terça-feira, 24 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: O Doutor Juvenal Urbino

O Amor nos Tempos de Cólera


Gabriel García Márquez




      O DOUTOR JUVENAL URBINO tinha sido aos vinte e oito anos o mais cobiçado dos solteiros. Voltava de uma longa estada em Paris, onde fez estudos superiores de medicina e cirurgia, e logo que pisou terra firme deu mostras definitivas de que não perdera um minuto de seu tempo. Voltou muito mais atilado e senhor de sua índole, e se nenhum dos seus companheiros de geração parecia tão severo e tão sábio quanto ele em sua ciência, também nenhum havia, por outro lado, que dançasse melhor a música da moda ou improvisasse melhor ao piano. Seduzidas por suas graças pessoais e pela certeza de sua fortuna familiar, as moças do seu meio faziam rifas secretas no jogo de ver quem o prenderia, e ele também fazia suas apostas em relação às moças, mas conseguiu manter-se em estado de graça, intacto e tentador, até que sucumbiu sem resistência aos encantos plebeus de Fermina Daza.
     Gostava de dizer que aquele amor tinha sido fruto de um equívoco clínico. Ele mesmo custava a crer que tivesse acontecido, menos ainda naquele momento de sua vida, quando todas as suas reservas passionais se concentravam na sorte de sua cidade, da qual dissera com demasiada frequência e sem pensar duas vezes que não havia outra igual no mundo. Em Paris, passeando de braço dado com uma noiva casual num outono tardio, quase não conseguia conceber felicidade mais pura que a daquelas tardes douradas, com cheiro rústico das castanhas nos braseiros, os acordeões sentimentais, os namorados insaciáveis que não acabavam de se beijar nunca na calçada dos cafés, mas mesmo assim dizia a si mesmo com a mão no coração que não se dispunha a trocar por tudo aquilo um único instante do seu Caribe em abril. Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado. Mas quando voltou a ver do convés do navio o promontório branco do bairro colonial, os urubus imóveis nos telhados, a roupa dos pobres estendida a secar nas sacadas, compreendeu até que ponto tinha sido uma vítima fácil das burlas caritativas da saudade.
     O navio abriu passagem na baía através de uma colcha flutuante de animais afogados, e em sua maioria os passageiros se abrigaram nos camarotes fugindo à pestilência. O jovem médico desceu a ponte do navio vestido de alpaca perfeita, guarda-pó sobre o terno, com uma barba de Pasteur juvenil e o cabelo repartido em risca nítida e pálida, e com bastante domínio de si para dissimular o nó na garganta que não era de tristeza e sim de terror. No molhe quase deserto, guardado por soldados descalços e sem farda, esperavam-no as irmãs e a mãe com os amigos mais queridos. Achou todos macilentos e sem futuro, apesar dos ares mundanos, e falavam da crise e da guerra civil como algo remoto e alheio, mas todos tinham um tremor evasivo na voz e uma incerteza nas pupilas que desmentiam as palavras. Quem mais o comoveu foi a mãe, uma mulher ainda moça que se havia imposto na vida com sua elegância e seu ímpeto social, e que agora murchava a fogo lento na aura de cânfora dos seus crepes de viúva. Ela sem dúvida se reconheceu no constrangimento do filho, tomando a dianteira de lhe perguntar em defesa própria por que vinha ele com essa pele transparente como parafina.

— É a vida, mãe — disse ele. — Fica-se verde em Paris.

