sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Inferno da Fraqueza (XXXIII)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXXIII

O INFERNO DA FRAQUEZA


Ao talhar esse diamante, um lapidário inábil tirou-lhe alguns de seus mais 
vivos brilhos. Na Idade Média, que digo? ainda no tempo de Richelieu, o 
francês tinha a força de querer.

MIRABEAU


       JULIEN ENCONTROU O MARQUÊS FURIOSO: pela primeira vez na vida, talvez, esse senhor perdeu a compostura: despejou sobre Julien todas as injúrias que lhe vieram à boca. Nosso herói ficou aturdido, exasperado, mas seu reconhecimento não foi abalado com isso. Quanto belos projetos há muito acalentados no fundo de seu pensamento o pobre homem vê desabar num instante! Mas tenho obrigação de responder-lhe, meu silêncio aumentaria sua cólera. A resposta foi fornecida pelo papel de Tartufo.

Não sou um anjo... Servi-o bem, o senhor pagou-me com generosidade... Sou grato, mas tenho vinte e dois anos... Nesta casa, meu pensamento só era compreendido pelo senhor e por essa pessoa amável... 

– Monstro!, exclamou o marquês. Amável! Amável! No dia em que a descobriu amável, devia ter fugido.

– Tentei; foi quando lhe pedi para partir para o Languedoc.

      Cansado de andar furioso de um lado para o outro, o marquês, vencido pela dor, lançou-se numa poltrona; Julien ouviu-o dizer-se a meia voz: – Não é um homem mau.

– Não, não o sou para o senhor, exclamou Julien, caindo de joelhos. Mas ele sentiu uma vergonha extrema desse movimento e levantou-se depressa.

     O marquês estava realmente fora de si. Ao ver esse movimento, recomeçou a despejar injúrias atrozes e dignas de um cocheiro de fiacre. A novidade desses palavrões talvez fosse uma distração.

– Quê! Minha filha chamar-se sra. Sorel! Quê! Minha filha não será duquesa! Sempre que essas duas ideias apresentavam-se nitidamente, o sr. de La Mole sentia-se torturado e os movimentos de sua alma não eram mais voluntários. Julien receou ser espancado.

      Nos intervalos lúcidos, e quando o marquês começava a acostumar-se ao seu infortúnio, ele fazia a Julien recriminações bastante razoáveis:

– Devia ter fugido, senhor... Seu dever era fugir... Portou-se como o último dos homens...

     Julien aproximou-se da mesa e escreveu:

Há muito a vida me é insuportável, ponho um fim a ela. Rogo ao sr. marquês aceitar, com a expressão de um reconhecimento sem limites, minhas desculpas pelo embaraço que minha morte em sua mansão pode causar.”  

– Que o sr. marquês digne-se percorrer este papel... Mate-me, disse Julien, ou mande matar-me por seu mordomo. É uma hora da madrugada, estarei no jardim junto ao muro do fundo.

– Vá para o diabo, gritou-lhe o marquês quando ele se retirava.

      Compreendo, pensou Julien; ele bem que gostaria de poupar a seu mordomo o trabalho de matar-me... Então que me mate, é uma satisfação que lhe ofereço... Mas, meu Deus, amo a vida!... Devo viver por meu filho.
      Essa ideia, que pela primeira vez apresentava-se claramente à sua imaginação, ocupou-o inteiramente depois dos primeiros minutos entregues ao sentimento do perigo.
     Esse interesse novo fez dele um homem prudente. Preciso de conselhos para conduzir-me com esse homem impetuoso... Ele perdeu a razão, é capaz de tudo. Fouqué está muito distante, aliás não compreenderia os sentimentos de um coração como o do marquês.
     O conde Altamira... Terei certeza de seu silêncio eterno? Meu pedido de conselhos não deve ser uma ação que complique minha situação. Ai! Só me resta o sombrio abade Pirard, com seu espírito jansenista estreito... Um jesuíta velhaco conheceria a sociedade e me seria mais útil... O sr. Pirard é capaz de bater-me ao simples enunciado do crime.
      O gênio de Tartufo veio em socorro de Julien: Pois bem, irei confessar-me a ele. Foi a última resolução que tomou depois de duas horas de passeio no jardim. Ele não pensava mais que pudesse ser surpreendido por um tiro de fuzil, o sono o dominava.
     Na manhã seguinte, bem cedo, Julien estava a várias léguas de Paris, batendo à porta do severo jansenista. Para seu grande espanto, viu que ele não se surpreendera demais com a confidência.

– Tenho recriminações a fazer-me, dizia o abade, mais preocupado que irritado. Eu suspeitava esse amor. Minha amizade por você, pobre infeliz, impediu-me de advertir o pai...

– O que ele irá fazer?, perguntou vivamente Julien.

 (Ele amava o abade neste momento, e uma cena lhe teria sido muito penosa.)

– Vejo três saídas, continuou Julien: 1o ) O sr. de La Mole pode fazer que me matem; e mencionou a carta de suicida que entregara ao marquês; 2o Norbert, que me desafiaria para um duelo.

– Você aceitaria?, disse o abade, furioso e levantando-se.

– Não me deixou terminar. Certamente eu jamais dispararia contra o filho do meu benfeitor. 3o) Ele pode afastar-me. Se me disser: vá para Edimburgo, para Nova York, obedecerei. Então poderão dissimular a situação da srta. de La Mole; mas não consentirei que suprimam meu filho.

