segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Dormiu sobressaltada

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez


continuando...

      Dormiu sobressaltada, vendo o doutor Juvenal Urbino em todos os cantos, vendo-o rir, cantar, despedindo chispas de enxofre pelos dentes com os olhos vendados, troçando dela numa língua sem regras fixas num carro diferente que subia até o cemitério dos pobres. Acordou muito antes de raiar o dia, exausta, e ficou acordada com os olhos fechados pensando nos anos incontáveis que ainda lhe faltavam viver. Depois, enquanto Hildebranda tomava banho, escreveu uma carta a toda pressa, dobrou-a a toda pressa, enfiou-a a toda pressa no envelope, e antes que Hildebranda saísse do banheiro mandou-a por Gala Placídia ao doutor Juvenal Urbino. Era uma carta das suas, sem uma letra a mais ou a menos, na qual só dizia que sim, doutor, que falasse com seu pai.
      Quando Florentino Ariza soube que Fermina Daza ia se casar com um médico de linhagem e fortuna, educado na Europa e com uma reputação rara em sua idade, não houve força capaz de levantá-lo de sua prostração. Trânsito Ariza fez mais do que o possível para consolá-lo com atenções de noiva quando viu que ele tinha perdido a fala e o. apetite e passava as noites em claro chorando sem sossego, e ao fim de uma semana conseguiu que comesse de novo. Falou então com o senhor Leão XII Loayza, o único sobrevivente dos três irmãos, e sem dizer o motivo pediu lhe que desse ao sobrinho um emprego para fazer qualquer coisa na companhia de navegação, contanto que fosse em algum porto perdido nos matos do Madalena, onde não houvesse correio nem telégrafo, nem visse ninguém que lhe contasse nada a respeito desta cidade de perdição. O tio não lhe deu o emprego por consideração com a viúva do irmão, que mal suportava a simples existência do bastardo, mas arranjou para ele o posto de telegrafista na Vila de Leyva, uma cidade de sonho a mais de vinte dias e a quase três mil metros de altura acima do nível da Rua das Janelas.
     Florentino Ariza nunca teve noção clara daquela viagem medicinal. Sempre a lembraria, assim como tudo que aconteceu naquela época, através dos cristais rarefeitos de sua desventura. Ao receber o telegrama da nomeação nem pensou em levá-lo em consideração, mas Lotário Thugut o convenceu com argumentos alemães de que um porvir radiante esperava por ele na administração pública. Disse: "O telégrafo é a profissão do futuro." Deu-lhe de presente um par de luvas forradas com pelo de coelho, um gorro das estepes e um sobretudo com gola de pele provado nos janeiros glaciais da Baviera. O tio Leão XII o presenteou com dois ternos de casimira e umas botas impermeáveis que tinham sido do irmão mais velho, e lhe deu uma passagem com camarote para o próximo navio. Trânsito Ariza reduziu as roupas às medidas do filho, que era menos corpulento que o pai e muito mais baixo que o alemão, e lhe comprou meias de lã e umas ceroulas de corpo inteiro para que não lhe faltasse nada contra os rigores do páramo. Florentino Ariza, endurecido de tanto sofrer, assistia aos preparativos da viagem como um morto teria assistido às disposições tomadas para suas exéquias. Não disse a ninguém que ia embora, não se despediu de ninguém, no mesmo hermetismo férreo com que só à mãe revelou o segredo de sua paixão reprimida, mas na véspera da viagem cometeu consciente uma última loucura do coração que bem poderia ter-lhe custado a vida. Vestiu à meia-noite seu traje de domingo e tocou em solo debaixo do balcão de Fermina Daza a valsa de amor que compusera para ela, que só eles dois conheciam, e que foi durante três anos o emblema de sua cumplicidade contrariada. Tocou-a murmurando a letra, o violino banhado em lágrimas, e com uma inspiração tão intensa que aos primeiros compassos começaram a ladrar os cachorros da rua, e em seguida os da cidade, mas depois se foram calando pouco a pouco graças ao feitiço da música, e a valsa terminou em meio a um silêncio sobrenatural. O balcão não se abriu, nem ninguém assomou à rua, nem mesmo o guarda-noturno que quase sempre acudia com sua lanterna para ver se colhia algum benefício com as sobras das serenatas. O ato foi uma invocação de alívio para Florentino Ariza, pois quando guardou o violino na caixa e se afastou pelas ruas mortas sem olhar para trás já não achava que ia embora na manhã seguinte, e sim que tinha ido embora há muitos anos com a disposição inabalável de não voltar nunca mais.