     Pouco depois, derretendo-se de calor junto a ela na carruagem fechada, não aguentou mais a inclemência da realidade que se metia aos borbotões pelo postigo. O mar parecia de cinza, os antigos palácios de marqueses estavam a ponto de sucumbir à proliferação dos mendigos, e era impossível encontrar a fragrância ardente dos jasmins por trás das emanações mortais dos esgotos abertos. Tudo lhe pareceu mais mesquinho do que quando partira, mais indigente e lúgubre, e havia tantas ratazanas famintas na lixeira das ruas que os cavalos do carro tropeçavam assustados. Do longo caminho do porto até sua casa, no coração do bairro dos Vice Reis, não viu nada que lhe parecesse digno de suas saudades. Derrotado, virou a cabeça para que a mãe não o visse, e se pôs a chorar em silêncio.
     O antigo palácio do Marquês de Casalduero, residência histórica dos Urbino de Ia Calle, não era o que se mantinha mais altivo no meio do naufrágio. O doutor Juvenal Urbino fez essa descoberta com o coração em pedaços logo que entrou no saguão tenebroso e viu o repuxo poeirento do jardim interior, e os canteiros sem flores por onde andavam lagartos, e reparou que faltavam muitas lajes de mármore, e que outras estavam partidas, na vasta escada de balaústres de cobre que levava aos aposentos principais. Seu pai, um médico mais abnegado do que eminente, tinha morrido na epidemia de cólera asiático que assolou a população seis anos antes, e com ele morrera o espírito da casa. Dona Blanca, a mãe, sufocada por um luto previsto para ser eterno, substituíra por novenas vespertinas os célebres saraus líricos e os concertos de câmara do marido morto. As duas irmãs, contra suas graças naturais e sua vocação festiva, eram carne de convento.
     O doutor Juvenal Urbino não dormiu nem um instante da noite da chegada, assustado pela escuridão e o silêncio, e rezou três terços ao Espírito Santo e quantas orações ainda sabia para conjurar calamidades e naufrágios c toda classe de ameaças da noite, enquanto uma saracura que se enfiou pela porta mal fechada cantava a cada hora, na hora em ponto, dentro do quarto. Foi atormentado pelos gritos alucinados das loucas no vizinho manicômio da Divina Pastora, a gota inclemente da talha na bacia com uma ressonância que enchia o âmbito da casa, os passos da saracura perdida no quarto, seu medo congênito do escuro, a presença invisível do pai morto na vasta mansão adormecida. Quando a saracura cantou as cinco, junto com os gaios da vizinhança, o doutor Juvenal Urbino se encomendou de corpo e alma à Divina Providência, porque não se sentia com ânimo para viver um dia mais em sua pátria de escombros. Contudo, o afeto dos seus, os domingos campestres, os agrados cobiçosos das solteiras de sua classe acabaram por mitigar as amarguras de primeira impressão. Foi pouco a pouco se habituando aos bochornos de outubro, aos odores excessivos, aos juízos prematuros dos amigos, ao amanhã veremos, doutor, não se preocupe, e terminou por se render aos sortilégios do hábito. Não tardou a conceber uma explicação fácil para sua entrega. Aquele era seu mundo, disse a si mesmo, o mundo triste e opressivo que Deus lhe destinara, e a ele se devia.
      A primeira coisa que fez foi tomar posse do consultório do pai. Conservou no lugar os móveis ingleses, duros e sérios, cujas madeiras suspiravam com os gelos do amanhecer, mas despachou para o sótão os tratados da ciência vice-reinal e da medicina romântica, e colocou nas estantes cobertas de vidro os da nova escola da França. Tirou da parede os cromos desbotados, com exceção daquele em que se vê o médico disputando à morte uma doente nua, e o juramento hipocrático impresso em letras góticas, e pendurou em seus lugares, ao lado do diploma único do pai, os muitos e muitos variados que obtivera com qualificações ótimas em diferentes escolas da Europa.
      Tratou de impor critérios atualizados no Hospital da Misericórdia, mas não achou a tarefa tão fácil como imaginara em seus entusiasmos juvenis, pois a bolorenta casa de saúde se agarrava às superstições atávicas, como a de colocar os pés das camas em potes com água para impedir que as doenças subissem, ou a de exigir traje de etiqueta e luvas de camurça na sala de cirurgia, visto que se dava por axiomático que a elegância era condição essencial da assepsia. Não podiam suportar que o jovem recém-chegado provasse a urina do doente para descobrir a presença de açúcar, que citasse Charcot e Trousseau como se fossem seus companheiros de quarto, que fazia na aula severas advertências sobre os riscos mortais das vacinas e por outro lado nutria uma fé suspeita no novo invento dos supositórios. Esbarrava em tudo: seu espírito renovador, seu civismo maníaco, seu humor sutil numa terra de famosos chalaceiros, todas as suas virtudes mais apreciáveis suscitavam o receio dos colegas mais velhos e as troças que pelas costas lhe faziam os jovens.