– Será essa, não duvide, a primeira ideia daquele homem corrupto...

     Em Paris, Mathilde estava desesperada. Tinha visto o pai por volta das sete horas. Ele mostrara-lhe a carta de Julien, ela temia que ele julgasse nobre pôr fim à vida: e sem minha permissão?, pensava, com uma dor que era de cólera.

– Se ele morreu, morrerei, ela disse ao pai. O senhor terá sido a causa da morte dele... Talvez se alegre com isso... Mas juro a seus manes: vestirei luto e serei publicamente a sra. viúva Sorel, enviarei minhas participações de falecimento, pode estar certo... O senhor não me verá pusilânime nem covarde.

      Seu amor chegava quase à loucura. O sr. de La Mole, por sua vez, ficou confuso. Começava a ver os acontecimentos com algum discernimento. No almoço, Mathilde não apareceu. O marquês sentiu-se livre de um peso imenso, e sobretudo lisonjeado, quando notou que ela nada dissera à mãe.
      Julien descia do cavalo. Mathilde mandou chamá-lo e lançou-se em seus braços quase à vista da camareira. Julien não ficou muito agradecido por esse gesto, ele voltava muito diplomata e muito calculista de sua longa conferência com o abade Pirard. Sua imaginação fora apagada pelo cálculo dos possíveis. Mathilde, com lágrimas nos olhos, disse-lhe que vira sua carta de suicida.

– Meu pai pode mudar de ideia; por favor, parte agora mesmo para Villequier. Monta a cavalo de novo, sai da mansão antes que se levantem da mesa.

      Como Julien não abandonasse o ar espantado e frio, ela teve um acesso de lágrimas.

– Deixa-me cuidar de nossa situação, ela exclamou com arrebatamento, estreitando-o nos braços. Bem sabes que não é voluntariamente que me separo de ti. Escreve-me sob o nome de minha camareira, que outra mão escreva o endereço, eu te responderei com volumes. Adeus! Foge.

     Essa última palavra feriu Julien, mas ele obedeceu. É fatal, pensava; mesmo em seus melhores momentos, essa gente encontra um meio de me chocar.
      Mathilde resistiu com firmeza a todos os projetos prudentes do pai. Não quis jamais estabelecer negociações noutras bases senão estas: ela seria a sra. Sorel e viveria pobremente com o marido na Suíça, ou na casa do pai, em Paris. Repeliu totalmente a proposta de um parto clandestino.

– Então é que haveria para mim a possibilidade de calúnia e desonra. Dois meses depois do casamento, viajarei com meu marido, e será fácil fazer supor que meu filho nasceu numa época conveniente.

     Acolhida inicialmente com reações de cólera, essa firmeza acabou por gerar dúvidas no marquês.
     Num momento de enternecimento, ele disse à filha:

– Olha! Aqui está um título de dez mil libras de renda, envia-o a teu Julien, e que ele me ponha logo na impossibilidade de tomá-lo de volta.

     Para obedecer a Mathilde, de quem conhecia o amor pelo comando, Julien fizera quarenta léguas inúteis. Estava em Villequier, acertando as contas dos colonos; o benefício do marquês foi um motivo para seu regresso. Foi pedir asilo ao abade Pirard que, na sua ausência, tornara-se o aliado mais útil de Mathilde. Toda vez que era interrogado pelo marquês, ele provava-lhe que qualquer outra decisão que não o casamento público seria um crime aos olhos de Deus.

– E, por felicidade, acrescentava o abade, a sabedoria da sociedade está nesse ponto de acordo com a religião. Conhecido o caráter impetuoso da srta. de La Mole, pode-se contar com um segredo que ela não irá impor-se a si mesma? Se não for tomado o caminho franco do casamento público, a sociedade se ocupará por muito mais tempo desse caso entre pessoas desiguais. É preciso dizer tudo de uma vez, sem fingir e sem fazer o menor mistério.

– É verdade, disse o marquês, pensativo. Nesse sistema, falar de tal casamento por mais de três dias só será um assunto para quem não tem ideias. Teríamos que aproveitar uma importante medida antijacobina do governo para passarmos incógnitos depois.

     Dois ou três amigos do sr. de La Mole pensavam como o abade Pirard. O grande obstáculo, para eles, era o caráter decidido de Mathilde. Mas, apesar de todos esses belos raciocínios, a alma do marquês não podia acostumar-se a renunciar à esperança do banquinho [1] para sua filha.
      Sua memória e sua imaginação estavam repletas das libertinagens e das falsidades de todo tipo que ainda eram possíveis em sua juventude. Ceder à necessidade, ter medo da lei parecia lhe uma coisa absurda e desonrosa para um homem da sua condição. Ele pagava caro, agora, os sonhos fascinantes que há dez anos alimentava sobre o futuro daquela filha querida.
     Quem teria podido prever?, pensava. Uma moça de um caráter tão altivo, de um gênio tão elevado, mais orgulhosa que eu do nome que possui! Cuja mão me era pedida por tudo o que há de mais ilustre na França!
     Há que renunciar a toda prudência. Este século está destinado a confundir tudo. Marchamos para o caos!

continua página 306...

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[1] Tabouret, no original. Assento nos aposentos reais reservados à alta nobreza. (N.T. )
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: O Inferno da Fraqueza (XXXIII)

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