Gabriel García Márquez
continuando... No domingo de Pentecostes, quando levantou a manta para ver o cadáver de
Jeremiah de Saint-Amour, o doutor Urbino teve a revelação de algo que lhe fora
negado até então em suas navegações mais lúcidas de médico e de crente. Foi como
se depois de tantos anos de familiaridade com a morte, depois de tanto combatê-la e
manuseá-la do direito e do avesso, aquela tivesse sido a primeira vez que ousava
olhá-la na cara, e também ela o estava olhando. Não era o medo da morte. Não: o
medo estava dentro dele há muitos anos, convivia com ele, era outra sombra sobre a
sua sombra, a partir da noite em que acordou perturbado por um sonho mau e ficou
consciente de que a morte não era só uma probabilidade permanente, como havia
achado sempre, e sim uma realidade imediata. O que tinha visto aquele dia era a
presença física de algo que até então não passava de uma certeza da imaginação.
Alegrou-o que o instrumento da Divina Providência para aquela revelação
surpreendente tivesse sido Jeremiah de Saint-Amour, a quem sempre considerara
um santo que ignorava seu próprio estado de graça. Mas quando a carta lhe revelou
sua identidade verdadeira, seu passado sinistro, seu inconcebível poder de artifício,
sentiu que alguma coisa definitiva e sem retorno tinha acontecido em sua vida.
Contudo, Fermina Daza não se deixou contagiar por seu humor sombrio. Ele
bem que tentou, enquanto ela o ajudava a enfiar as pernas nas calças e lhe abotoava
a camisa. Mas não conseguiu, porque Fermina Daza não era fácil de impressionar,
menos ainda com a morte de um homem de quem não gostava. Sabia apenas que
Jeremiah de Saint-Amour era um inválido de muletas a quem nunca tinha visto,
que escapara a um pelotão de fuzilamento numa das tantas insurreições de uma das
tantas ilhas das Antilhas, que se fizera fotógrafo de crianças por necessidade,
chegando a ser o mais solicitado da província, e que tinha ganho uma partida de
xadrez a alguém de quem ela se lembrava como Torremolinos mas que na realidade
se chamava Capablanca.
— Pois não passava de um fugitivo de Caiena condenado à prisão perpétua por
um crime atroz — disse o doutor Urbino. — Imagine só que ele chegou a comer
carne humana.
Passou-lhe a carta cujos segredos queria levar consigo para o túmulo, mas ela
guardou as folhas dobradas na penteadeira, sem lê-las, e fechou a gaveta a chave.
Estava habituada à insondável capacidade de assombro do marido, a seus
julgamentos exagerados que ficavam mais arrevesados com o passar dos anos, a
uma estreiteza de critério que não coincidia com sua imagem pública. Daquela vez
ele havia excedido seus próprios limites. Ela supunha que o marido não apreciava
Jeremiah de Saint-Amour pelo que tinha sido antes, e sim pelo que começou a ser
depois de chegar sem quaisquer haveres além da mochila de exilado, e não podia
compreender por que o consternava daquele modo a revelação tardia da sua
identidade. Não compreendia por que lhe parecia abominável que tivesse tido uma
mulher escondida se esse era um hábito atávico dos homens de sua classe, inclusive
ele num momento ingrato, e além disso achava uma prova desatinada de amor que
ela o tivesse ajudado a consumar sua decisão de morrer. Disse: "Se você também
resolvesse fazer o mesmo por motivos tão sérios quanto os dele, meu dever seria
fazer o mesmo que ela." O doutor Urbino se encontrou uma vez mais na
encruzilhada de incompreensão simples que o exasperava há meio século.
— Você não entende nada — disse. — O que me indigna não é o que foi nem o
que fez, e sim o engano em que nos manteve a todos durante tantos anos.
Seus olhos começaram a se marejar de lágrimas fáceis, mas ela fingiu que não
via.
— Fez bem — respondeu. — Se tivesse dito a verdade, nem você, nem essa pobre
mulher, nem ninguém por aí o teria querido tanto quanto foi querido.
Prendeu-lhe o relógio de corrente na botoeira do colete. Arrematou-lhe o nó da
gravata e enfiou o alfinete de topázio. Depois lhe secou as lágrimas e lhe limpou a
barba chorada com o lenço úmido de Água Florida, e o colocou no bolso do peito
com as pontas abertas feito uma magnólia. As onze badaladas do relógio de pêndulo
ressoaram no oco da casa.
