O Amor nos Tempos de Cólera
Gabriel García Márquez
continuando... O mais curioso, contudo, não tinha acontecido ainda. Aproveitando a visita do
conhecido pianista Romeo Lussich, que tocou um ciclo de sonatas de Mozart logo
que a cidade se refez do luto do general Ignacio Maria, o doutor Juvenal Urbino fez
subir o piano da Escola de Música numa carreta de mulas, e levou até Fermina Daza
uma serenata que marcou época. Ela acordou com os primeiros compassos e não
teve que assomar aos rendilhados do balcão para saber quem era o promotor
daquela homenagem insólita. Só lamentou não ter a coragem de outras donzelas
geniosas que tinham esvaziado o urinol na cabeça do pretendente indesejável.
Lorenzo Daza, em compensação, vestiu-se às carreiras no transcurso da serenata, e
no fim fez entrar na sala de visitas o doutor Juvenal Urbino e o pianista, ainda
enfarpelados no traje de rigor do concerto, e agradeceu-lhes a serenata com um
copo de bom conhaque.
Fermina Daza percebeu em breve que o pai estava procurando amolecer seu
coração. No dia seguinte da serenata tinha dito, de modo casual: "Imagine só como
se sentiria sua mãe se soubesse que você é requestada por um Urbino de Ia Calle."
Ela replicou com secura: "Morreria de novo dentro do caixão." As amigas que
pintavam com ela lhe contaram que Lorenzo Daza tinha sido convidado a almoçar
no Clube Social pelo doutor Juvenal Urbino, e que este tinha sido objeto de uma
notificação severa por contrariar normas do regulamento. Só então ficou sabendo
também que o pai tentara várias vezes tornar-se membro do Clube Social, e em
todas tinha sido barrado com uma quantidade de bolas pretas que não
possibilitavam qualquer tentativa nova. Mas Lorenzo Daza absorvia humilhações
com um fígado de bom bebedor, e continuou dando tratos à bola para se encontrar
por acaso com Juvenal Urbino, sem perceber que era Juvenal Urbino quem fazia
mais do que o possível para se deixar encontrar. Às vezes passavam horas
conversando no escritório, enquanto a casa permanecia como que suspensa à
margem do tempo, porque Fermina Daza não permitia que nada seguisse seu curso
na vida enquanto ele não fosse embora. O Café da Paróquia foi um bom porto
intermediário. Ali Lorenzo Daza deu a Juvenal Urbino lições primárias de xadrez, e
ele foi um aluno tão aplicado que o xadrez se converteu num vicio incurável que o
perseguiu até o dia de sua morte.
Uma noite, pouco tempo depois da serenata de piano, Lorenzo Daza encontrou
uma carta com o envelope lacrado no saguão da casa, dirigido à sua filha e com o
monograma de J.U.C. impresso no lacre. Deslizou-a por baixo da porta ao passar
diante do quarto de Fermina, e ela não entendeu como chegara até ali, pois lhe
parecia inconcebível que o pai tivesse mudado ao ponto de lhe levar carta de um
pretendente. Deixou-a em cima da mesa de cabeceira, sem saber de fato que fazer
com ela, e ali permaneceu fechada durante vários dias, até uma tarde de chuva em
que Fermina Daza sonhou que Juvenal Urbino tinha reaparecido para presenteá-la
com a espátula com que lhe examinara a garganta. A espátula do sonho não era de
alumínio e sim de um metal apetitoso que ela havia saboreado com deleite em
outros sonhos, de modo que quebrou em duas partes desiguais, dando a ele a
menor.
Ao acordar abriu a carta. Era breve e pulcra, e a única coisa que Juvenal Urbino
lhe suplicava era que lhe permitisse pedir ao pai permissão para visitá-la.
Impressionaram-na sua simplicidade e sua seriedade, e a raiva cultivada com tanto
amor durante tantos dias se apaziguou de pronto. Guardou a carta num cofre fora
de uso no fundo do baú, mas lembrou que ali guardara as cartas perfumadas de
Florentino Ariza, e tirou-a do cofre para trocá-la de lugar, abalada por um sopro de
vergonha. Achou então que o mais decente era dá-la como não recebida, e queimou
a na candeia, vendo como as gotas de lacre arrebentavam em borbulhas azuis sobre
a chama. Suspirou: "Pobre homem." Reparou logo que era a segunda vez que dizia
isso em pouco mais de um ano, e por um instante pensou em Florentino Ariza, e se
surpreendeu ao ver como ele estava longe de sua vida: pobre homem.
