O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
continuando... Florentino Ariza tinha conhecido a rota dos galeões nas cartas de navegar da
época, e acreditava haver determinado o lugar do naufrágio. Saíram da baía por
entre as duas fortalezas da Boca Chica, e ao fim de quatro horas de navegação
entraram nas águas interiores do arquipélago, em cujo fundo de coral podiam ser
colhidas com a mão as lagostas adormecidas. O ar era tão leve, e o mar tão sereno e
diáfano, que Florentino Ariza se sentiu como se não passasse de seu próprio reflexo
na água. Para lá do remanso, a duas horas da ilha maior, estava o lugar do
naufrágio.
Congestionado em sua indumentária fúnebre pelo sol infernal, Florentino Ariza
explicou a Euclides que ali devia descer a vinte metros e trazer qualquer coisa que
encontrasse no fundo. A água era tão clara que o viu mover-se no fundo, como um
tubarão entre os tubarões azuis que se cruzavam com ele sem tocá-lo. Depois o viu
desaparecer num matagal de corais, e bem quando achou que ele não podia ter mais
ar ouviu a voz às suas costas. Euclides estava parado no fundo, com os braços
levantados e água pela cintura. Por isso continuaram buscando lugares mais
fundos, sempre para o norte, navegando por cima das arraias lentas, das lulas
tímidas, dos roseirais tenebrosos, até que Euclides compreendeu que estavam
perdendo tempo.
— Se não me disser o que quer que eu encontre, não sei como vou encontrá-lo —
disse.
Mas ele não falou. Então Euclides lhe propôs que tirasse a roupa e descesse com
ele, ainda que só para ver esse outro céu debaixo do mundo que eram os fundos de
corais. Mas Florentino Ariza costumava dizer que Deus tinha feito o mar só para
olhá-lo pela janela, e nunca aprendeu a nadar. Pouco depois a tarde nublou, o ar
ficou frio e úmido, e escureceu tão depressa que precisaram se guiar pelo farol para
encontrar o porto. Antes de entrar na baía, viram passar muito perto o
transatlântico da França com todas as luzes acesas, enorme e branco, que ia
deixando um rastro de guisado mole e couve-flor fervida.
Desta forma perderam três domingos, e teriam continuado a perdê-los todos se
Florentino Ariza não tivesse resolvido partilhar seu segredo com Euclides. Este
modificou então todo o plano da busca, e puseram-se a navegar pelo antigo canal
dos galeões, que estava a mais de vinte léguas marítimas a oriente do lugar previsto
por Florentino Ariza. Antes de passados dois meses, certa tarde de chuva no mar,
Euclides permaneceu muito tempo no fundo, e a canoa tinha derivado tanto que
teve que nadar quase meia hora para alcançá-la, já que Florentino Ariza não
conseguiu aproximá-la com os remos. Quando por fim pôde abordá-la, tirou da boca
e mostrou como triunfo da perseverança dois adereços de mulher.
O que contou era tão fascinante que Florentino Ariza prometeu a si mesmo
aprender a nadar, e afundar até onde pudesse só para comprová-lo com os próprios
olhos. Contou que naquele lugar, a apenas dezoito metros de profundidade, havia
tantos veleiros antigos deitados entre os bancos de coral que era impossível sequer
calcular a quantidade, e estavam disseminados por um espaço tão extenso que eram
de perder de vista. Contou que o mais surpreendente era que das tantas carcaças de
navios que ainda flutuavam na baía nenhuma estava em tão bom estado quanto as
naves submersas. Contou que havia várias caravelas ainda com as velas intactas, e
que as naves afundadas eram visíveis no fundo, pois parecia que haviam afundado
com seu espaço e seu tempo, de maneira que ali continuavam alumiadas pelo
mesmo sol das onze da manhã do sábado 9 de junho em que foram a pique. Contou,
afogando-se no próprio ímpeto da sua imaginação, que o mais fácil de distinguir era
o galeão San José, cujo nome era visível na popa com letras de ouro, mas que ao
mesmo tempo era a nave mais danificada pela artilharia dos ingleses. Contou ter
visto dentro um polvo de mais de três séculos de idade, cujos tentáculos saíam pelas
seteiras dos canhões, mas havia crescido tanto na sala de refeições de bordo que
para libertá-lo só desmantelando a nave. Contou que vira o corpo do comandante
com seu uniforme de guerra flutuando de lado dentro do aquário do castelo, e que
se não baixara até os porões do tesouro foi porque o ar dos pulmões não dera para
tanto. Ali estavam as provas: um brinco com uma esmeralda, e uma medalha da
Virgem com seu cordão carcomido pelo salitre.