     O navio, um dos três iguais da Companhia Fluvial do Caribe, tinha sido rebatizado em homenagem ao fundador: Pio Quinto Loayza. Era uma casa flutuante de dois andares de madeira sobre um casco de ferro, largo e chato, com um calado máximo de cinco pés que lhe permitia evitar melhor os fundos variáveis do rio. Os navios mais antigos tinham sido fabricados em Cincinnati em meados do século, no modelo legendário dos que faziam o comércio do Ohio e Mississippi, e tinham a cada lado uma roda de propulsão movida por caldeira de lenha. Como estes, os navios da Companhia Fluvial do Caribe tinham no convés inferior, quase à tona d'água, as máquinas de vapor e as cozinhas, e os grandes cercados de galinheiro onde as tripulações dependuravam as redes, entrecruzadas em diferentes níveis. Tinham no andar superior a cabine de comando, os camarotes do capitão e seus oficiais, e uma sala de recreio e um refeitório, onde os passageiros notáveis eram convidados pelo menos uma vez para jantar e jogar cartas. No andar intermediário havia seis camarotes de primeira classe em ambos os lados de um passadiço que servia de refeitório comum, e na proa uma sala de estar aberta sobre o rio com gradis de madeira rendada e pilastras de ferro, onde dependuravam à noite suas redes os passageiros da plebe. No entanto, ao contrário dos mais antigos, estes navios não tinham as pás de propulsão a cada lado, e sim uma enorme roda na popa com pás horizontais debaixo dos reservados sufocantes do convés de passageiros. Florentino Ariza não se dera o trabalho de explorar o navio logo que subiu a bordo, um domingo de julho às sete da manhã, como faziam quase por instinto os que viajavam pela primeira vez. Só teve noção de sua nova realidade ao entardecer, navegando diante do casario de Calamar, quando foi urinar na popa e viu pela vigia do reservado a gigantesca roda de grandes tábuas girando debaixo de seus pés num estrondo vulcânico de espumas e vapores ardentes.
     Nunca tinha feito uma viagem. Carregava um baú de folha com as roupas do páramo, os romances ilustrados que comprava em folhetins mensais e que ele próprio costurava em capas de papelão, e os livros de versos de amor que recitava de cor e que estavam a ponto de virar pó de tanto ser relidos. Deixara para trás o violino, que se identificava demasiado com sua desgraça, mas a mãe o obrigara a levar o chamado petate, trouxa de dormir muito popular e prática: um travesseiro, um lençol, uma bacia de estanho e um toldo de filo contra os mosquitos, tudo isso enrolado numa esteira amarrada com duas cordas de pita para se pendurar uma rede em caso de urgência. Florentino Ariza não queria levá-lo, pois achava que seria uma inutilidade num camarote que incluía o uso de camas, mas desde a primeira noite teve que agradecer uma vez mais o bom senso da mãe.
      Com efeito, à última hora subiu a bordo um passageiro em traje de etiqueta que havia chegado em navio da Europa aquela madrugada, e estava acompanhado do governador da província em pessoa. Queria continuar a viagem sem perda de tempo com a esposa e a filha, e com o criado de libré e os sete baús com frisos dourados equilibrados a duras penas pelas escadas. O capitão, um gigante de Curaçau, conseguiu tocar o sentido patriótico dos naturais da terra para acomodar os viajores imprevistos. A Florentino Ariza explicou numa salada de castelhano e dialeto de Curaçau que o homem vestido a rigor era o novo ministro plenipotenciário da Inglaterra em viagem para a capital da república, lembrou que aquele reino fornecera recursos decisivos para nossa independência do domínio espanhol, e por conseguinte qualquer sacrifício era pouco para que uma família de tão alta dignidade se sentisse em nossa casa melhor do que na própria. Florentino Ariza, é claro, renunciou ao camarote.