Em outubro, com as últimas chuvas, chegaram três cartas mais, acompanhada a
primeira de uma caixinha de pastilhas de violeta da Abadia de Flavigny. Duas
tinham sido entregues no portão da casa pelo cocheiro do doutor Juvenal Urbino, e
este cumprimentara Gala Placídia da janela do carro, primeiro para que não
houvesse dúvida de que as cartas eram suas, e segundo para que ninguém pudesse
lhe dizer que não tinham sido recebidas. Além disso, ambas estavam seladas com o
sinete do monograma no lacre, e escritas com as garatujas crípticas que Fermina
Daza já conhecia: letra de médico. Ambas diziam em substância o mesmo que a
primeira, e estavam concebidas com o mesmo espírito de submissão, mas no fundo
de sua decência começava a se vislumbrar uma ansiedade que nunca fora evidente
nas cartas circunspectas de Florentino Ariza. Fermina Daza as leu logo que foram
entregues, com duas semanas de intervalo, e sem explicá-lo a si mesma mudou de
opinião quando estava a ponto de atirá-las ao fogo. Mas nem por isso pensou em
respondê-las.
A terceira carta de outubro tinha sido introduzida por baixo do portão, e era em
tudo diferente das anteriores. A escrita era tão pueril que sem dúvida tinha sido
feita com a mão esquerda, mas Fermina Daza só se deu conta disso quando o
próprio texto provou seu anonimato infame. Quem a escrevera dava como fato que
Fermina Daza tinha encantado com seus filtros o doutor Juvenal Urbino, e dessa
suposição tirava conclusões sinistras. Acabava com uma ameaça: se Fermina Daza
não renunciasse à sua pretensão de se apropriar do homem mais cobiçado da
cidade, seria exposta à vergonha pública.
Sentiu-se vítima de uma injustiça grave, mas sua reação não foi vingativa e sim o
oposto: teria gostado de descobrir o autor da carta anônima para provar-lhe o erro
com quantas explicações fossem pertinentes, pois estava certa de que nunca, por
motivo nenhum, seria sensível aos galanteios de Juvenal Urbino. Nos dias
seguintes recebeu mais duas cartas sem assinatura, tão pérfidas quanto a primeira,
mas nenhuma das três parecia escrita pela mesma pessoa. Ou bem era vítima de
uma conjura, ou a falsa versão dos seus amores secretos tinha ido mais longe do
que se poderia supor. Inquietava-se com a ideia de que tudo aquilo fosse
consequência de uma simples indiscrição de Juvenal Urbino. Ocorreu-lhe que
talvez fosse homem diferente da sua aparência digna, que talvez desse com a língua
nos dentes durante suas visitas e fizesse alarde de conquistas imaginárias, como
tantos outros de sua classe. Pensou em escrever a ele para censurar o ultraje que
fazia à sua honra, mas desistiu depois, achando que talvez fosse isso que ele queria.
Procurou informar-se com as amigas que iam pintar com ela no quarto de costura,
mas a única coisa que tinham ouvido eram comentários benignos sobre a serenata
de piano. Sentiu-se furiosa, impotente, humilhada. Ao contrário da sua reação
inicial, quando teria gostado de encontrar o inimigo invisível para convencê-lo de
seus erros, agora gostaria de fazê-lo em pedaços com a tesoura de podar. Passava as
noites em claro, analisando detalhes e expressões das cartas anônimas, na ilusão de
encontrar o consolo de uma pista. Ilusão vã: Fermina Daza era alheia por natureza
ao mundo interior dos Urbino de Ia Calle, e tinha armas para se defender de suas
boas intenções, mas não das más.
Esta convicção se tornou ainda mais amarga depois do pavor da boneca preta
que chegou às suas mãos naqueles dias sem nenhuma carta, mas cuja origem lhe
pareceu fácil de imaginar: só o doutor Juvenal Urbino podia tê-la mandado. Tinha
sido comprada na Martinica, de acordo com a etiqueta original, e trazia um vestido
primoroso e fios de ouro no cabelo crespo, e fechava os olhos quando a deitavam.
Pareceu a Fermina Daza tão divertida que dominou os escrúpulos e a deitava em
seu próprio travesseiro durante o dia. Acostumou-se a dormir com ela. Passado
algum tempo, porém, depois de um sono sem repouso, descobriu que a boneca
estava crescendo: a linda roupa original que vestia ao chegar agora lhe deixava as
coxas à mostra, e seus sapatos tinham arrebentado com a pressão dos pés. Fermina
Daza ouvira falar de malefícios africanos, mas nenhum tão pavoroso como esse. Por
outro lado, não podia conceber que um homem como Juvenal Urbino fosse capaz de
semelhante atrocidade. Tinha razão: a boneca não tinha sido levada pelo cocheiro e
sim por um vendedor ocasional de camarão, sobre quem ninguém conseguira dar
uma informação certa. Procurando decifrar o enigma, Fermina Daza pensou por um
momento em Florentino Ariza, cuja condição sombria a assustava, mas a vida se
encarregou de convencê-la do erro. Nunca se esclareceu o mistério e sua simples
evocação lhe dava um arrepio de pavor até muito depois de se haver casado, tido
filhos e de se acreditar a eleita do destino: a mais feliz.
