segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Histórias da Meia-Noite: As bodas de Luís Duarte (IV)

As bodas de Luís Duarte

Machado de Assis

Conto

As bodas de Luís Duarte

(IV)

     Não há mais júbilo nos peregrinos da Meca do que houve nos convivas ao avistarem uma longa mesa, profusamente servida, alastrada de porcelanas e cristais, assados, doces e frutas. Sentaram-se em boa ordem. Durante alguns minutos houve aquele silêncio que precede a batalha, e só no fim dela, começou a geral conversação. 

— Quem diria há um ano, quando eu aqui apresentei o nosso Duarte, que ele seria hoje noivo desta interessante D. Carlota? disse o Dr. Valença limpando os lábios com o guardanapo, e lançando um benévolo olhar para a noiva. 

— É verdade! disse Beatriz. 

— Parece dedo da Providência, opinou a mulher de Vilela.

— Parece, e é, disse D. Beatriz. 

— Se é o dedo da Providência, acudiu o noivo, agradeço aos céus o interesse que toma por mim.

     Sorriu D. Carlota, e José Lemos achou o dito de bom gosto e digno de um genro.

— Providência ou acaso? perguntou o tenente. Eu sou mais pelo acaso. 

— Vai mal, disse Vilela, que pela primeira vez levantara a cabeça do prato; isso que o senhor chama acaso não é senão a Providência. O casamento e a mortalha no céu se talha.

— Ah! o senhor acredita nos provérbios? 

— É a sabedoria das nações, disse José Lemos.  

— Não, insistiu o Tenente Porfírio. Repare que para cada provérbio afirmando uma coisa, há outro provérbio afirmando a coisa contrária. Os provérbios mentem. Eu creio que foi simplesmente um felicíssimo acaso, ou antes uma lei de atração das almas que fez com que o Sr. Luís Duarte se aproximasse da interessante filha do nosso anfitrião.

     José Lemos ignorava até aquela data se era anfitrião; mas considerou que da parte de Porfírio não podia vir coisa má. Agradeceu sorrindo o que lhe pareceu cumprimento, enquanto se servia da gelatina, que Justiniano Vilela dizia estar excelente. 
     As moças conversavam baixinho e sorrindo; os noivos estavam embebidos com a troca de palavras amorosas, ao passo que Rodrigo palitava os dentes com tal ruído, que a mãe não pôde deixar de lhe lançar um desses olhares fulminantes que eram as suas melhores armas.

— Quer gelatina, Sr. Calisto? perguntou José Lemos com a colher no ar.

— Um pouco, disse o homem de cara amarela.

— A gelatina é excelente! disse pela terceira vez o marido de D. Margarida, e tão envergonhada ficou a mulher com estas palavras do homem que não pôde reter um gesto de desgosto.  

— Meus senhores, disse o padrinho, eu bebo aos noivos.

— Bravo! disse uma voz. 

— Só isso? perguntou Rodrigo; deseja-se uma saúde historiada.

— Mamãe! eu quero gelatina! disse o menino Antonico.

— Eu não sei fazer discursos; bebo simplesmente à saúde dos noivos. 

     Todos beberam à saúde dos noivos. 

— Quero gelatina! insistiu o filho de José Lemos.

     D. Beatriz sentiu ímpetos de Medéia; o respeito aos convidados impediu que ali houvesse uma cena grave. A boa senhora limitou-se a dizer a um dos serventes: 

— Leva isto a nhonhô... 

     O Antonico recebeu o prato, e entrou a comer como comem as crianças quando não têm vontade: levava um colherada à boca e demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa. 
     Enquanto se davam estes incidentes, em que ninguém realmente reparava, a conversa continuava seu caminho. O Dr. Valença discutia com uma senhora a excelência do vinho Xerez, e Eduardo Valadares recitava uma décima à moça que lhe ficava ao pé.
     De repente levantou-se José Lemos. 

— Sio! sio! sio! gritaram todos impondo silêncio. 

     José Lemos pegou num copo e disse aos circunstantes: 

— Não é, meus senhores, a vaidade de ser ouvido por tão notável assembleia que me obriga a falar. É um alto dever de cortesia, de amizade, de gratidão; um desses deveres que podem mais que todos os outros, dever santo, dever imortal.  

     A estas palavras a assembleia seria cruel se não aplaudisse. O aplauso não atrapalhou o orador, pela simples razão de que ele sabia o discurso de cor.

— Sim, senhores. Curvo-me a esse dever, que é para mim a lei mais santa e imperiosa. Eu bebo aos meus amigos, a estes sectários do coração, a estas vestais, tanto masculinas como femininas, do puro fogo da amizade! Aos meus amigos! à amizade!

     A falar a verdade, o único homem que percebeu a nulidade do discurso de José lemos foi o Dr. Valença, que aliás não era águia. Por isso mesmo levantou-se e fez um brinde aos talentos oratórios do anfitrião.
     Seguiu-se a estes dois brindes o silêncio de uso, até que Rodrigo dirigindo-se ao Tenente Porfírio perguntou-lhe se havia deixado a musa em casa. 

— É verdade! queremos ouvi-lo, disse uma senhora; dizem que fala tão bem! 

