Julio Cortázar
(1914-1984)
(1914-1984)
Diário de Alina Reyes
12 de janeiro
Na noite aconteceu outra vez, eu tão cansada de
pulseiras e miçangas, de pink champagne e da cara
de Renato de Vifies, oh aquela cara de foca balbuciante, de retrato de Dorian Gray na melhor das hipóteses. Deitei-me com gosto de bombom de menta, de Boogie do Banco Vermelho, de mamãe bocejante e cinzenta (como ela fica quando volta das festas, cinzenta e adormecida, enormíssimo peixe e tão
pouco ela).
E Nora que diz dormir com luz, com barulho, entre os apressados relatórios de sua irmã meio despida. Como são felizes, eu apago as luzes e as mãos,
me dispo aos gritos do lufa-lufa diário, quero dormir
e sou um horrível sino ressoando, uma onda, a corrente que o Rex arrasta a noite toda sobre as alfenas.
Now I lay me down to sleep ... Tenho que repetir
versos, ou o sistema de buscar palavras com a, depois com a e e, com as cinco vogais, com quatro.
Com duas e uma consoante (asa, olá), com três consoantes e uma vogal (três, gris) e outra vez versos, a
lua desceu à forja com sua armação de nardos, o
menino a olha olha, o menino a está olhando. Com
três e três alternadas, cabala, laguna, animal; Aramis, lufada, reparo.
Assim passo horas: de quatro, de três e duas, e
mais tarde palíndromos. Os fáceis, salta Lenin el
atlas; amigo no gima; os mais difíceis e formosos,
áta-le, demoníaco Cain, o me delata; Anás usó tu
auto, Susana. * Ou os maravilhosos anagramas:
Salvador Dalí, Avida Dollars; Alina Reyes, es Ia
reina y ... Tão belo, este, porque abre um caminho,
porque conclui. Porque a rainha e ...
Não, horrível. Horrível porque abre caminho a
esta que não é a rainha, e que outra vez odeio de noite. A essa que é Alina Reyes, não a rainha do anagrama; que será qualquer coisa, mendiga em Budapeste, frequentadora de prostibulo em Jujuy ou
criada em Quetzaltenango, em qualquer lugar distante e não rainha. Mas Alina Reyes, e, por isso, ontem de noite aconteceu outra vez, senti-la e o ódio.
20 de janeiro
Às vezes sei que tem frio, que sofre, que batem
nela. Posso apenas odiá-la muito, detestar as mãos
que a atiram ao solo e também a ela, a ela ainda mais porque batem nela, porque sou eu e batem nela. Ah,
não me desespera tanto quando estou dormindo ou
corto um vestido ou nas horas em que mamãe recebe e eu sirvo chá à Sra. de Regules ou ao menino
dos Rivas. Então me importa menos, é um pouco
coisa pessoal, eu comigo; sinto-a mais dona do seu
infortúnio, distante e só, mas dona. Que sofra. que
enregele; e eu suporto daqui. e acho que então a
ajudo um pouco. É como fazer ataduras para um
soldado que ainda não foi ferido e senti-lo agradecido, que a gente o está aliviando antes. preventivamente.
Que sofra. Dou um beijo na Sra. de Regules, o
chá ao menino dos Rivas. e me guardo para resistir
por dentro. Digo-me: "Agora estou atravessando
uma ponte gelada. agora a neve entra nos meus sapatos furados." Não é que sinta nada. Sei apenas
que é assim, que em algum lugar atravesso uma
ponte no instante mesmo (mas não sei se é no instante mesmo) em que o menino dos Rivas aceita o
chá e mostra a sua melhor cara de tarado. Eu
aguento bem porque estou só entre essa gente sem
sentido, e não me desespera tanto. Nora ficou como
doida na noite passada, disse: "Ora. que é que você
tem?" Acontecia àquela. a mim tão longe. Alguma
coisa horrível devia ter acontecido a ela. batiam nela
ou se sentia doente e justamente quando Nora ia
cantar Fauré e eu ao piano. olhando-o tão feliz. e
Luis Maria com os cotovelos na cauda que lhe servia de moldura, ele me olhando contente com cara
de cachorrinho, esperando ouvir os arpejos, os dois
tão perto e nos querendo tanto. Assim é pior.
quando conheço alguma coisa nova sobre ela. e logo agora que estou dançando com Luis Maria,
beijando-o ou apenas perto de Luis Maria. Porque a
mim, à distante, não a querem. É a parte que não
querem e como vai me dilacerar por dentro sentir que batem em mim ou a neve entra nos meus sapatos quando Luis Maria dança comigo e sua mão na minha cintura vai subindo como um calor de
meio-dia, um sabor forte de laranja ou bambus chicoteados, e batem nela e é impossível resistir e então preciso dizer a Luis Maria que não estou bem,
que é a umidade, umidade entre essa neve que não
sinto, que não sinto e está entrando nos meus sapatos.
25 de janeiro
Claro, Nora veio me ver e houve uma cena. "Filhinha, é a última vez que lhe peço que me acompanhe
ao piano. Fizemos um papelão." Que sabia eu de
papelões, acompanhei-a como pude, me lembro que
a ouvia em surdina. Vatre âme est un paysage chaisi ... Mas olhava minhas mãos entre as teclas e parecia que tocavam bem, acompanhavam Nora honestamente. Luis Maria também olhou minhas mãos, o
pobrezinho, eu acho que era porque não se animava a olhar meu rosto. Devo ficar tão estranha.