— Depressa — disse ela, impelindo-o com o braço. —
Vamos chegar tarde.
Aminta Dechamps, mulher do doutor Lácides Olivella, e suas sete filhas, cada
uma mais diligente do que a outra, haviam previsto tudo para que o almoço das
bodas de prata fosse o acontecimento social do ano. A residência familiar em pleno
centro histórico era a antiga Casa da Moeda, desnaturada por um arquiteto
florentino que passou por aqui como um vento mau de renovação e converteu em
basílicas de Veneza inúmeras relíquias do século XVII. Tinha seis quartos de dormir
e dois salões de jantar e recepção, bem arejados e amplos, mas não o suficiente para
os convidados da cidade, além dos muito selecionados que viriam de fora. O pátio
era igual ao claustro de uma abadia, com um repuxo de pedra que cantava no centro
e canteiros de heliotrópios que perfumavam a casa ao entardecer, mas o espaço das
arcadas não era suficiente para tantos sobrenomes tão grandes. Por isso resolveram
fazer o almoço na quinta campestre da família, a dez minutos de automóvel pela
estrada real, que tinha um alqueire de terreno e enormes loureiros da índia e
nenúfares da terra num rio de águas mansas. Os homens da Pousada do Sancho,
dirigidos pela senhora de Olivella, puseram toldos de lona colorida nos espaços sem
sombra, e armaram debaixo dos loureiros um retângulo com mesinhas para cento e
vinte e dois talheres, com guardanapos de linho para iodos e ramos de rosas do dia
na mesa de honra. Construíram também um tablado para uma banda de
instrumentos de sopro com um programa restrito de contradanças e valsas
nacionais, e para um quarteto de cordas da Escola de Belas-Artes, que era uma
surpresa da senhora Olivella para o mestre venerando de seu marido, que havia de
presidir ao almoço. Embora a data não correspondesse a rigor com o aniversário da
formatura, escolheram o domingo de Pentecostes para enaltecer o sentido da festa.
Os preparativos tinham começado três meses antes, por temor de que algo
indispensável ficasse por fazer por falta de tempo. Fizeram trazer as galinhas vivas
do Pântano de Ouro, famosas em todo o litoral por seu tamanho e sua delícia, e
também porque nos tempos da Colônia ciscavam em terras de aluvião, e na sua
moela se encontravam pedrinhas de ouro puro. A senhora de Olivella em pessoa,
acompanhada de algumas das filhas e da gente de seu serviço, subia a bordo dos
transatlânticos de luxo para escolher o melhor de todos os cantos do mundo para
honrar os méritos do esposo. Havia previsto tudo, salvo que a festa era num
domingo de junho de um ano de chuvas tardias. Reparou no risco que corria na
manhã do mesmo dia, quando saiu para a missa solene e se assustou com a
umidade do ar, e viu que o céu estava denso e baixo e não se conseguia ver o
horizonte do mar. Apesar desses indícios aziagos, o diretor do observatório
astronômico, com quem se encontrou na missa, lembrou-lhe que na muito
aventurosa história da cidade, mesmo nos invernos mais cruéis, jamais chovera no
dia de Pentecostes. Não obstante, ao toque das doze, quando já muitos dos
convidados tomavam os aperitivos ao ar livre, o estampido de um trovão solitário
fez tremer a terra, e um vento de maus bofes desbaratou as mesas e carregou os
toldos pelos ares, e o céu despencou num aguaceiro de desastre.
O doutor Juvenal Urbino conseguiu chegar a duras penas em plena desordem da
tempestade, junto com os últimos convidados que encontrou no caminho, e queria
ir com eles dos carros até a casa saltando pelas pedras através do jardim alagado,
mas acabou por aceitar a humilhação de ser carregado em braços pelos homens do
taverneiro Sancho debaixo de um palio de lonas amarelas. As mesas separadas
foram arrumadas de novo da melhor maneira possível no interior da casa, até nos
quartos de dormir, e os convidados não faziam nenhum esforço para dissimular seu
humor de naufrágio. Fazia um calor de caldeira de navio, pois tinham tido que
fechar as janelas para impedir que se intrometesse a chuva fustigada pelo vento. Ao
ar livre, cada lugar da mesa tinha um cartão com o nome do convidado, e estava
previsto um lado para os homens e outro para as mulheres, como era de costume.
