Machado de Assis
Conto
ERNESTO DE TAL
(Capítulo I)
Aquele moço que ali está parado na Rua Nova do Conde esquina do
Campo da Aclamação, às dez horas da noite, não é nenhum ladrão, não é
sequer um filósofo. Tem um ar misterioso, é verdade; de quando em
quando leva a mão ao peito, bate uma palmada na coxa, ou atira fora um
charuto apenas encetado. Filósofo já se vê que não era. Ratoneiro
também não: se algum sujeito acerta de passar pelo mesmo lado, o vulto
afasta-se cauteloso, como se tivesse medo de ser conhecido.
De dez em dez minutos, sobe a rua até o lugar em que ela faz ângulo
com a Rua do Areal, torna a descer dez minutos depois, para de novo
subir e descer, descer e subir, sem outro resultado mais que aumentar
cinco por cento a cólera que lhe murmura no coração.
Quem o visse fazer estas subidas e descidas, bater na perna, acender e
apagar charutos, e não tivesse outra explicação, suporia plausivelmente
que o homem estava doido ou perto disso. Não, senhor; Ernesto de Tal
(não estou autorizado para dizer o nome todo) anda simplesmente
apaixonado por uma moça que mora naquela rua; está colérico porque
ainda não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou nessa
manhã.
Convém dizer que dois dias antes tinha havido um pequeno arrufo.
Ernesto quebrara o protesto de namorado que lhe fizera, de nunca mais
escrever-lhe, mandando nessa manhã uma epístola de quatro laudas
incendiárias, com muitos sinais admirativos e várias liberdades de
pontuação. A carta foi, mas a resposta não veio.
De cada vez que o nosso namorado operava a descida ou subida da rua,
parava defronte de uma casa assobradada, onde se dançava ao som de
um piano. Era ali que morava a dama dos seus pensamentos. Mas parava
debalde; nem ela aparecia à janela, nem a carta lhe chegava às mãos.
Ernesto mordia então os beiços para não soltar um grito de desespero e ia
desafogar os seus furores na próxima esquina.
“Mas que explicação tem isto, dizia ele consigo mesmo; por que razão não
me atira ela o papel de cima da janela? Não tem que ver; está toda
entregue à dança, talvez ao namoro, não se lembra que eu estou aqui na
rua, quando podia estar lá...”
Neste ponto calou-se o namorado, e em vez do gesto de desespero que
devia fazer, soltou apenas um longo e magoado suspiro. A explicação
deste suspiro, inverossímil num homem que está rebentando de cólera, é
um tanto delicada para se dizer em letra redonda. Mas vá lá; ou não se
há de contar nada, ou se há de dizer tudo.
Ernesto dava-se em casa do Sr. Vieira, tio de Rosina, que é o nome da
namorada. Lá costumava ir com frequência, e lá mesmo é que se arrufou
com ela dois dias antes deste sábado de outubro de 1850, em que se
passa o acontecimento que estou narrando. Ora, por que razão não figura
Ernesto entre os cavalheiros que estão dançando ou tomando chá? Na
véspera de tarde o Sr. Vieira, encontrando-se com Ernesto, participou-lhe
que dava no dia seguinte uma pequena partida para solenizar não sei que
acontecimento da família.
— Resolvi isto hoje de manhã, concluiu ele; convidei pouca gente, mas
espero que a festa esteja brilhante. Ia mandar-lhe agora um convite; mas
creio que me dispensa?...
— Sem dúvida, apressou-se a dizer Ernesto, esfregando as mãos de
contente.
— Não falte!
— Não senhor!
— Ah! esquecia-me avisá-lo de uma coisa, disse Vieira que já havia dado
alguns passos; como vai o subdelegado, que além disso é comendador,
eu desejava que todos os meus convidados aparecessem de casaca.
Sacrifique-se à casaca, sim?
— Com muito gosto, respondeu o outro ficando pálido como um defunto.
Pálido, por quê? Leitor, por mais ridícula e lastimosa que te pareça esta
declaração, não hesito de dizer-te que o nosso Ernesto não possuía uma
só casaca nova nem velha. A exigência de Vieira era absurda; mas não
havia fugir-lhe; ou não ir, ou ir de casaca. Cumpria sair a todo custo
desta gravíssima situação. Três alvitres se apresentaram ao espírito do
atribulado moço; encomendar, por qualquer preço, uma casaca para a
noite seguinte; comprá-la a crédito; pedi-la a um amigo.
Os dois primeiros alvitres foram desprezados por impraticáveis; Ernesto
não tinha dinheiro nem crédito tão alto. Restava o terceiro. Fez Ernesto
uma lista dos amigos e casacas prováveis, meteu-a na algibeira e saiu em
busca do velocino.
A desgraça porém que o perseguia fez com que o primeiro amigo tivesse
de ir no dia seguinte a um casamento e o segundo a um baile; o terceiro
tinha a casaca rota, o quarto tinha a casaca emprestada, o quinto não
emprestava a casaca, o sexto não tinha casaco. Recorreu ainda a mais
dois amigos suplementares; mas um partira na véspera para Iguaçu e o
outro estava destacado na Fortaleza de São João, como alferes da Guarda
Nacional.
Imagine-se o desespero de Ernesto; mas admire-se também a requintada
crueldade com que o destino tratava a este moço, que ao voltar para casa
encontrou três enterros, dois dos quais com muitos carros, cujos
ocupantes iam todos de casaca. Era mister curvar a cabeça à fatalidade;
Ernesto não insistiu. Mas como tomara a peito reconciliar-se com Rosina,
escreveu-lhe a carta de que falei acima e mandou-a levar pelo moleque
da casa, dizendo-lhe que à noite lhe desse a resposta na esquina do
Campo. Já sabemos que tal resposta não veio. Ernesto não compreendia a
causa do silêncio; muitos arrufos tivera com a moça, mas nenhum deles
resistia à primeira carta nem durava mais de quarenta e oito horas.
Desenganado enfim de que a resposta viesse naquela noite, Ernesto
dirigiu-se para casa com o desespero no coração. Morava na Rua da
Misericórdia. Quando lá chegou estava cansado e abatido. Nem por isso
dormiu logo. Despiu-se precipitadamente. Esteve a ponto de rasgar o
colete, cuja fivela teimava em prender-se a um botão da calça. Atirou
com as botinas sobre um aparador e quase esmigalhou uma das jarras.
Deu cerca de sete ou oito murros na mesa; fumou dois charutos,
descompôs o destino, a moça, a si mesmo, até que sobre a madrugada
pôde conciliar o sono.
Enquanto ele dorme, indaguemos a causa do silêncio da namorada.
continua na página 51...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Ernesto de Tal (I)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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