Pobre Norinha, que outra a acompanhe. (Isto parece cada vez mais um castigo, agora só me conheço
lá quando vou ser feliz, quando sou feliz, quando
Nora canta Fauré eu me conheço lá e não resta senão o ódio.)Noite
As vezes é ternura, uma súbita e necessária ternura para com aquela que não é rainha e anda por aí. Gostaria de lhe mandar um telegrama, lembranças, saber que seus filhos estão bem ou que não tem filhos - porque eu acredito que lá não tenho filhos - e necessita consolo, compaixão, caramelos. Na noite passada adormeci urdindo telegramas, pontos de encontro. Chegarei quinta-feira pt. Espere-me ponte. Que ponte? Ideia que volta como volta Budapeste, acreditar na mendiga de Budapeste, onde haverá tanta ponte e neve que goteja. Então me endireitei rígida na cama e quase uivo, quase corro a acordar mamãe, a insistir para que acordasse. Tudo isso só por pensar. Ainda não é fácil dizê-lo. Tudo isso só por pensar que eu poderia ir agora mesmo a Budapeste, se realmente eu o quisesse. Ou a Jujuy, ou a Quetzaltenango. (Busquei estes nomes páginas atrás.) Não resolvem, seria igual dizer Três Arroios, Kobe, Florida nº 400. Só resta Budapeste porque ali é o frio, ali batem em mim e me afrontam. Ali (eu sonhei, não é mais que um sonho, mas como adere e se insinua até a vigília) há alguém que se chama Rod - ou Erod, ou Rodo - e ele bate em mim e eu o amo, não sei se o amo mas me deixo bater, isso volta todo o dia, então é certo que o amo.
As vezes é ternura, uma súbita e necessária ternura para com aquela que não é rainha e anda por aí. Gostaria de lhe mandar um telegrama, lembranças, saber que seus filhos estão bem ou que não tem filhos - porque eu acredito que lá não tenho filhos - e necessita consolo, compaixão, caramelos. Na noite passada adormeci urdindo telegramas, pontos de encontro. Chegarei quinta-feira pt. Espere-me ponte. Que ponte? Ideia que volta como volta Budapeste, acreditar na mendiga de Budapeste, onde haverá tanta ponte e neve que goteja. Então me endireitei rígida na cama e quase uivo, quase corro a acordar mamãe, a insistir para que acordasse. Tudo isso só por pensar. Ainda não é fácil dizê-lo. Tudo isso só por pensar que eu poderia ir agora mesmo a Budapeste, se realmente eu o quisesse. Ou a Jujuy, ou a Quetzaltenango. (Busquei estes nomes páginas atrás.) Não resolvem, seria igual dizer Três Arroios, Kobe, Florida nº 400. Só resta Budapeste porque ali é o frio, ali batem em mim e me afrontam. Ali (eu sonhei, não é mais que um sonho, mas como adere e se insinua até a vigília) há alguém que se chama Rod - ou Erod, ou Rodo - e ele bate em mim e eu o amo, não sei se o amo mas me deixo bater, isso volta todo o dia, então é certo que o amo.
Mais Tarde
Mentira. Sonhei Rod ou o fiz com uma imagem
qualquer de sonho, já usada e tão simples. Não há Rod, hão de me castigar lá, mas quem sabe se é um
homem, uma mãe furiosa, uma solidão.
Ir para me buscar. Dizer a Luis Maria: "Vamos
nos casar, me leva a Budapeste, a uma ponte onde
há neve e alguém." Eu digo: e se estou lá? (Porque
eu penso em tudo com a secreta vantagem de não
querer acreditar a fundo. E se estou lá?) Bem, se estou ... Mas só louca, só ... Que lua-de-mel!
28 de janeiro
28 de janeiro
Pensei uma coisa curiosa. Faz três dias que não
chega nada da distante. Talvez agora não batam nela, ou terá conseguido proteção. Mandar-lhe um telegrama, umas meias ... Pensei uma coisa curiosa.
Chegava à horrível cidade e era de tarde, tarde esverdeada e aquosa como não são nunca as tardes se
a gente não as ajuda imaginando. Pelo lado da Dobrina Stana, na Perspectiva Skorda, cavalos eriçados de estalagmites e esbirros rígidos, pães fumegantes e flocos de vento ensoberbecendo as janelas.
Andar pela Dobrina com passo de turista, o mapa
no bolsinho do meu vestido azul (com esse frio e fui
deixar o casaco de pele no Burglos), até uma praça
junto ao rio, quase em cima do rio trovejante de gelos quebrados e barcaças e algum martim-pescador
que lá se chamará sbunáia tjéno ou algo pior.
Depois da praça imaginei que vinha a ponte. Pensei e não quis continuar. Era a tarde do concerto de
Eisa Piaggio de Tarelli no Odeón, me vesti sem vontade adivinhando que depois a insônia estaria me
esperando. Este pensar de noite, tão de noite ...
Quem sabe se não me perderia. A gente inventa
nomes ao viajar pensando, recorda-os num instante: Dobrina Stana, sbunáia tjéno, Burglos. Mas não sei
o nome da praça, é um pouco como se de verdade tivesse chegado a uma praça de Budapeste e estivesse
perdida por não saber o seu nome; ali onde um nome
é uma praça.
Já vou, mamãe. Chegaremos a tempo a seu Bach
e a seu Brahms. É um caminho tão simples. Sem
praça, sem Burglos. Nós aqui, Eisa Piaggio lá. Que
tristeza ter me interrompido, saber que estou em
uma praça (mas isto não é mais verdade, só, o penso
e isso é menos que nada). E que no fim da praça começa a ponte.
continua na página 20...
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Você também pode ler:
Sarau... Distante (b) - (Julio Cortázar)
Sarau... Distante (a) - (Julio Cortázar)
*Mantidos no original, para preservar a possibilidade de leitura da direita para a esquerda. (N. do T.)
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