Essa foi a primeira menção ao tesouro que Florentino Ariza fez a Fermina Daza
numa carta que lhe mandou a Fonseca pouco antes do seu regresso. A história do
galeão afundado lhe era familiar, pois a tinha ouvido sendo contada a Lorenzo Daza
muitas vezes. Ele perdera tempo e dinheiro tratando de convencer uma companhia
de mergulhadores alemães a se associar com ele para resgatarem o tesouro
submerso. Teria insistido no empreendimento, se não tivesse sido convencido por
vários membros da Academia da História de que a lenda do galeão naufragado era
invenção de um certo vice-rei bandoleiro, que para encontrar o navio conseguira
dinheiros da Coroa. Em todo o caso, Fermina Daza sabia que o galeão estava a uma
profundidade de duzentos metros, onde nenhum ser humano poderia atingi-lo, e
não aos vinte metros que dizia Florentino Ariza. Mas estava tão acostumada a seus
excessos poéticos que celebrou a aventura do galeão como um dos mais belos.
Contudo, ao receber outras cartas com pormenores ainda mais fantásticos, e
escritos com tanta seriedade como seus protestos de amor, teve de confessar a
Hildebranda seu temor de que o noivo alucinado tivesse perdido o juízo.
Naqueles dias, Euclides já tinha emergido das águas com tais provas de sua
fábula que não se tratava mais de continuar ciscando brincos e anéis semeados
entre os corais, e sim de capitalizar uma empresa grande para recuperar a meia
centena de naves com a fortuna babilônica que continham. Aconteceu então o que
mais cedo ou mais tarde aconteceria, e foi que Florentino Ariza pediu ajuda à mãe
para levar a bom porto sua aventura. A ela bastou-lhe morder o metal das joias, e
olhar contra a luz as pedras de vidro, para concluir que alguém andava abusando da
boa fé do filho. Euclides jurou de joelhos a Florentino Ariza que não havia nada de
escuso em sua atividade, mas não deu nenhum ar de sua graça domingo seguinte no
porto dos pescadores, nem nunca mais em nenhuma parte.
A única coisa que aquele descalabro rendeu a Florentino Ariza foi o refúgio de
amor do farol. Ali chegara na canoa de Euclides, uma noite que os surpreendeu a
tempestade em mar aberto, e a partir de então costumava ir lá à tarde conversar
com o faroleiro sobre as incontáveis maravilhas da terra e da água que o faroleiro
sabia. Esse foi o início de uma amizade que sobreviveu às muitas mudanças do
mundo. Florentino Ariza aprendeu a alimentar a luz, primeiro com feixes de lenha e
depois com botijões de óleo, antes que nos chegasse a energia elétrica. Aprendeu a
dirigi-la e a aumentá-la com espelhos, e nas várias ocasiões em que o faroleiro não
pôde fazê-lo, ficou ali, vigiando da torre as noites do mar. Aprendeu a conhecer os
navios pelas suas vozes, pelo tamanho de suas luzes no horizonte, e a perceber que
algo deles lhe chegava de volta nos relâmpagos do farol.
