O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
O DOUTOR JUVENAL URBINO tinha sido aos vinte e oito anos o mais cobiçado
dos solteiros. Voltava de uma longa estada em Paris, onde fez estudos superiores de
medicina e cirurgia, e logo que pisou terra firme deu mostras definitivas de que não
perdera um minuto de seu tempo. Voltou muito mais atilado e senhor de sua
índole, e se nenhum dos seus companheiros de geração parecia tão severo e tão
sábio quanto ele em sua ciência, também nenhum havia, por outro lado, que
dançasse melhor a música da moda ou improvisasse melhor ao piano. Seduzidas
por suas graças pessoais e pela certeza de sua fortuna familiar, as moças do seu
meio faziam rifas secretas no jogo de ver quem o prenderia, e ele também fazia suas
apostas em relação às moças, mas conseguiu manter-se em estado de graça, intacto
e tentador, até que sucumbiu sem resistência aos encantos plebeus de Fermina
Daza.
Gostava de dizer que aquele amor tinha sido fruto de um equívoco clínico. Ele
mesmo custava a crer que tivesse acontecido, menos ainda naquele momento de
sua vida, quando todas as suas reservas passionais se concentravam na sorte de sua
cidade, da qual dissera com demasiada frequência e sem pensar duas vezes que não
havia outra igual no mundo. Em Paris, passeando de braço dado com uma noiva
casual num outono tardio, quase não conseguia conceber felicidade mais pura que a
daquelas tardes douradas, com cheiro rústico das castanhas nos braseiros, os
acordeões sentimentais, os namorados insaciáveis que não acabavam de se beijar
nunca na calçada dos cafés, mas mesmo assim dizia a si mesmo com a mão no
coração que não se dispunha a trocar por tudo aquilo um único instante do seu
Caribe em abril. Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração
elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício
conseguimos suportar o passado. Mas quando voltou a ver do convés do navio o
promontório branco do bairro colonial, os urubus imóveis nos telhados, a roupa dos
pobres estendida a secar nas sacadas, compreendeu até que ponto tinha sido uma
vítima fácil das burlas caritativas da saudade.
O navio abriu passagem na baía através de uma colcha flutuante de animais
afogados, e em sua maioria os passageiros se abrigaram nos camarotes fugindo à
pestilência. O jovem médico desceu a ponte do navio vestido de alpaca perfeita,
guarda-pó sobre o terno, com uma barba de Pasteur juvenil e o cabelo repartido em
risca nítida e pálida, e com bastante domínio de si para dissimular o nó na garganta
que não era de tristeza e sim de terror. No molhe quase deserto, guardado por
soldados descalços e sem farda, esperavam-no as irmãs e a mãe com os amigos mais
queridos. Achou todos macilentos e sem futuro, apesar dos ares mundanos, e
falavam da crise e da guerra civil como algo remoto e alheio, mas todos tinham um
tremor evasivo na voz e uma incerteza nas pupilas que desmentiam as palavras.
Quem mais o comoveu foi a mãe, uma mulher ainda moça que se havia imposto na
vida com sua elegância e seu ímpeto social, e que agora murchava a fogo lento na
aura de cânfora dos seus crepes de viúva. Ela sem dúvida se reconheceu no
constrangimento do filho, tomando a dianteira de lhe perguntar em defesa própria
por que vinha ele com essa pele transparente como parafina.
— É a vida, mãe — disse ele. — Fica-se verde em Paris.
Pouco depois, derretendo-se de calor junto a ela na carruagem fechada, não
aguentou mais a inclemência da realidade que se metia aos borbotões pelo postigo.
O mar parecia de cinza, os antigos palácios de marqueses estavam a ponto de
sucumbir à proliferação dos mendigos, e era impossível encontrar a fragrância
ardente dos jasmins por trás das emanações mortais dos esgotos abertos. Tudo lhe
pareceu mais mesquinho do que quando partira, mais indigente e lúgubre, e havia
tantas ratazanas famintas na lixeira das ruas que os cavalos do carro tropeçavam
assustados. Do longo caminho do porto até sua casa, no coração do bairro dos Vice
Reis, não viu nada que lhe parecesse digno de suas saudades. Derrotado, virou a
cabeça para que a mãe não o visse, e se pôs a chorar em silêncio.
