
Rosina, e levando a moça a sua generosidade ao ponto de lhe ceder um
beijo, ao lusco-fusco, antes que a criada viesse acender as velas de
spermacetti dos aparadores.
Agora tem a palavra o leitor para interpelar-me a respeito das intenções
desta moça, que preferindo a posição do rapaz de nariz comprido, ainda
se carteava com Ernesto, e lhe dava todas as demonstrações de uma
preferência que não existia.
As intenções de Rosina, leitor curioso, eram perfeitamente conjugais.
Queria casar, e casar o melhor que pudesse. Para este fim aceitava a
homenagem de todos os seus pretendentes, escolhendo lá consigo o que
melhor correspondesse aos seus desejos, mas ainda assim sem
desanimar os outros, porque o melhor deles podia falhar, e havia para ela
uma coisa pior que casar mal, que era não casar absolutamente.
Este era o programa da moça. Junte a isso que era naturalmente loureira,
que gostava de trazer ao pé de si uma chusma de pretendentes, muitos
dos quais é preciso saber que não pretendiam casar, e namoravam por
passatempo, o que revelava da parte desses cavalheiros uma incurável
vadiação de espírito.
Quem não tem cão, caça com gato, diz o provérbio. Ernesto era pois,
moral e conjugalmente falando, o gato possível de Rosina, uma espécie
de pis-aller, — como dizem os franceses, — que convinha ter à mão.
continua na página 57...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Ernesto de Tal (III)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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