Durante o dia o prazer era outro, sobretudo aos domingos. No bairro dos Vice
Reis, onde moravam os ricos da cidade velha, as praias das mulheres estavam
separadas das dos homens por um muro de argamassa: uma à direita, outra à
esquerda do farol. O faroleiro havia instalado uma luneta pela qual se podia
contemplar, mediante o pagamento de um centavo, a praia das mulheres. Sem se
saberem observadas, as senhoritas da sociedade se mostravam o melhor que
podiam dentro de suas roupas de banho de largos panos, mais os sapatinhos de
borracha e os chapéus, tudo isso ocultando os corpos quase tanto quanto a roupa de
rua, só que de forma menos atraente. Das margens as mães as vigiavam, sentadas
ao sol de rachar em cadeiras de balanço de vime com os mesmos vestidos, os
mesmos chapéus de plumas, as mesmas sombrinhas de renda com que tinham ido
à missa solene, por temor de que os homens das praias vizinhas as seduzissem por
baixo d'água. A realidade era que através da luneta não se podia ver mais nada, nem
mais excitante do que se podia ver na rua, mas eram muitos os clientes que
acudiam cada domingo para se disputarem o telescópio no puro deleite de provar os
frutos insípidos do quintal alheio.
Florentino Ariza era um deles, mais por tédio do que por prazer, mas não foi esse
atrativo adicional que o tornou tão bom amigo do faroleiro. O motivo real foi que a
partir do menosprezo de Fermina Daza, quando ele contraiu a febre dos amores
dispersos na ânsia de substituí-la, só mesmo no farol viveu horas felizes e
encontrou consolo para suas desditas. De tal forma que durante anos procurou
convencer sua mãe, e mais tarde seu tio Leão XII, a ajudá-lo a comprar o farol. É
que os faróis do Caribe eram então propriedade privada, e seus donos cobravam o
direito de passagem até o porto segundo o tamanho dos navios. Florentino Ariza
achava que era essa a única maneira honesta de fazer um bom negócio com a
poesia, mas nem a mãe nem o tio achavam o mesmo, e quando ele pôde fazê-lo com
recursos próprios os faróis já tinham passado à propriedade do estado.
Nenhuma dessas ilusões foi vã, não obstante. A fábula do galeão, e em seguida a
novidade do farol, foram aliviando para ele a ausência de Fermina Daza, e quando
ele menos o pressentia chegou a notícia do regresso. Com efeito, depois de uma
estada prolongada em Riohacha, Lorenzo Daza tinha resolvido voltar. Não era a
época mais benigna do mar, devido aos alíseos de dezembro, e a goleta histórica, a
única que se arriscava à travessia, podia amanhecer de volta ao porto de origem,
arrastada por um vento contrário. Assim foi. Fermina Daza passara uma noite de
agonia, vomitando bílis, amarrada ao beliche de um camarote que parecia uma
privada de botequim, não só pela estreiteza opressiva como pela pestilência e o
calor. O balanço era tão forte que várias vezes teve a impressão de que iam
arrebentar as correias da cama, do convés lhe chegavam gritos doloridos que
pareciam de naufrágio, e os roncos de tigre do pai no beliche contíguo eram um
ingrediente a mais do terror. Pela primeira vez em quase três anos passou uma
noite em claro sem pensar um instante em Florentino Ariza, enquanto que ele
permaneceu insone na rede da loja de trás contando um a um os minutos eternos
que faltavam para que ela voltasse. Ao amanhecer, o vento cessou de súbito e o mar
se tornou plácido, e Fermina Daza percebeu que dormira apesar dos estragos do
enjoo, porque a despertou o estrépito das correntes da âncora. Então se livrou das
correias e olhou pela escotilha na ilusão de descobrir Florentino Ariza no tumulto
do porto, mas o que viu foram os armazéns da alfândega entre as palmeiras
douradas pelos primeiros sóis, e o molhe de barrotes apodrecidos de Riohacha, de
onde a goleta zarpara a noite anterior.
