Machado de Assis
Conto
As bodas de Luís Duarte
(IV)
Não há mais júbilo nos peregrinos da Meca do que houve nos convivas ao
avistarem uma longa mesa, profusamente servida, alastrada de
porcelanas e cristais, assados, doces e frutas. Sentaram-se em boa
ordem. Durante alguns minutos houve aquele silêncio que precede a
batalha, e só no fim dela, começou a geral conversação.
— Quem diria há um ano, quando eu aqui apresentei o nosso Duarte, que
ele seria hoje noivo desta interessante D. Carlota? disse o Dr. Valença
limpando os lábios com o guardanapo, e lançando um benévolo olhar para
a noiva.
— É verdade! disse Beatriz.
— Parece dedo da Providência, opinou a mulher de Vilela.
— Parece, e é, disse D. Beatriz.
— Se é o dedo da Providência, acudiu o noivo, agradeço aos céus o
interesse que toma por mim.
Sorriu D. Carlota, e José Lemos achou o dito de bom gosto e digno de um
genro.
— Providência ou acaso? perguntou o tenente. Eu sou mais pelo acaso.
— Vai mal, disse Vilela, que pela primeira vez levantara a cabeça do
prato; isso que o senhor chama acaso não é senão a Providência. O
casamento e a mortalha no céu se talha.
— Ah! o senhor acredita nos provérbios?
— É a sabedoria das nações, disse José Lemos.
— Não, insistiu o Tenente Porfírio. Repare que para cada provérbio
afirmando uma coisa, há outro provérbio afirmando a coisa contrária. Os
provérbios mentem. Eu creio que foi simplesmente um felicíssimo acaso,
ou antes uma lei de atração das almas que fez com que o Sr. Luís Duarte
se aproximasse da interessante filha do nosso anfitrião.
José Lemos ignorava até aquela data se era anfitrião; mas considerou que
da parte de Porfírio não podia vir coisa má. Agradeceu sorrindo o que lhe
pareceu cumprimento, enquanto se servia da gelatina, que Justiniano
Vilela dizia estar excelente.
As moças conversavam baixinho e sorrindo; os noivos estavam
embebidos com a troca de palavras amorosas, ao passo que Rodrigo
palitava os dentes com tal ruído, que a mãe não pôde deixar de lhe lançar
um desses olhares fulminantes que eram as suas melhores armas.
— Quer gelatina, Sr. Calisto? perguntou José Lemos com a colher no ar.
— Um pouco, disse o homem de cara amarela.
— A gelatina é excelente! disse pela terceira vez o marido de D.
Margarida, e tão envergonhada ficou a mulher com estas palavras do
homem que não pôde reter um gesto de desgosto.
— Meus senhores, disse o padrinho, eu bebo aos noivos.
— Bravo! disse uma voz.
— Só isso? perguntou Rodrigo; deseja-se uma saúde historiada.
— Mamãe! eu quero gelatina! disse o menino Antonico.
— Eu não sei fazer discursos; bebo simplesmente à saúde dos noivos.
Todos beberam à saúde dos noivos.
— Quero gelatina! insistiu o filho de José Lemos.
D. Beatriz sentiu ímpetos de Medéia; o respeito aos convidados impediu
que ali houvesse uma cena grave. A boa senhora limitou-se a dizer a um
dos serventes:
— Leva isto a nhonhô...
O Antonico recebeu o prato, e entrou a comer como comem as crianças
quando não têm vontade: levava um colherada à boca e demorava-se
tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao
passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita
uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de
maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa.
Enquanto se davam estes incidentes, em que ninguém realmente
reparava, a conversa continuava seu caminho. O Dr. Valença discutia com
uma senhora a excelência do vinho Xerez, e Eduardo Valadares recitava
uma décima à moça que lhe ficava ao pé.
De repente levantou-se José Lemos.
— Sio! sio! sio! gritaram todos impondo silêncio.
José Lemos pegou num copo e disse aos circunstantes:
— Não é, meus senhores, a vaidade de ser ouvido por tão notável
assembleia que me obriga a falar. É um alto dever de cortesia, de
amizade, de gratidão; um desses deveres que podem mais que todos os
outros, dever santo, dever imortal.
A estas palavras a assembleia seria cruel se não aplaudisse. O aplauso
não atrapalhou o orador, pela simples razão de que ele sabia o discurso
de cor.
— Sim, senhores. Curvo-me a esse dever, que é para mim a lei mais
santa e imperiosa. Eu bebo aos meus amigos, a estes sectários do
coração, a estas vestais, tanto masculinas como femininas, do puro fogo
da amizade! Aos meus amigos! à amizade!
A falar a verdade, o único homem que percebeu a nulidade do discurso de
José lemos foi o Dr. Valença, que aliás não era águia. Por isso mesmo
levantou-se e fez um brinde aos talentos oratórios do anfitrião.
Seguiu-se a estes dois brindes o silêncio de uso, até que Rodrigo
dirigindo-se ao Tenente Porfírio perguntou-lhe se havia deixado a musa
em casa.
— É verdade! queremos ouvi-lo, disse uma senhora; dizem que fala tão
bem!
