Machado de Assis
Conto
PONTO DE VISTA
Capítulo VI
À MESMA
Corte, 27 de novembro
A sua carta chegou quando estávamos almoçando, e foi bom tê-la lido depois, porque se a leio antes não acabava de almoçar. Que história é essa, e quem lhe meteu na cabeça semelhante coisa? Eu, namorada do Alberto! Isso é caçoada de mau gosto, Luísa! Se alguém lhe mandou dizer tal, teve certamente intenção de me envergonhar. Se você o conhecesse, não era necessário este meu protesto. Já lhe disse as boas qualidades dele, mas os seus defeitos são para mim superiores às qualidades. Você bem sabe como eu sou; para mim a menor nódoa destrói a maior alvura. Uma estátua... estátua é o termo próprio, porque o tal Alberto tem certa rigidez escultural.
Ah! Luísa, o homem que o céu me destina ainda não veio. Sei que não
veio porque ainda não senti dentro de mim aquele estremecimento
simpático que indica a harmonia de duas almas. Quando ele vier, fique
certa de que será a primeira a quem eu confiarei tudo.
Dir-me-á que, se eu sou assim fatalista, devo admitir a possibilidade de
um marido sem todas as condições que exijo.
Engano.
Deus que me fez assim, e me deu esta percepção íntima para conhecer e
amar a superioridade, Deus me há de deparar uma criatura digna de
mim.
E agora que me expliquei deixe-me ralhar-lhe um pouco. Por que motivo
dá tão facilmente ouvidos a uma calúnia contra mim? Você que me
conhece há tanto devia ser a primeira a pôr de quarentena esses ditos
sem senso comum. Por que o não faz?
Gastou você duas páginas para defender a Mariquinhas. Eu não a acuso;
deploro-a. Pode ser que o noivo venha a ser um excelente marido, mas
não creio que esteja na altura dela. E é neste sentido que eu a deploro.
A nossa divergência tem natural explicação. Eu sou uma moça solteira,
cheia de caraminholas, sonhos, ambições e poesia; você é já uma dona
de casa, esposa tranquila e feliz, mãe de família dentro de pouco tempo;
vê a coisa por outro prisma.
Será isto?
Parece que a companhia lírica não vem. A cidade está hoje muito alegre;
andam bandas de música nas ruas; chegaram boas notícias do Paraguai.
Naturalmente sairemos hoje; não tem saudades de cá?
Adeus.
Lembranças de todos a seu marido.
RAQUEL
continua na página 94...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Ponto de vista (VI)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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