O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
continuando... Por isso voltou às cinco da tarde, de acordo com a indicação da criada, e Lorenzo
Daza em pessoa lhe abriu o portão e o conduziu até o quarto da filha. Ficou sentado
na penumbra dum canto do quarto, com os braços cruzados e fazendo esforços vãos
para dominar a respiração penosa, enquanto durou o exame. Não era fácil saber
quem estava mais constrangido, se o médico com seu tato pudico ou a enferma com
seu recato de virgem dentro do camisolão de seda, mas nenhum olhou o outro nos
olhos, enquanto ele fazia perguntas com voz impessoal e ela respondia com voz
trêmula, ambos pendentes do homem sentado na penumbra. Por fim o doutor
Juvenal Urbino pediu à doente que se sentasse, e lhe abriu a camisola até a cintura
com mil cuidados: o peito intacto e altivo, de bicos infantis, resplandeceu um
instante feito uma labareda nas sombras da alcova, antes que ela se apressasse a
ocultá-lo com os braços cruzados. Imperturbável, o médico lhe afastou os braços
sem olhá-la, e fez a auscultação direta com a orelha contra a pele, primeiro o peito e
depois as costas.
O doutor Juvenal Urbino costumava contar que não experimentou nenhuma
emoção quando conheceu a mulher com quem havia de viver até o dia da morte.
Lembrava a camisola azul clara com bainha de renda, os olhos febris, o cabelo
comprido, solto sobre os ombros, mas estava tão obnubilado pela irrupção da peste
no quarteirão colonial que não reparou em nada do muito que tinha ela de
adolescente em flor, concentrado no mais íntimo que pudesse ter de empestada. Ela
foi mais explícita: o jovem médico de quem tanto ouvira falar a propósito do cólera
lhe pareceu um pedante incapaz de amar qualquer pessoa além dele mesmo. O
diagnóstico foi uma infecção intestinal de origem alimentar que cedeu com um
tratamento caseiro de três dias. Aliviado com a constatação de que a filha não
contraíra o cólera, Lorenzo Daza acompanhou o doutor Juvenal Urbino até o estribo
do carro, pagou-lhe o peso ouro da visita que lhe pareceu excessivo mesmo para um
médico de gente rica, mas dele se despediu com demonstrações exageradas de
gratidão. Estava deslumbrado com o esplendor dos seus nomes de família, e não só
não o disfarçava como teria feito qualquer coisa que fosse para vê-lo outra vez, e em
circunstâncias menos formais.
O caso devia dar-se por encerrado. Contudo, na terça-feira da semana seguinte,
sem ser chamado e sem se anunciar de qualquer forma, o doutor Juvenal Urbino lá
voltou à hora inoportuna de três da tarde. Fermina Daza estava no quarto de
costura, tendo uma lição de pintura a óleo junto com duas amigas, quando ele
apareceu à janela de sobrecasaca branca, imaculada, e o chapéu também branco, de
copa alta, e lhe fez sinal para que se aproximasse. Ela pôs o bastidor na cadeira e se
dirigiu à janela caminhando na ponta dos pés com a cauda do vestido levantada até
os tornozelos para que não arrastasse. Usava um diadema com uma pequena joia
pendente da testa, de luminosa pedra da mesma cor fugidia dos seus olhos, e ela
toda exalava uma aura de frescor. Chamou a atenção do médico que ela se vestisse
para pintar em casa como se fosse a uma festa. Tomou-lhe o pulso do lado de fora
da janela, fez com que mostrasse a língua, examinou-lhe a garganta com uma
espátula de alumínio, olhou por dentro a parte inferior da pálpebra, fazendo de cada
vez um gesto de aprovação. Estava menos constrangido do que na visita anterior,
mas ela mais, por não entender a razão daquele exame imprevisto, quando ele
próprio tinha dito que não voltaria a menos que o chamassem devido a alguma
novidade. E havia outra coisa: não queria tornar a vê-lo nunca mais. Quando
terminou o exame, o médico guardou a espátula na maleta atulhada de
instrumentos e vidros de remédio, e fechou-a com um golpe seco.
— Está como uma rosa recém-nascida — disse ele.
— Obrigada.
— Agradeça a Deus — disse ele, e citou São Tomás mal: — Lembre que tudo que
é bom, venha de onde vier, provém do Espírito Santo. Gosta de música?