— Eu, minha senhora? respondeu Porfírio com aquela modéstia de um
homem que se supõe um S. João Boca de Ouro.
Distribuiu-se o champagne; e o Tenente Porfírio levantou-se. Vilela, que
se achava um pouco distante, pôs a mão em forma de concha atrás da
orelha direita, ao passo que Calisto fincando um olhar profundo sobre a
toalha parecia estar contando os fios do tecido. José Lemos chamou a
atenção da mulher, que nesse momento servia uma castanha gelada ao
implacável Antonico; todos os mais estavam com os olhos no orador.
— Minhas senhoras! meus senhores! disse Porfírio; não irei esquadrinhar
no âmago da história, essa mestra da vida, o que era o himeneu nas
priscas eras da humanidade. Seria lançar a luva do escárnio às faces
imaculadas desta brilhante reunião. Todos nós sabemos, senhoras e
senhores, o que é o himeneu. O himeneu é a rosa, rainha dos vergéis,
abrindo as pétalas rubras, para amenizar os cardos, os abrolhos, os
espinhos da vida...
— Bravo!
— Bonito!
— Se o himeneu é o que eu acabo de expor aos vossos sentidos
auriculares, não é mister explicar o gáudio, o fervor, os ímpetos de amor,
as explosões de sentimento com que todos nós estamos à roda deste
altar, celebrando a festa do nosso caro e prezadíssimo amigo.
José Lemos curvou a cabeça até tocar com a ponta do nariz numa pera
que tinha diante de si, enquanto D. Beatriz voltando-se para o Dr.
Valença que lhe ficava ao pé, dizia:
— Fala muito bem! parece um dicionário!
José Porfírio continuou:
— Sinto, senhores, não ter um talento digno do assunto...
— Não apoiado! está falando muito bem! disseram muitas vozes em volta
do orador.
— Agradeço a bondade de V. Excias.; mas eu persisto na crença de que
não tenho o talento capaz de arcar com um objeto de tanta magnitude.
— Não apoiado!
— V. Excias. confundem-me, respondeu Porfírio curvando-se. Não tenho
esse talento; mas sobra-me boa vontade, aquela boa vontade com que os
apóstolos plantaram no mundo a religião do Calvário, e graças a este
sentimento poderei resumir em duas palavras o brinde aos noivos.
Senhores, duas flores nasceram em diverso canteiro, ambas pulcras,
ambas recendentes, ambas cheias de vitalidade divina. Nasceram uma
para outra; era o cravo e a rosa; a rosa vivia para o cravo, o cravo vivia
para a rosa: veio uma brisa e comunicou os perfumes das duas flores, e
as flores, conhecendo que se amavam, correram uma para a outra. A
brisa apadrinhou essa união. A rosa e o cravo ali estão consorciados no
amplexo da simpatia: a brisa ali está honrando a nossa reunião.
Ninguém esperava pela brisa; a brisa era o Dr. Valença.
Estrepitosos aplausos celebraram este discurso em que o Calvário andou
unido ao cravo e à rosa. Porfírio sentou-se com a satisfação íntima de ter
cumprido o seu dever.
O jantar chegava ao fim: eram oito horas e meia; vinham chegando
alguns músicos para o baile. Todavia, ainda houve uma poesia de
Eduardo Valadares e alguns brindes a todos os presentes e a alguns
ausentes. Ora, como os licores iam ajudando as musas, travou-se
especial combate entre o Tenente Porfírio e Justiniano Vilela, que, só
depois de animado pôde entrar na arena. Esgotados os assuntos, fez
Porfírio um brinde ao exército e aos seus generais, e Vilela outro à união
das províncias do Império. Nesse terreno os assuntos não podiam
escassear. Quando todos se levantaram da mesa, lá ficaram os dois
brindando calorosamente todas as ideias práticas e úteis deste mundo, e
do outro.
Seguiu-se o baile, que foi animadíssimo e durou até as três horas da
manhã.
Nenhum incidente perturbou esta festa. Quando muito podia citar-se um
ato de mau gosto da parte de José Lemos que, dançando com D.
Margarida, ousou lamentar a sorte dessa pobre senhora cujo marido se
entretinha a fazer saúdes em vez de ter a inapreciável ventura de estar
ao lado dela. D. Margarida sorriu; mas o incidente não foi adiante.
Às duas horas retirou-se o Dr. Valença com a família, sem que durante a
noite, e apesar da familiaridade da reunião, perdesse um átomo sequer
da gravidade habitual. Calisto Valadares esquivou-se na ocasião em que a
filha mais moça de D. Beatriz ia cantar ao piano. Os mais foram-sefim retirando a pouco e pouco.
Quando a festa acabou de todo, ainda os dois últimos Abencerragens do
copo e da mesa lá estavam levantando brindes de todo o tamanho. O
último brinde de Vilela foi ao progresso do mundo por meio do café e do
algodão, e o de Porfírio ao estabelecimento da paz universal.
Mas o verdadeiro brinde dessa festa memorável foi um pecurrucho que
viu a luz em janeiro do ano seguinte, o qual perpetuará a dinastia dos
Lemos, se não morrer na crise da dentição.
fim
continua na página 48...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (IV)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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