quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: No domingo de Pentecostes

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      No domingo de Pentecostes, quando levantou a manta para ver o cadáver de Jeremiah de Saint-Amour, o doutor Urbino teve a revelação de algo que lhe fora negado até então em suas navegações mais lúcidas de médico e de crente. Foi como se depois de tantos anos de familiaridade com a morte, depois de tanto combatê-la e manuseá-la do direito e do avesso, aquela tivesse sido a primeira vez que ousava olhá-la na cara, e também ela o estava olhando. Não era o medo da morte. Não: o medo estava dentro dele há muitos anos, convivia com ele, era outra sombra sobre a sua sombra, a partir da noite em que acordou perturbado por um sonho mau e ficou consciente de que a morte não era só uma probabilidade permanente, como havia achado sempre, e sim uma realidade imediata. O que tinha visto aquele dia era a presença física de algo que até então não passava de uma certeza da imaginação. Alegrou-o que o instrumento da Divina Providência para aquela revelação surpreendente tivesse sido Jeremiah de Saint-Amour, a quem sempre considerara um santo que ignorava seu próprio estado de graça. Mas quando a carta lhe revelou sua identidade verdadeira, seu passado sinistro, seu inconcebível poder de artifício, sentiu que alguma coisa definitiva e sem retorno tinha acontecido em sua vida.
     Contudo, Fermina Daza não se deixou contagiar por seu humor sombrio. Ele bem que tentou, enquanto ela o ajudava a enfiar as pernas nas calças e lhe abotoava a camisa. Mas não conseguiu, porque Fermina Daza não era fácil de impressionar, menos ainda com a morte de um homem de quem não gostava. Sabia apenas que Jeremiah de Saint-Amour era um inválido de muletas a quem nunca tinha visto, que escapara a um pelotão de fuzilamento numa das tantas insurreições de uma das tantas ilhas das Antilhas, que se fizera fotógrafo de crianças por necessidade, chegando a ser o mais solicitado da província, e que tinha ganho uma partida de xadrez a alguém de quem ela se lembrava como Torremolinos mas que na realidade se chamava Capablanca.

 — Pois não passava de um fugitivo de Caiena condenado à prisão perpétua por um crime atroz — disse o doutor Urbino. — Imagine só que ele chegou a comer carne humana.

     Passou-lhe a carta cujos segredos queria levar consigo para o túmulo, mas ela guardou as folhas dobradas na penteadeira, sem lê-las, e fechou a gaveta a chave. Estava habituada à insondável capacidade de assombro do marido, a seus julgamentos exagerados que ficavam mais arrevesados com o passar dos anos, a uma estreiteza de critério que não coincidia com sua imagem pública. Daquela vez ele havia excedido seus próprios limites. Ela supunha que o marido não apreciava Jeremiah de Saint-Amour pelo que tinha sido antes, e sim pelo que começou a ser depois de chegar sem quaisquer haveres além da mochila de exilado, e não podia compreender por que o consternava daquele modo a revelação tardia da sua identidade. Não compreendia por que lhe parecia abominável que tivesse tido uma mulher escondida se esse era um hábito atávico dos homens de sua classe, inclusive ele num momento ingrato, e além disso achava uma prova desatinada de amor que ela o tivesse ajudado a consumar sua decisão de morrer. Disse: "Se você também resolvesse fazer o mesmo por motivos tão sérios quanto os dele, meu dever seria fazer o mesmo que ela." O doutor Urbino se encontrou uma vez mais na encruzilhada de incompreensão simples que o exasperava há meio século.

 — Você não entende nada — disse. — O que me indigna não é o que foi nem o que fez, e sim o engano em que nos manteve a todos durante tantos anos.

      Seus olhos começaram a se marejar de lágrimas fáceis, mas ela fingiu que não via.

— Fez bem — respondeu. — Se tivesse dito a verdade, nem você, nem essa pobre mulher, nem ninguém por aí o teria querido tanto quanto foi querido.

     Prendeu-lhe o relógio de corrente na botoeira do colete. Arrematou-lhe o nó da gravata e enfiou o alfinete de topázio. Depois lhe secou as lágrimas e lhe limpou a barba chorada com o lenço úmido de Água Florida, e o colocou no bolso do peito com as pontas abertas feito uma magnólia. As onze badaladas do relógio de pêndulo ressoaram no oco da casa.