     Sua obsessão era o perigoso estado sanitário da cidade. Fez apelos às instâncias superiores para que desativassem as cloacas espanholas, que eram um imenso viveiro de ratos, e construíssem em seu lugar esgotos fechados cujos despejos não desembocassem na enseada do mercado, como sempre ocorrera, e sim em algum desaguadouro distante. As casas coloniais bem equipadas tinham latrinas com fossas sépticas, mas dois terços da população amontoada em barracas à margem dos charcos faziam suas necessidades ao ar livre. As fezes secavam ao sol, viravam poeira, e eram respiradas por iodos com regozijos natalinos nas frescas e venturosas brisas de dezembro. O doutor Juvenal Urbino criou na Municipalidade um curso obrigatório para ensinar os pobres a construírem suas próprias latrinas. Lutou em vão para que o lixo não fosse atirado aos manguezais, convertidos há séculos em tanques de putrefação, e para que fosse recolhido pelo menos duas vezes por dia e incinerado em algum lugar despovoado.
      Tinha consciência da ameaça mortal que era a água de beber. A mera ideia de construir um aqueduto parecia fantástica, pois os que teriam podido impulsioná-la dispunham de cisternas subterrâneas onde se armazenavam debaixo de uma espessa nata de limo as águas chovidas durante anos. Entre os móveis mais apreciados da época estavam as talhas de madeira lavrada cujos filtros de pedra gotejavam dia e noite para dentro de bacias. Para impedir que alguém bebesse do próprio jarro de alumínio com que se apanhava a água, este tinha as bordas denteadas feito a coroa de um rei de brincadeira. A água era vítrea e fresca na penumbra da argila cozida, e deixava na boca um sabor de floresta. Mas o doutor Juvenal Urbino não caía nesses embustes de purificação, pois sabia que apesar de tantas precauções o fundo das talhas era um refúgio de vermes. Havia passado as vagarosas horas da infância a contemplá-los com um assombro quase místico, convencido como tanta gente naquele tempo de que esses vermes eram alminhas, criaturas sobrenaturais que cortejavam donzelas nos sedimentos das águas pasmadas, e eram capazes de furiosas vinganças de amor. Tinha visto quando menino os escombros da casa de Lázara Conde, uma professora que se atreveu a fazer pouco dessas alminhas, e tinha visto a esteira de vidro partido na rua e o montão de pedras que atiraram durante três dias e três noites contra suas janelas. De maneira que passou muito tempo até aprender que os vermes eram na realidade as larvas dos pernilongos, mas aprendeu para nunca mais esquecer, porque desde então compreendeu que não só eles como muitas outras alminhas danadas podiam passar intactos através dos nossos ingênuos filtros de pedra.
     À água das cisternas se atribuiu durante muito tempo, e com muita honra, a hérnia rio escroto que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor como inclusive com certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola primária não conseguia reprimir um arrepio de horror ao ver os potrosos sentados à porta de suas casas nas tardes de calor, abanando o testículo enorme como se tivessem uma criança adormecida entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e se retorcia com uma dor insuportável se queimavam por perto uma pena de urubu, mas ninguém se queixava de tais percalços porque uma hérnia grande e bem tratada se ostentava antes de mais nada como um apanágio de homem. Quando o doutor Juvenal Urbino voltou da Europa já conhecia muito bem a falácia científica de tais crendices, mas estavam tão arraigadas na superstição local que muitos se opunham ao enriquecimento mineral da água das cisternas por temerem tirar dela a virtude de causar uma hérnia nobilitante.
      Tanto quanto com as impurezas da água, alarmava-se o doutor Juvenal Urbino com o estado higiênico do mercado público, um vasto descampado fronteiro à baía das Animas, onde atracavam os veleiros das Antilhas. Um viajante ilustre da época o descreveu como um dos mais variados do mundo. Era rico, sem dúvida, profuso e ruidoso, mas era também talvez o mais assustador. Assentava-se em sua própria cloaca, à mercê das veleidades da maré, e era ali que os arrotos da baía devolviam à terra as imundícies dos esgotos. Também se atiravam ali os restos do matadouro contíguo, cabeças decepadas, vísceras podres, e estéreo de animais, que ficavam boiando ao sol e ao sereno num pântano de sangue. Os urubus os disputavam com os ratos e os cachorros numa contenda perpétua, entre os veados e os capões saborosos que vinham de Sotavento e se dependuravam nos barrotes dos barracões, e os legumes primaveris de Arjona expostos em cima de esteiras, no chão.
     O doutor Juvenal Urbino queria sanear o lugar, queria que pusessem o matadouro em outra parte, que construíssem um mercado coberto com cúpulas de vidraças como o que conhecera nas antigas feiras de Barcelona, onde as provisões eram tão vistosas e limpas que dava para comê-las. Mas mesmo os mais compreensivos dos seus amigos notáveis se compadeciam de sua paixão ilusória. Eram assim: passavam a vida proclamando o orgulho de sua origem, os méritos históricos da cidade, o valor de suas relíquias, seu heroísmo e sua beleza, mas eram cegos ao caruncho dos anos. Enquanto que o doutor Juvenal Urbino lhe tinha amor bastante para vê-la com os olhos da verdade.

 — Muito nobre será esta cidade — dizia — se há quatrocentos anos procuramos acabar com ela e ainda não conseguimos.

continua na página 085...
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O Amor nos Tempos de Cólera: O Doutor Juvenal Urbino
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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