     No princípio não se queixou, pois o caudal do rio era abundante naquela época do ano, e o navio navegou sem tropeços as duas primeiras noites. Depois do jantar, às cinco da tarde, a tripulação distribuía entre os passageiros camas de armar com fundo de lona, e cada um abria a sua onde podia, a arrumava com os panos do seu petate e instalava por cima o mosquiteiro de filo. Os que tinham rede penduravam na no salão, e os que não tinham nada dormiam em cima das mesas do refeitório e se cobriam com as toalhas de mesa que não eram mudadas mais de duas vezes durante a viagem. Florentino Ariza velava a maior parte da noite, acreditando ouvir a voz de Fermina Daza na brisa fresca do rio, apascentando a solidão com a lembrança dela, ouvindo-a cantar na respiração do navio que avançava nas trevas com passos de bicho grande, até que apareciam as primeiras franjas rosadas no horizonte e o novo dia rebentava de repente sobre campinas desertas e pântanos de névoa. A viagem lhe parecia então mais uma prova da sabedoria de sua mãe, e se sentia com ânimo de sobreviver ao esquecimento.
      Ao fim de três dias de boas águas, porém, a navegação ficou mais difícil entre bancos de areia intempestivos e turbulências enganosas. O rio ficou turvo e foi estreitando mais e mais numa selva emaranhada de árvores colossais, onde só se encontrava de vez em quando uma choça de palha junto às pilhas de lenha para a caldeira dos navios. A algaravia dos louros e o escândalo dos micos invisíveis pareciam aumentar o mormaço do meio-dia. Mas de noite era preciso amarrar o navio para dormir, e então se tornava insuportável o simples fato de estar vivo. Ao calor e aos pernilongos se acrescentava o mau cheiro das tiras de carne salgada postas a secar pela balaustrada do navio. A maioria dos passageiros, sobretudo os europeus, abandonavam o podredouro dos camarotes e passavam a noite andando pelos conveses, espantando toda a classe de insetos com a mesma toalha com que secavam o suor incessante, e amanheciam exaustos e alastrados de picadas.
      Além disso, naquele ano estourara mais um episódio da guerra civil intermitente entre liberais e conservadores, e o capitão tomara precauções muito severas para a ordem interna e a segurança dos passageiros. Procurando evitar equívocos e provocações, proibiu a distração favorita das viagens daquele tempo, que era atirar contra os jacarés que apanhavam sol nas praias da beira do rio. Mais adiante, quando alguns passageiros se dividiram em dois bandos inimigos no curso de uma discussão, confiscou as armas de todos com o compromisso de honra de devolvê-las ao término da viagem. Foi inflexível inclusive com o ministro britânico, que no dia seguinte à partida amanheceu vestido de caçador, com uma carabina de precisão e um fuzil de dois canos de matar tigres. As restrições se tornaram ainda mais drásticas para lá do porto de Tenerife, onde cruzaram com um navio que desfraldava a bandeira amarela da peste. O capitão não conseguiu obter nenhuma informação sobre aquele sinal alarmante, porque o outro navio não respondeu aos seus sinais. Mas nesse mesmo dia encontraram outro com carga de gado para a Jamaica, e este informou que o navio com a bandeira da peste levava dois doentes de cólera, e que a epidemia causava estragos no trecho do rio que ainda lhes faltava navegar. Então foi proibido aos passageiros deixar o navio não só nos portos seguintes como ainda nos lugares despovoados onde arribava para carregar lenha. De modo que no restante da viagem até o porto final, que durou outros seis dias, os passageiros contraíram hábitos carcerários. Entre estes, a contemplação perniciosa de um pacote de postais pornográficos holandeses que circulou de mão em mão sem que se soubesse de onde saíra, ainda que nenhum veterano do rio ignorasse que os cartões não passavam de mostruário da legendária coleção do capitão, Mas até essa distração sem futuro acabou por aumentar o tédio.
     Florentino Ariza aguentou os rigores da viagem com a paciência mineral que desolava sua mãe e exasperava seus amigos. Não se relacionou com ninguém. Os dias lhe corriam fáceis enquanto se sentava junto à amurada olhando os jacarés imóveis tomando sol nas praias com as mandíbulas abertas para pegar borboletas, olhando os bandos de garças assustadas que erguiam voo nos charcos, os peixes-boi que amamentavam as crias nas grandes tetas maternais e surpreendiam os passageiros com seus prantos de mulher. Num único dia viu passarem boiando três corpos humanos, inchados e verdes, com vários urubus em cima. Passaram primeiro os corpos de dois homens, um deles sem cabeça, em seguida o de uma menina de poucos anos cujos cabelos de medusa ficaram ondulando na esteira do navio. Nunca soube, porque nunca se sabia, se eram vítimas do cólera ou da guerra, mas as exalações nauseabundas contaminaram em sua memória a lembrança de Fermina Daza.