O antigo palácio do Marquês de Casalduero, residência histórica dos Urbino de
Ia Calle, não era o que se mantinha mais altivo no meio do naufrágio. O doutor
Juvenal Urbino fez essa descoberta com o coração em pedaços logo que entrou no
saguão tenebroso e viu o repuxo poeirento do jardim interior, e os canteiros sem
flores por onde andavam lagartos, e reparou que faltavam muitas lajes de mármore,
e que outras estavam partidas, na vasta escada de balaústres de cobre que levava
aos aposentos principais. Seu pai, um médico mais abnegado do que eminente,
tinha morrido na epidemia de cólera asiático que assolou a população seis anos
antes, e com ele morrera o espírito da casa. Dona Blanca, a mãe, sufocada por um
luto previsto para ser eterno, substituíra por novenas vespertinas os célebres saraus
líricos e os concertos de câmara do marido morto. As duas irmãs, contra suas graças
naturais e sua vocação festiva, eram carne de convento.
O doutor Juvenal Urbino não dormiu nem um instante da noite da chegada,
assustado pela escuridão e o silêncio, e rezou três terços ao Espírito Santo e quantas
orações ainda sabia para conjurar calamidades e naufrágios c toda classe de
ameaças da noite, enquanto uma saracura que se enfiou pela porta mal fechada
cantava a cada hora, na hora em ponto, dentro do quarto. Foi atormentado pelos
gritos alucinados das loucas no vizinho manicômio da Divina Pastora, a gota
inclemente da talha na bacia com uma ressonância que enchia o âmbito da casa, os
passos da saracura perdida no quarto, seu medo congênito do escuro, a presença
invisível do pai morto na vasta mansão adormecida. Quando a saracura cantou as
cinco, junto com os gaios da vizinhança, o doutor Juvenal Urbino se encomendou
de corpo e alma à Divina Providência, porque não se sentia com ânimo para viver
um dia mais em sua pátria de escombros. Contudo, o afeto dos seus, os domingos
campestres, os agrados cobiçosos das solteiras de sua classe acabaram por mitigar
as amarguras de primeira impressão. Foi pouco a pouco se habituando aos
bochornos de outubro, aos odores excessivos, aos juízos prematuros dos amigos, ao
amanhã veremos, doutor, não se preocupe, e terminou por se render aos sortilégios
do hábito. Não tardou a conceber uma explicação fácil para sua entrega. Aquele era
seu mundo, disse a si mesmo, o mundo triste e opressivo que Deus lhe destinara, e
a ele se devia.
A primeira coisa que fez foi tomar posse do consultório do pai. Conservou no
lugar os móveis ingleses, duros e sérios, cujas madeiras suspiravam com os gelos do
amanhecer, mas despachou para o sótão os tratados da ciência vice-reinal e da
medicina romântica, e colocou nas estantes cobertas de vidro os da nova escola da
França. Tirou da parede os cromos desbotados, com exceção daquele em que se vê o
médico disputando à morte uma doente nua, e o juramento hipocrático impresso
em letras góticas, e pendurou em seus lugares, ao lado do diploma único do pai, os
muitos e muitos variados que obtivera com qualificações ótimas em diferentes
escolas da Europa.
Tratou de impor critérios atualizados no Hospital da Misericórdia, mas não
achou a tarefa tão fácil como imaginara em seus entusiasmos juvenis, pois a
bolorenta casa de saúde se agarrava às superstições atávicas, como a de colocar os
pés das camas em potes com água para impedir que as doenças subissem, ou a de
exigir traje de etiqueta e luvas de camurça na sala de cirurgia, visto que se dava por
axiomático que a elegância era condição essencial da assepsia. Não podiam suportar
que o jovem recém-chegado provasse a urina do doente para descobrir a presença
de açúcar, que citasse Charcot e Trousseau como se fossem seus companheiros de
quarto, que fazia na aula severas advertências sobre os riscos mortais das vacinas e
por outro lado nutria uma fé suspeita no novo invento dos supositórios. Esbarrava
em tudo: seu espírito renovador, seu civismo maníaco, seu humor sutil numa terra
de famosos chalaceiros, todas as suas virtudes mais apreciáveis suscitavam o receio
dos colegas mais velhos e as troças que pelas costas lhe faziam os jovens.
Sua obsessão era o perigoso estado sanitário da cidade. Fez apelos às instâncias
superiores para que desativassem as cloacas espanholas, que eram um imenso
viveiro de ratos, e construíssem em seu lugar esgotos fechados cujos despejos não
desembocassem na enseada do mercado, como sempre ocorrera, e sim em algum
desaguadouro distante. As casas coloniais bem equipadas tinham latrinas com
fossas sépticas, mas dois terços da população amontoada em barracas à margem dos
charcos faziam suas necessidades ao ar livre. As fezes secavam ao sol, viravam
poeira, e eram respiradas por iodos com regozijos natalinos nas frescas e venturosas
brisas de dezembro. O doutor Juvenal Urbino criou na Municipalidade um curso
obrigatório para ensinar os pobres a construírem suas próprias latrinas. Lutou em
vão para que o lixo não fosse atirado aos manguezais, convertidos há séculos em
tanques de putrefação, e para que fosse recolhido pelo menos duas vezes por dia e
incinerado em algum lugar despovoado.