 — Depressa — disse ela, impelindo-o com o braço. — Vamos chegar tarde.

     Aminta Dechamps, mulher do doutor Lácides Olivella, e suas sete filhas, cada uma mais diligente do que a outra, haviam previsto tudo para que o almoço das bodas de prata fosse o acontecimento social do ano. A residência familiar em pleno centro histórico era a antiga Casa da Moeda, desnaturada por um arquiteto florentino que passou por aqui como um vento mau de renovação e converteu em basílicas de Veneza inúmeras relíquias do século XVII. Tinha seis quartos de dormir e dois salões de jantar e recepção, bem arejados e amplos, mas não o suficiente para os convidados da cidade, além dos muito selecionados que viriam de fora. O pátio era igual ao claustro de uma abadia, com um repuxo de pedra que cantava no centro e canteiros de heliotrópios que perfumavam a casa ao entardecer, mas o espaço das arcadas não era suficiente para tantos sobrenomes tão grandes. Por isso resolveram fazer o almoço na quinta campestre da família, a dez minutos de automóvel pela estrada real, que tinha um alqueire de terreno e enormes loureiros da índia e nenúfares da terra num rio de águas mansas. Os homens da Pousada do Sancho, dirigidos pela senhora de Olivella, puseram toldos de lona colorida nos espaços sem sombra, e armaram debaixo dos loureiros um retângulo com mesinhas para cento e vinte e dois talheres, com guardanapos de linho para iodos e ramos de rosas do dia na mesa de honra. Construíram também um tablado para uma banda de instrumentos de sopro com um programa restrito de contradanças e valsas nacionais, e para um quarteto de cordas da Escola de Belas-Artes, que era uma surpresa da senhora Olivella para o mestre venerando de seu marido, que havia de presidir ao almoço. Embora a data não correspondesse a rigor com o aniversário da formatura, escolheram o domingo de Pentecostes para enaltecer o sentido da festa.
     Os preparativos tinham começado três meses antes, por temor de que algo indispensável ficasse por fazer por falta de tempo. Fizeram trazer as galinhas vivas do Pântano de Ouro, famosas em todo o litoral por seu tamanho e sua delícia, e também porque nos tempos da Colônia ciscavam em terras de aluvião, e na sua moela se encontravam pedrinhas de ouro puro. A senhora de Olivella em pessoa, acompanhada de algumas das filhas e da gente de seu serviço, subia a bordo dos transatlânticos de luxo para escolher o melhor de todos os cantos do mundo para honrar os méritos do esposo. Havia previsto tudo, salvo que a festa era num domingo de junho de um ano de chuvas tardias. Reparou no risco que corria na manhã do mesmo dia, quando saiu para a missa solene e se assustou com a umidade do ar, e viu que o céu estava denso e baixo e não se conseguia ver o horizonte do mar. Apesar desses indícios aziagos, o diretor do observatório astronômico, com quem se encontrou na missa, lembrou-lhe que na muito aventurosa história da cidade, mesmo nos invernos mais cruéis, jamais chovera no dia de Pentecostes. Não obstante, ao toque das doze, quando já muitos dos convidados tomavam os aperitivos ao ar livre, o estampido de um trovão solitário fez tremer a terra, e um vento de maus bofes desbaratou as mesas e carregou os toldos pelos ares, e o céu despencou num aguaceiro de desastre.
     O doutor Juvenal Urbino conseguiu chegar a duras penas em plena desordem da tempestade, junto com os últimos convidados que encontrou no caminho, e queria ir com eles dos carros até a casa saltando pelas pedras através do jardim alagado, mas acabou por aceitar a humilhação de ser carregado em braços pelos homens do taverneiro Sancho debaixo de um palio de lonas amarelas. As mesas separadas foram arrumadas de novo da melhor maneira possível no interior da casa, até nos quartos de dormir, e os convidados não faziam nenhum esforço para dissimular seu humor de naufrágio. Fazia um calor de caldeira de navio, pois tinham tido que fechar as janelas para impedir que se intrometesse a chuva fustigada pelo vento. Ao ar livre, cada lugar da mesa tinha um cartão com o nome do convidado, e estava previsto um lado para os homens e outro para as mulheres, como era de costume. Mas os cartões com os nomes se confundiram