      Era sempre assim: qualquer acontecimento, bom ou mau, tinha alguma relação com ela. À noite, quando se atracava o navio e a maioria dos passageiros caminhava sem alívio pelos conveses, ele repassava quase de memória os folhetins ilustrados debaixo do lampião de gás do refeitório, que era a única luz acesa até o amanhecer, e os dramas tantas vezes relidos recobravam a magia original quando substituía os protagonistas imaginários por conhecidos seus da vida real, e reservava para ele mesmo e para Fermina Daza os papéis de amores impossíveis. Outras noites lhe escrevia cartas de angústia, cujos fragmentos espargia em seguida nas águas que corriam sem cessar para ela. E assim passava as horas mais duras, encarnado às vezes num príncipe tímido ou num paladino do amor, e por outras vezes na sua própria pele escaldada de amante esquecido, até que se levantavam as primeiras brisas e ele se punha a dormitar sentado nas poltronas da amurada.
      Certa noite em que interrompeu a leitura mais cedo que de costume, dirigia-se distraído para as privadas quando uma porta se abriu ao passar ele pelo refeitório deserto, e uma mão de falcão o agarrou pela manga da camisa e o fechou num camarote. Mal chegou a sentir o corpo sem idade de uma mulher nua nas trevas, empapada em suor quente e com a respiração ofegante, que o empurrou de barriga para cima no beliche, lhe abriu a fivela do cinturão, soltou os botões e se desmembrou toda, acavalada em cima dele, e o despojou sem glória da virgindade. Ambos rolaram agonizantes no vazio de um abismo sem fundo que cheirava como um alagado de camarões. Ela se deixou ficar em seguida jazendo sobre ele, resfolegando sem ar, e deixou de existir na escuridão.

 — Agora, vá embora e esqueça — disse. — Isto não sucedeu nunca.

     O ataque tinha sido tão rápido e triunfante que não se podia explicá-lo como uma loucura súbita do tédio, e sim como fruto de um plano elaborado com todo o vagar e até nos seus pormenores minuciosos. Esta certeza esmagadora aumentou a ansiedade de Florentino Ariza, que no auge do gozo tinha tido uma revelação na qual não podia acreditar, que se negava mesmo a admitir, e era que o amor ilusório de Fermina Daza podia ser substituído por uma paixão terrena. Por isso se empenhou em descobrir a identidade da violadora mestra em cujo instinto de pantera encontraria talvez o remédio para sua desventura. Mas não conseguiu. Ao contrário, quanto mais aprofundava a pesquisa mais longe se sentia da verdade.
      O ataque tinha sido no último camarote, mas este se comunicava com o penúltimo por uma porta intermediaria, de maneira que os dois se convertiam num dormitório familiar com quatro beliches. Ali viajavam duas mulheres jovens, outra bastante mais velha mas muito atraente à vista, e uma criança de poucos meses. Haviam embarcado em Barranco de Loba, o porto onde se recolhia a carga e os passageiros da cidade de Mompox desde que esta ficou à margem dos itinerários de vapores devido às veleidades do rio, e Florentino Ariza tinha reparado nelas porque traziam o menino adormecido dentro de uma grande gaiola de pássaros.
      Viajavam vestidas como nos transatlânticos da moda, com armação debaixo das saias de seda, golas de renda e chapéus de abas grandes enfeitadas com flores de crinolina, e as duas mais moças mudavam o traje completo várias vezes por dia, de modo que pareciam carregar em si mesmas sua própria atmosfera primaveril, enquanto os demais passageiros sufocavam de calor. As três eram destras no manejo das sombrinhas e dos leques de plumas, mas com os propósitos indecifráveis das moças de Mompox da época. Florentino Ariza não conseguiu sequer precisar a relação entre elas, embora fossem sem dúvida da mesma família. A princípio achou que a mais velha podia ser mãe das outras, mas logo percebeu que não tinha idade para tanto, e além disso guardava um meio luto que as outras não compartilhavam. Não concebia que uma delas tivesse feito o que fez enquanto as outras dormiam nos beliches contíguos, e a única suposição razoável era de que aproveitara um momento casual, ou talvez combinado, em que ficara sozinha no camarote. Comprovou que às vezes saíam duas a tomar a fresca até muito tarde enquanto a terceira ficava cuidando da criança, mas certa noite de mais calor saíram as três juntas com o menino adormecido na gaiola de vime coberta com um toldo de gaze.

continua na página 109...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Dormiu sobressaltada
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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