O resto do dia foi como uma alucinação, na mesma casa em que tinha estado até
a véspera, recebendo as mesmas visitas que dela se haviam despedido, falando as
mesmas coisas, e aturdida pela impressão de estar vivendo de novo um pedaço de
vida já vivida. Era uma repetição tão fiel que Fermina Daza estremecia à simples
idéia de que assim também tinha sido com a viagem da goleta, cuja simples
lembrança lhe causava pavor. No entanto, a única alternativa de voltar para casa
eram duas semanas em lombo de mula pelas cornijas da serra, e em condições
ainda mais perigosas que da primeira vez, pois uma nova guerra civil iniciada no
estado andino do Cauca já se ramificava pelas províncias do Caribe. Por isso, às oito
da noite foi acompanhada outra vez até o porto pelo mesmo cortejo de parentes
barulhentos, com as mesmas lágrimas de adeus e os mesmos volumes de pilhas de
presentes de última hora que não cabiam nos camarotes. No momento de zarpar, os
homens da família se despediram da goleta com uma salva de disparos para o ar, e
Lorenzo Daza retribuiu do convés com os cinco tiros do seu revólver. A ansiedade
de Fermina Daza se dissipou em breve, porque o vento foi favorável a noite inteira,
e o mar tinha um cheiro de flores que a ajudou a dormir bem sem as correias de
segurança. Sonhou que tornava a ver Florentino Ariza, e este despiu a cara que ela
sempre tinha visto, porque na realidade era uma máscara, mas a cara real era
idêntica. Levantou-se muito cedo, intrigada pelo enigma do sonho, e encontrou o
pai tomando café com conhaque na cantina do capitão, com o olho torcido pelo
álcool, mas sem o menor indício de preocupação pelo regresso.
Estavam entrando no porto. A goleta deslizava em silêncio pelo labirinto de
veleiros ancorados na enseada do mercado público, cuja pestilência se sentia a
léguas de distância no mar, e a madrugada estava saturada de um chuvisco firme
que em breve despencou num aguaceiro dos grandes. A postos no balcão da
telegrafia, Florentino Ariza reconheceu a goleta quando atravessava a baía das
Animas com as velas desanimadas pela chuva e ancorou diante do embarcadouro do
mercado. Tinha esperado na véspera até as onze da manhã, quando soube por um
telegrama casual do atraso da goleta devido aos ventos contrários, e voltara a
esperar aquele dia desde as quatro da madrugada. Continuou esperando sem
arredar a vista das chalupas que conduziam até a terra os escassos passageiros que
resolviam desembarcar apesar da tempestade. Em sua maioria eles tinham que
abandonar na metade do caminho a chalupa encalhada, e chegavam ao
embarcadouro chapinhando no lodaçal. Às oito, depois de esperar em vão que
estiasse, um carregador negro com água pela cintura recebeu Fermina Daza na
amurada da goleta e a levou nos braços até a margem, mas estava tão ensopada que
Florentino Ariza não conseguiu reconhecê-la.
Ela própria não estava consciente do quanto amadurecera na viagem, até que
entrou na casa fechada e empreendeu de pronto a tarefa heroica de torná-la de novo
habitável, com a ajuda de Gala Placídia, a criada preta, que voltou à sua antiga
senzala logo que lhe avisaram do regresso. Fermina Daza não era mais a filha única,
ao mesmo tempo mimada e tiranizada pelo pai, e sim a dona e senhora de um
império de poeira e teias de aranha que só podia ser recuperado graças à força de
um amor invencível. Não se acovardou, pois sentia em si um sopro de levitação que
lhe daria a força de mover o mundo. Na própria noite da volta, quando tomavam
chocolate com bolinhos de queijo na grande mesa da cozinha, seu pai lhe delegou os
poderes de governo da casa, e o fez com o formalismo de um ato sacramental.
— Entrego a você as chaves da sua própria vida — disse.
continua na página 076...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Florentino Ariza
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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