Mas os cartões com os nomes se confundiram dentro da casa, e cada um se sentou
como pôde, numa promiscuidade de força maior que ao menos por uma vez
contrariou nossas superstições sociais. No meio do cataclismo, Aminta de Olivella
parecia estar em todos os cantos ao mesmo tempo, com o cabelo empapado e o
vestido esplêndido salpicado de lama, mas se sobrepunha à desgraça com o sorriso
invencível que aprendera com o esposo para não dar prazer à adversidade. Com a
ajuda das filhas, forjadas na mesma frágua, conseguiu até onde foi possível
preservar os lugares da mesa de honra, com o doutor Juvenal Urbino no centro e o
arcebispo Obdulio y Rey à sua direita. Fermina Daza se sentou junto do esposo,
como costumava fazer, de medo que ele adormecesse durante o almoço ou
derramasse a sopa nas lapelas. O lugar em frente foi ocupado pelo doutor Lácides
Olivella, um cinqüentão com ares femininos, muito bem conservado, cujo espírito
festivo não tinha nenhuma relação com seus diagnósticos certeiros. O resto da
mesa se completou com as autoridades provinciais e municipais, e a rainha da
beleza do ano anterior, que o governador levou pelo braço para sentá-la ao seu lado.
Embora não fosse costume exigir nos convites um traje especial, menos ainda para
um almoço campestre, as mulheres usavam vestidos de noite com adereços de
pedras preciosas, e a maioria dos homens estava de escuro com gravata preta,
alguns com sobrecasacas de lã. Só os de muito traquejo, e entre eles o doutor
Urbino, vestiam as roupas de todos os dias. Em cada lugar havia uma cópia do
menu, impresso em francês e com vinhetas douradas.
A senhora de Olivella, alarmada com os estragos do calor, percorreu a casa
suplicando aos homens que tirassem o paletó para almoçar, mas ninguém se
atreveu a dar o exemplo. O arcebispo fez notar ao doutor Urbino que aquele era de
certo modo um almoço histórico: ali estavam pela primeira vez juntos numa mesma
mesa, cicatrizadas as feridas e dissipados os rancores, os dois lados das guerras civis
que tinham ensanguentado o país a partir da independência. Esse pensamento
coincidia com o entusiasmo dos liberais, sobretudo os jovens, que tinham
conseguido eleger um presidente de seu partido depois de quarenta e cinco anos de
hegemonia conservadora. O doutor Urbino não estava de acordo: um presidente
liberal não lhe parecia nem mais nem menos que um presidente conservador, só
que se vestia pior. Contudo, não quis contrariar o arcebispo. Teria gostado ainda
assim de lhe observar que ninguém estava naquele almoço pelo que pensava e sim
pelos méritos de sua linhagem, e esta estivera sempre por cima dos azares da
política e os horrores da guerra. Desse ponto de vista, com efeito, não faltava
ninguém.
O aguaceiro parou de repente como havia começado, o sol se incendiou de
imediato no céu sem nuvens, mas a borrasca tinha sido tão violenta que arrancou
pela raiz algumas árvores, e a água represada converteu o quintal em pântano. O
desastre maior tinha sido na cozinha. Vários fogões de lenha tinham sido armados
com tijolos na parte de trás da casa, ao ar livre, e mal tinham tido tempo os
cozinheiros de pôr os caldeirões a salvo da chuva. Perderam um tempo precioso
enxugando a cozinha inundada e improvisando novos fogões na galeria posterior.
Mas à uma da tarde estava solucionada a emergência, só faltava a sobremesa
encomendada às monjas de Santa Clara, que se haviam comprometido a mandá-la
às onze. Temia-se que o arroio da estrada real tivesse saído do leito, como ocorria
em invernos menos severos, e se assim fosse não seria possível contar com o doce
antes das duas horas. Logo que estiou abriram-se as janelas, e a casa se refrescou
com o ar purificado pelo enxofre da tempestade. Ordenou-se em seguida que a
banda tocasse o programa de valsas no terraço do pórtico, o que só serviu para
aumentar a aflição, já que a ressonância dos metais dentro da casa obrigava a que se
conversasse aos gritos. Cansada de esperar, sorrindo à beira de lágrimas, Aminta de
Olivella mandou que se servisse o almoço.
continua na página 031...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: No domingo de Pentecostes
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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