Fez a pergunta com um sorriso encantador, de um modo natural, mas ela não
retribuiu.
— Qual o motivo da pergunta? — perguntou por sua vez.
— A música é importante para a saúde — disse ele.
Acreditava mesmo, e ela ia ver muito em breve e pelo resto da vida que o tema
da música era quase uma fórmula mágica que ele usava para propor uma amizade,
mas naquele momento ela entendeu que era uma brincadeira. Além disso, as duas
amigas que tinham fingido pintar enquanto eles conversavam na janela deram
umas risadinhas abafadas e taparam a cara com os bastidores, o que acabou de
desorientar Fermina Daza. Cega de fúria, bateu a janela com um golpe seco. O
médico, perplexo diante das cortininhas de renda, virou-se e procurou o caminho do
portão, mas se enganou de rumo, e na sua atrapalhação deu com a gaiola dos corvos
perfumados. Estes lançaram uns pios vis, voejaram assustados, e a roupa do médico
se impregnou de um cheiro de mulher. O trovão da voz de Lorenzo Daza pregou-o
no lugar em que estava:
— Doutor: espere aí.
Avistara-o do andar de cima e descia as escadas abotoando a camisa, balofo e
rubicundo, as suíças ainda revoltas devido a um sonho mau da sesta. O médico
tentou dominar a situação.
— Acabo de dizer à sua filha que está feito uma rosa.
— E tem razão — disse Lorenzo Daza — mas com espinhos demais.
Passou junto do doutor Urbino sem cumprimentá-lo. Empurrou as duas folhas
da janela do quarto de costura e gritou bronco para a filha:
— Venha pedir desculpas ao doutor.
O médico quis intervir para impedi-lo, mas Lorenzo Daza não lhe deu atenção.
Insistiu: "Depressa." Ela olhou as amigas com uma súplica recôndita de
compreensão, e respondeu ao pai que não tinha de que se desculpar, pois só tinha
fechado a janela para impedir que continuasse entrando o sol. O doutor Urbino
procurou justificar essas razões, mas Lorenzo Daza persistiu na ordem. Então
Fermina Daza voltou à janela, pálida de raiva, e adiantando o pé direito enquanto
levantava a cauda do vestido com a ponta dos dedos, fez ao médico uma reverência
teatral.
— Apresento-lhe minhas mais humildes desculpas, cavalheiro — disse.
O doutor Juvenal Urbino a imitou de bom humor, fazendo com o chapéu de copa
alta uma mesura de mosqueteiro, mas não obteve o sorriso de piedade que
esperava. Lorenzo Daza o convidou então a tomar no escritório um café de
desagravo, e ele aceitou grato, para que não houvesse nenhuma dúvida de que não
lhe ficava na alma qualquer resquício de ressentimento.
A verdade era que o doutor Juvenal Urbino não tomava café, a não ser uma
xícara em jejum. Também não tomava álcool, salvo um copo de vinho com a comida
em ocasiões solenes, mas não só tomou o café que lhe ofereceu Lorenzo Daza como
aceitou além disso um cálice de aguardente de anis. Depois aceitou outro café e
outro cálice, e depois outro e outro, apesar de ter ainda algumas visitas a fazer. A
princípio escutou com atenção as desculpas que Lorenzo Daza continuava a dar em
nome da filha, que definiu como menina inteligente e séria, digna de um príncipe
daqui ou de qualquer parte, e cujo único defeito, segundo disse, era seu caráter de
mula. Mas depois do segundo cálice julgou ouvir a voz de Fermina Daza no fundo
do pátio, e sua imaginação foi atrás dela, perseguiu-a pela noite recente da casa
enquanto acendia as luzes do corredor, fumigava os quartos de dormir com a bomba
de inseticida, destapava no fogão a panela da sopa que ia tomar essa noite com o
pai, ele e ela sós à mesa, sem erguer a vista, sem sorver a sopa para não quebrar o
encanto do rancor, até que ele acabasse por se render e pedir perdão pelo rigor que
tivera à tarde.
