Machado de Assis
Conto
ERNESTO DE TAL
(Capítulo II)
Veja o leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas
damas da mesma idade, conversando baixinho com elas, e requebrando
de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não
enganam ninguém... exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos
e caçadores, e com um certo movimento que ela lhes dá, ficam ainda
mais caçadores e espertinhos. É galante e graciosa; se o não fora, não se
deixaria prender por ela o nosso infeliz Ernesto, que era rapaz de apurado
gosto. Alta não era, mas baixinha, viva, travessa. Tinha bastante afetação
nos modos e no falar; mas Ernesto, a quem um amigo notara isso
mesmo, declarou que não gostava de moscas mortas.
— Eu nem de moscas vivas, acudiu o amigo encantado por ter apanhado
no ar este trocadilho.
Trocadilho de 1850.
Não veste com luxo porque o tio não é rico; mas ainda assim está garrida
e elegante. Na cabeça tem por enfeite apenas dois laços de fita azul.
— Ah! se aquelas fitas me quisessem enforcar! dizia um gamenho de
bigode preto e cabelo partido ao meio.
— Se aquelas fitas me quisessem levar ao céu! dizia outro de suíças
castanhas e orelhas pequeninas.
Desejos ambiciosos os destes dois rapazes, — ambiciosos e vãos, porque
ela, se alguém lhe prende a atenção, é um moço de bigode louro e nariz
comprido que está agora conversando com o subdelegado. Para ele é que
Rosina dirige de quando em quando os olhos, com disfarce é verdade, não
tanto porém que o não percebam as duas moças que estão ao pé dela.
— Namoro ferrado! dizia uma delas à outra fazendo um sinal de cabeça
para o lado do moço de nariz comprido.
— Ora, Justina?
— Calúnias! acudiu a outra moça.
— Cala-te, Amélia!
— Você quer enganar a gente? insistia Justina. Tire o cavalo da chuva! Lá
está ele olhando... Parece que nem ouve o comendador. Pobre
comendador! para pau-de-cabeleira está grosso demais.
— Olha, se você não se cala eu vou-me embora, disse Rosina fingindo-se
enfadada.
— Pois vá!
— Coitado do Ernesto! suspirou Amélia do outro lado.
— Olhe que titia pode ouvir, observou Rosina olhando de esguelha para
uma velha gorda, que, assentada ao pé do sofá, referia a uma comadre
as diversas peripécias da última moléstia do marido.
— Mas por que não veio o Ernesto? perguntou Justina.
— Mandou dizer a papai que tinha um trabalho urgente.
— Quem sabe se algum namoro também? insinuou Justina.
— Não é capaz! acudiu Rosina.
— Bravo! que confiança!
— Que amor!
— Que certeza!
— Que defensora!
— Não é capaz, repetiu a moça: o Ernesto não é capaz de namorar a
outra; estou certa disso... O Ernesto é um...
Engoliu o resto.
— Um quê? perguntou Amélia.
— Um quê? perguntou Justina.
E não tinham muita razão as duas amigas. Rosina valsava com graça e
podia pedir meças a quem soubesse aquele gênero de dança. Agora
quanto ao namoro, pode ser que tivessem razão, e tinham efetivamente;
a maneira por que ela olhava e falava ao rapaz de nariz comprido
despertava suspeitas no espírito mais desprevenido a seu respeito.
Acabada a valsa, passearam um pouco e foram depois para o vão de uma
janela. Era então uma hora, e já o desgraçado Ernesto palmilhava na
direção da Rua da Misericórdia.
— Eu passarei amanhã às seis horas da tarde.
— Às seis horas, não! disse Rosina.
Era a hora em que Ernesto costumava ir lá.
— Então às cinco...
— Às cinco?... Sim, às cinco, concordou a moça.
O rapaz de nariz comprido agradeceu com um sorriso esta ratificação do
seu tratado amoroso, e proferiu algumas palavras que a moça ouviu
derretida e envergonhada, entre vaidosa e modesta. O que ele dizia era
que Rosina não só era a flor do baile, mas também a flor da Rua do
Conde, e não só a flor da Rua do Conde, mas também a flor da cidade
inteira.
Isto era o que lhe dissera muitas vezes Ernesto; o rapaz de nariz
comprido, entretanto, tinha uma maneira particular de elogiar uma moça.
A graça, por exemplo, com que ele metia o dedo polegar da mão
esquerda no bolso esquerdo do colete, brincando depois com os outros
dedos como se tocasse piano, era de todo ponto inimitável; nem havia
ninguém, pelo menos, naquelas imediações, que tivesse mais elegância
na maneira de arquear os braços, de concertar os cabelos, ou
simplesmente de oferecer uma xícara de chá.
Tais foram os dotes que venceram o coração inconstante da graciosa
Rosina. Só esses? Não. A simples circunstância de não ter Ernesto a
interessante vestidura que ornava o corpo e realçava as graças do seu
afortunado rival, pode já dar algumas luzes ao leitor de boa fé. Rosina
ignorava sem dúvida a situação precária de Ernesto a respeito da casaca;
mas sabia que ele ocupava um emprego somenos no Arsenal de Guerra,
ao passo que o rapaz de nariz comprido tinha um bom lugar numa casa
comercial.
Uma moça que professasse ideias filosóficas a respeito do amor e do
casamento diria que os impulsos do coração estavam antes de tudo.
Rosina não era inteiramente avessa aos impulsos do coração e à filosofia
do amor; mas tinha ambição de figurar alguma coisa, morria por vestidos
novos e espetáculos frequentes, gostava enfim de viver à luz pública.
Tudo isso podia dar-lhe, com o tempo, o rapaz de nariz comprido, que ela
antevia já na direção da casa em que trabalhava; o Ernesto porém era
difícil que passasse do lugar que tinha no Arsenal, e em todo o caso não
subiria muito nem depressa.
Pesados os merecimentos de um e de outro, quem perdia era o mísero
Ernesto.
Rosina conhecia o novo candidato desde algumas semanas; mas só
naquela noite tivera ocasião de o tratar de perto, de consolidar, digamos
assim, a sua situação. As relações, até então puramente telegráficas,
passaram a ser verbais; e se o leitor gosta de um estilo arrebicado e
gongórico, dir-lhe-ei que tantos foram os telegramas trocados durante a
noite entre eles, que os Estados vizinhos, receosos de perder uma aliança
provável, chamaram às armas a milícia dos agrados, mandaram sair a
armada dos requebros, assestaram a artilharia dos olhos ternos, dos
lenços na boca, e das expressões suavíssimas; mas toda essa leva de
broquéis nenhum resultado deu porque a formosa Rosina, ao menos
naquela noite, achava-se entregue a um só pensamento.
Quando acabou o baile, e Rosina entrou na sua alcova, viu um papelinho
dobrado no toucador.
— Que é isto? disse ela.
Abriu: era a resposta à carta de Ernesto que ela se esquecera de mandar.
Se alguém a tivesse lido? Não; não era natural. Dobrou a cartinha com
muito cuidado, fechou-a com obreia, guardou-a numa gavetinha, dizendo
consigo:
— É preciso mandá-la amanhã de manhã.
continua na página 54...
__________________
Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Ernesto de Tal (II)
__________________
Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
Nenhum comentário:
Postar um comentário