Tinha consciência da ameaça mortal que era a água de beber. A mera ideia de
construir um aqueduto parecia fantástica, pois os que teriam podido impulsioná-la
dispunham de cisternas subterrâneas onde se armazenavam debaixo de uma
espessa nata de limo as águas chovidas durante anos. Entre os móveis mais
apreciados da época estavam as talhas de madeira lavrada cujos filtros de pedra
gotejavam dia e noite para dentro de bacias. Para impedir que alguém bebesse do
próprio jarro de alumínio com que se apanhava a água, este tinha as bordas
denteadas feito a coroa de um rei de brincadeira. A água era vítrea e fresca na
penumbra da argila cozida, e deixava na boca um sabor de floresta. Mas o doutor
Juvenal Urbino não caía nesses embustes de purificação, pois sabia que apesar de
tantas precauções o fundo das talhas era um refúgio de vermes. Havia passado as
vagarosas horas da infância a contemplá-los com um assombro quase místico,
convencido como tanta gente naquele tempo de que esses vermes eram alminhas,
criaturas sobrenaturais que cortejavam donzelas nos sedimentos das águas
pasmadas, e eram capazes de furiosas vinganças de amor. Tinha visto quando
menino os escombros da casa de Lázara Conde, uma professora que se atreveu a
fazer pouco dessas alminhas, e tinha visto a esteira de vidro partido na rua e o
montão de pedras que atiraram durante três dias e três noites contra suas janelas.
De maneira que passou muito tempo até aprender que os vermes eram na realidade
as larvas dos pernilongos, mas aprendeu para nunca mais esquecer, porque desde
então compreendeu que não só eles como muitas outras alminhas danadas podiam
passar intactos através dos nossos ingênuos filtros de pedra.
À água das cisternas se atribuiu durante muito tempo, e com muita honra, a
hérnia rio escroto que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor
como inclusive com certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola
primária não conseguia reprimir um arrepio de horror ao ver os potrosos sentados à
porta de suas casas nas tardes de calor, abanando o testículo enorme como se
tivessem uma criança adormecida entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um
pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e se retorcia com uma dor
insuportável se queimavam por perto uma pena de urubu, mas ninguém se
queixava de tais percalços porque uma hérnia grande e bem tratada se ostentava
antes de mais nada como um apanágio de homem. Quando o doutor Juvenal Urbino
voltou da Europa já conhecia muito bem a falácia científica de tais crendices, mas
estavam tão arraigadas na superstição local que muitos se opunham ao
enriquecimento mineral da água das cisternas por temerem tirar dela a virtude de
causar uma hérnia nobilitante.
Tanto quanto com as impurezas da água, alarmava-se o doutor Juvenal Urbino
com o estado higiênico do mercado público, um vasto descampado fronteiro à baía
das Animas, onde atracavam os veleiros das Antilhas. Um viajante ilustre da época o
descreveu como um dos mais variados do mundo. Era rico, sem dúvida, profuso e
ruidoso, mas era também talvez o mais assustador. Assentava-se em sua própria
cloaca, à mercê das veleidades da maré, e era ali que os arrotos da baía devolviam à
terra as imundícies dos esgotos. Também se atiravam ali os restos do matadouro
contíguo, cabeças decepadas, vísceras podres, e estéreo de animais, que ficavam
boiando ao sol e ao sereno num pântano de sangue. Os urubus os disputavam com
os ratos e os cachorros numa contenda perpétua, entre os veados e os capões
saborosos que vinham de Sotavento e se dependuravam nos barrotes dos barracões,
e os legumes primaveris de Arjona expostos em cima de esteiras, no chão.
O doutor Juvenal Urbino queria sanear o lugar, queria que pusessem o
matadouro em outra parte, que construíssem um mercado coberto com cúpulas de
vidraças como o que conhecera nas antigas feiras de Barcelona, onde as provisões
eram tão vistosas e limpas que dava para comê-las. Mas mesmo os mais
compreensivos dos seus amigos notáveis se compadeciam de sua paixão ilusória.
Eram assim: passavam a vida proclamando o orgulho de sua origem, os méritos
históricos da cidade, o valor de suas relíquias, seu heroísmo e sua beleza, mas eram
cegos ao caruncho dos anos. Enquanto que o doutor Juvenal Urbino lhe tinha amor
bastante para vê-la com os olhos da verdade.
— Muito nobre será esta cidade — dizia — se há quatrocentos anos procuramos
acabar com ela e ainda não conseguimos.
continua na página 085...
________________
Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: O Doutor Juvenal Urbino
_______________
O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Nenhum comentário:
Postar um comentário