dentro da casa, e cada um se sentou como pôde, numa promiscuidade de força maior que ao menos por uma vez contrariou nossas superstições sociais. No meio do cataclismo, Aminta de Olivella parecia estar em todos os cantos ao mesmo tempo, com o cabelo empapado e o vestido esplêndido salpicado de lama, mas se sobrepunha à desgraça com o sorriso invencível que aprendera com o esposo para não dar prazer à adversidade. Com a ajuda das filhas, forjadas na mesma frágua, conseguiu até onde foi possível preservar os lugares da mesa de honra, com o doutor Juvenal Urbino no centro e o arcebispo Obdulio y Rey à sua direita. Fermina Daza se sentou junto do esposo, como costumava fazer, de medo que ele adormecesse durante o almoço ou derramasse a sopa nas lapelas. O lugar em frente foi ocupado pelo doutor Lácides Olivella, um cinqüentão com ares femininos, muito bem conservado, cujo espírito festivo não tinha nenhuma relação com seus diagnósticos certeiros. O resto da mesa se completou com as autoridades provinciais e municipais, e a rainha da beleza do ano anterior, que o governador levou pelo braço para sentá-la ao seu lado. Embora não fosse costume exigir nos convites um traje especial, menos ainda para um almoço campestre, as mulheres usavam vestidos de noite com adereços de pedras preciosas, e a maioria dos homens estava de escuro com gravata preta, alguns com sobrecasacas de lã. Só os de muito traquejo, e entre eles o doutor Urbino, vestiam as roupas de todos os dias. Em cada lugar havia uma cópia do menu, impresso em francês e com vinhetas douradas.
     A senhora de Olivella, alarmada com os estragos do calor, percorreu a casa suplicando aos homens que tirassem o paletó para almoçar, mas ninguém se atreveu a dar o exemplo. O arcebispo fez notar ao doutor Urbino que aquele era de certo modo um almoço histórico: ali estavam pela primeira vez juntos numa mesma mesa, cicatrizadas as feridas e dissipados os rancores, os dois lados das guerras civis que tinham ensanguentado o país a partir da independência. Esse pensamento coincidia com o entusiasmo dos liberais, sobretudo os jovens, que tinham conseguido eleger um presidente de seu partido depois de quarenta e cinco anos de hegemonia conservadora. O doutor Urbino não estava de acordo: um presidente liberal não lhe parecia nem mais nem menos que um presidente conservador, só que se vestia pior. Contudo, não quis contrariar o arcebispo. Teria gostado ainda assim de lhe observar que ninguém estava naquele almoço pelo que pensava e sim pelos méritos de sua linhagem, e esta estivera sempre por cima dos azares da política e os horrores da guerra. Desse ponto de vista, com efeito, não faltava ninguém.
     O aguaceiro parou de repente como havia começado, o sol se incendiou de imediato no céu sem nuvens, mas a borrasca tinha sido tão violenta que arrancou pela raiz algumas árvores, e a água represada converteu o quintal em pântano. O desastre maior tinha sido na cozinha. Vários fogões de lenha tinham sido armados com tijolos na parte de trás da casa, ao ar livre, e mal tinham tido tempo os cozinheiros de pôr os caldeirões a salvo da chuva. Perderam um tempo precioso enxugando a cozinha inundada e improvisando novos fogões na galeria posterior. Mas à uma da tarde estava solucionada a emergência, só faltava a sobremesa encomendada às monjas de Santa Clara, que se haviam comprometido a mandá-la às onze. Temia-se que o arroio da estrada real tivesse saído do leito, como ocorria em invernos menos severos, e se assim fosse não seria possível contar com o doce antes das duas horas. Logo que estiou abriram-se as janelas, e a casa se refrescou com o ar purificado pelo enxofre da tempestade. Ordenou-se em seguida que a banda tocasse o programa de valsas no terraço do pórtico, o que só serviu para aumentar a aflição, já que a ressonância dos metais dentro da casa obrigava a que se conversasse aos gritos. Cansada de esperar, sorrindo à beira de lágrimas, Aminta de Olivella mandou que se servisse o almoço.

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O Amor nos Tempos de Cólera: No domingo de Pentecostes
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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