O doutor Urbino conhecia bastante as mulheres para saber que Fermina Daza
não passaria pelo escritório enquanto ele não fosse embora, mas deixava-se ficar
porque sentia que o orgulho ferido não lhe daria paz depois das afrontas dessa
tarde. Lorenzo Daza, já quase bêbado, não parecia notar sua falta de atenção, pois se
bastava a si mesmo com sua loquacidade indomável. Falava à rédea solta,
mastigando a ponta do charuto apagado, tossindo aos gritos, escarrando,
acomodando-se a duras penas na poltrona giratória cujas molas soltavam gemidos
de animal no cio. Tinha bebido três cálices para cada um do convidado, e só fez uma
pausa ao perceber que já não se viam um ao outro e se levantou para acender a
lâmpada. O doutor Juvenal Urbino o olhou de frente com a nova luz, viu que tinha
um olho torto feito olho de peixe e que suas palavras não correspondiam ao
movimento dos lábios, e achou que eram alucinações suas por abusar do álcool.
Então se levantou com a sensação fascinante de que estava dentro de um corpo que
não era o seu e sim o de alguém que continuava sentado no assento onde ele estava,
e teve que fazer um grande esforço para não perder a razão.
Passava das sete quando saiu do escritório precedido de Lorenzo Daza. Havia lua
cheia. O pátio transfigurado pelo anis flutuava no fundo de um aquário, e as gaiolas
cobertas com panos pareciam fantasmas adormecidos debaixo do odor quente de
flores desabrochadas. A janela da sala de costura estava aberta, e havia uma candeia
acesa na mesa de trabalho, e os quadros por terminar estavam nos cavaletes como
numa exposição. "Onde está você que não está", disse o doutor Urbino ao passar,
mas Fermina Daza não o ouviu, não podia ouvi-lo, porque chorava de raiva no
quarto, largada de borco na cama e esperando o pai para lhe cobrar a humilhação da
tarde. O médico não renunciava à ilusão de se despedir dela, mas Lorenzo Daza não
mencionou tal coisa. Relembrou com saudade a marcha inocente do seu pulso, sua
língua de gata, suas amígdalas suaves, mas desanimou-o a ideia de que ela não
queria vê-lo nunca mais nem permitiria que ele o tentasse. Quando Lorenzo Daza
entrou no saguão, os corvos acordados debaixo dos lençóis emitiram pios fúnebres.
"Arrancarão teus olhos", disse o médico em voz alta, pensando nela, e Lorenzo Daza
se voltou para perguntar o que é que ele tinha dito.
— Não fui eu — ele disse. — Foi o anis.
Lorenzo Daza acompanhou-o até o carro se esforçando para fazê-lo receber o
peso ouro da segunda visita, mas ele não aceitou. Deu instruções corretas ao
cocheiro para que o levasse até a casa de dois dos doentes que lhe faltava ver, e
subiu ao carro sem ajuda. Mas começou a se sentir mal com os solavancos nas ruas
empedradas, por isso mandou o cocheiro mudar de rumo. Olhou-se por um instante
no espelho do carro e viu que também sua imagem continuava pensando em
Fermina Daza. Deu de ombros. Afinal soltou um arroto, inclinou a cabeça contra o
peito e adormeceu, e no sono começou a ouvir os sinos do luto. Ouviu primeiro os
da catedral, e depois os de todas as igrejas, uma após outra, até o som de metal
rachado de São Julião o Hospitaleiro.
— Merda — murmurou dormindo — morreram os mortos.
Sua mãe e suas irmãs estavam jantando café com leite e bolinhos na mesa de
festa da sala de jantar principal, quando o viram assomar à porta com o rosto
desfeito e todo ele desmoralizado pelo perfume de putas dos corvos. O sino maior
da catedral contígua ressoava na imensa cisterna da casa. A mãe lhe perguntou
alarmada onde se havia metido, pois o haviam procurado em toda parte para que
atendesse ao general Ignacio Maria, último neto do Marquês de Jaraíz de Ia Vera,
derrubado à tarde por uma congestão cerebral: era por ele que os sinos dobravam. O
doutor Juvenal Urbino escutou a mãe sem ouvi-la, apoiado no umbral da porta, em
seguida deu meia-volta, procurando chegar ao seu quarto, mas caiu de bruços numa
explosão de vômitos de anis estrelado.
— Maria Santíssima — gritou sua mãe. — Coisa muito estranha deve ter
acontecido para que você se apresente em casa nesse estado.
continua na página 093...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Por isso voltou
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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