A última tentativa do doutor Urbino foi a mediação da irmã Franca de Ia Luz,
superiora do Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, que não podia se
esquivar aos apelos de uma família que favorecera sua comunidade desde seu
estabelecimento nas Américas. Apareceu acompanhada de uma noviça às nove da
manhã, e ambas precisaram se entreter com as gaiolas de pássaros enquanto
Fermina Daza acabava de tomar banho. Era uma alemã viril, de timbre de voz
metálico e olhar imperioso que não tinham relação nenhuma com suas paixões
pueris. Não havia nada neste mundo que Fermina Daza odiasse mais do que ela, ou
qualquer coisa a ver com ela, e a simples lembrança de sua falsa piedade lhe dava
uma comichão de escorpiões nas entranhas. Bastou reconhecê-la da porta do
banheiro para viver de novo de chofre os suplícios do colégio, o sono insuportável
da missa diária, o terror dos exames, a diligência servil das noviças, a vida inteira
pervertida pelo prisma da pobreza de espírito. A irmã Franca de Ia Luz, em
compensação, cumprimentou-a com um júbilo que parecia sincero. Espantou-se de
vê-la tão crescida e amadurecida, e elogiou a competência com que mantinha a casa,
o bom gosto do pátio, as árvores floridas. Mandou a noviça esperá-la ali, sem se
aproximar demais dos corvos, que num momento de descuido podiam lhe arrancar
os olhos, e procurou um lugar afastado onde pudesse se sentar e conversar a sós
com Fermina, que a convidou à sala.
Foi uma visita breve e áspera. A irmã Franca de Ia Luz, sem perder tempo com
preâmbulos, ofereceu a Fermina Daza uma reabilitação honrosa. O motivo da
expulsão seria apagado não só das atas como da memória da comunidade, o que lhe
permitiria terminar os estudos e obter o diploma de Bacharel em Letras. Fermina
Daza, perplexa, quis saber a razão.
— É a petição de alguém que merece tudo, e cujo único desejo é fazer você feliz
— disse a freira. — Sabe quem é?
Então compreendeu. Perguntou a si mesma com que autoridade servia de
emissária do amor uma mulher que lhe havia prejudicado a vida por causa de uma
carta inocente, mas não se atreveu a falar assim. Disse, em resposta, que sim, que
conhecia esse homem, e que ele não tinha o menor direito de se imiscuir em sua
vida.
— A única coisa que implora é que você lhe permita que venha conversar cinco
minutos — disse a freira. — Tenho certeza de que seu pai estará de acordo.
A raiva de Fermina Daza ficou mais intensa com a ideia de que o pai fosse
cúmplice daquela visita.
— Nós nos vimos duas vezes quando estive doente — disse. — Agora não há
nenhuma razão.
— Para qualquer mulher com dois dedos de juízo esse homem é um presente da
Divina Providência — disse a freira.
Continuou falando de suas virtudes, de sua devoção, de sua consagração ao
serviço dos aflitos. Enquanto falava tirou da manga um rosário de ouro com o
Cristo talhado em marfim, e o moveu diante dos olhos de Fermina Daza. Era uma
relíquia de família, antiga de mais de cem anos, talhada por um ourives de Siena e
benta por Clemente IV.
— É seu — disse.
Fermina Daza sentiu a torrente do sangue que rugia em suas veias e então se
atreveu.
— Não consigo entender como a senhora se presta a isso — disse — se na sua
opinião o amor é pecado.
A irmã Franca de La Luz não deu mostras de ter ouvido, mas suas pálpebras se
incendiaram. Continuou balançando o rosário diante dos seus olhos.
— É melhor você se entender comigo — disse — por- que depois de mim vem o
senhor arcebispo, e com ele as coisas são diferentes.
— Que venha — disse Fermina Daza.
A irmã Franca de Ia Luz escondeu o terço de ouro na manga. Depois tirou da
outra um lenço muito usado, feito uma bola, e o manteve apertado no punho,
olhando Fermina de muito longe com um sorriso de comiseração.
— Pobre filha minha — suspirou — você ainda continua pensando naquele
homem.
Fermina Daza ruminou a impertinência olhando a freira sem pestanejar, olhou-a
bem nos olhos, sem falar, ruminando em silêncio, até ver com infinito prazer que
seus olhos de homem se anuviaram de lágrimas. Irmã Franca de Ia Luz as enxugou
com a bola do lenço e se pôs de pé.
— Tem razão seu pai quando diz que você é uma mula — disse.
continua na página 097...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: O mais curioso
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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