— Eu, minha senhora? respondeu Porfírio com aquela modéstia de um homem que se supõe um S. João Boca de Ouro.

     Distribuiu-se o champagne; e o Tenente Porfírio levantou-se. Vilela, que se achava um pouco distante, pôs a mão em forma de concha atrás da orelha direita, ao passo que Calisto fincando um olhar profundo sobre a toalha parecia estar contando os fios do tecido. José Lemos chamou a atenção da mulher, que nesse momento servia uma castanha gelada ao implacável Antonico; todos os mais estavam com os olhos no orador.  

— Minhas senhoras! meus senhores! disse Porfírio; não irei esquadrinhar no âmago da história, essa mestra da vida, o que era o himeneu nas priscas eras da humanidade. Seria lançar a luva do escárnio às faces imaculadas desta brilhante reunião. Todos nós sabemos, senhoras e senhores, o que é o himeneu. O himeneu é a rosa, rainha dos vergéis, abrindo as pétalas rubras, para amenizar os cardos, os abrolhos, os espinhos da vida...

— Bravo!

— Bonito!

— Se o himeneu é o que eu acabo de expor aos vossos sentidos auriculares, não é mister explicar o gáudio, o fervor, os ímpetos de amor, as explosões de sentimento com que todos nós estamos à roda deste altar, celebrando a festa do nosso caro e prezadíssimo amigo.

     José Lemos curvou a cabeça até tocar com a ponta do nariz numa pera que tinha diante de si, enquanto D. Beatriz voltando-se para o Dr. Valença que lhe ficava ao pé, dizia:  

— Fala muito bem! parece um dicionário!

     José Porfírio continuou:

— Sinto, senhores, não ter um talento digno do assunto...

— Não apoiado! está falando muito bem! disseram muitas vozes em volta do orador. 

— Agradeço a bondade de V. Excias.; mas eu persisto na crença de que não tenho o talento capaz de arcar com um objeto de tanta magnitude. 

— Não apoiado!

— V. Excias. confundem-me, respondeu Porfírio curvando-se. Não tenho esse talento; mas sobra-me boa vontade, aquela boa vontade com que os apóstolos plantaram no mundo a religião do Calvário, e graças a este sentimento poderei resumir em duas palavras o brinde aos noivos. Senhores, duas flores nasceram em diverso canteiro, ambas pulcras, ambas recendentes, ambas cheias de vitalidade divina. Nasceram uma para outra; era o cravo e a rosa; a rosa vivia para o cravo, o cravo vivia para a rosa: veio uma brisa e comunicou os perfumes das duas flores, e as flores, conhecendo que se amavam, correram uma para a outra. A brisa apadrinhou essa união. A rosa e o cravo ali estão consorciados no amplexo da simpatia: a brisa ali está honrando a nossa reunião. 

     Ninguém esperava pela brisa; a brisa era o Dr. Valença. 
     Estrepitosos aplausos celebraram este discurso em que o Calvário andou unido ao cravo e à rosa. Porfírio sentou-se com a satisfação íntima de ter cumprido o seu dever.
     O jantar chegava ao fim: eram oito horas e meia; vinham chegando alguns músicos para o baile. Todavia, ainda houve uma poesia de Eduardo Valadares e alguns brindes a todos os presentes e a alguns ausentes. Ora, como os licores iam ajudando as musas, travou-se especial combate entre o Tenente Porfírio e Justiniano Vilela, que, só depois de animado pôde entrar na arena. Esgotados os assuntos, fez Porfírio um brinde ao exército e aos seus generais, e Vilela outro à união das províncias do Império. Nesse terreno os assuntos não podiam escassear. Quando todos se levantaram da mesa, lá ficaram os dois brindando calorosamente todas as ideias práticas e úteis deste mundo, e do outro. 
     Seguiu-se o baile, que foi animadíssimo e durou até as três horas da manhã. 
     Nenhum incidente perturbou esta festa. Quando muito podia citar-se um ato de mau gosto da parte de José Lemos que, dançando com D. Margarida, ousou lamentar a sorte dessa pobre senhora cujo marido se entretinha a fazer saúdes em vez de ter a inapreciável ventura de estar ao lado dela. D. Margarida sorriu; mas o incidente não foi adiante.
     Às duas horas retirou-se o Dr. Valença com a família, sem que durante a noite, e apesar da familiaridade da reunião, perdesse um átomo sequer da gravidade habitual. Calisto Valadares esquivou-se na ocasião em que a filha mais moça de D. Beatriz ia cantar ao piano. Os mais foram-sefim  retirando a pouco e pouco. 
     Quando a festa acabou de todo, ainda os dois últimos Abencerragens do copo e da mesa lá estavam levantando brindes de todo o tamanho. O último brinde de Vilela foi ao progresso do mundo por meio do café e do algodão, e o de Porfírio ao estabelecimento da paz universal. 
     Mas o verdadeiro brinde dessa festa memorável foi um pecurrucho que viu a luz em janeiro do ano seguinte, o qual perpetuará a dinastia dos Lemos, se não morrer na crise da dentição.
fim

continua na página 48...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

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