Clarice nos deixa sem palavras neste texto visceral, profundo e complexo sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir
conto um Conto
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.
O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na
garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de
ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo
seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu
adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas,
interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
- Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão
estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto
do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria
um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera
de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De
noite, antes de dormir, ele me irritava. Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não
quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em glória
de martírio, a acidez insuportável da begônia quando é esmagada entre os dentes; e roía as unhas,
exultante. De manhã, ao atravessar os portões da escola, pura como ia com meu café com leite e a
cara lavada, era um choque deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por
um abismal minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em
profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De manhã - como se eu não tivesse
contado com a existência real daquele que desencadeara meus negros sonhos de amor - de
manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, em choque eu era jogada na vergonha, na
perplexidade e na assustadora esperança. A esperança era o meu pecado maior. Cada dia
renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação daquele homem. Eu queria o seu
bem, e em resposta ele me odiava. Contundida, eu me tornara o seu demônio e tormento,
símbolo do inferno que devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de desinteressados.
Tornara-se um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo,» como sempre, me fascinava.
Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os ruins já
nascem - aqueles ruins que roem as unhas de espanto -, sem saber que obedecia a uma das coisas
que mais acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja
isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo
cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era
apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a
seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem
todas posso contar - uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo
despenhadeiro as minhas altas geleiras. Assim, pois, não falarei mais no sorvedouro que havia em
mim enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão eu mesma terminarei pensando que era
apenas essa macia voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha desesperada abnegação.
Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera. Era de se lamentar que tivesse
caído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e
crianças daquele tempo eu era provavelmente a menos indicada. "Essa não é flor que se cheire",
como dizia nossa empregada. Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo terror
do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer. O
professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha com ele
nos seus ermos. Por mais arriscado que fosse o meu lado, eu era obrigada a arrastá-lo para o meu
lado pois o dele era mortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa um grande
pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, não perguntava o que eu queria, e livrava-se de mim
com um safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu único instrumento era a insistência.
E disso tudo ele só percebia que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao
certo o que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu papel era ruim
e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida real que tardava, e, pior que inábil, eu também
tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria o que eu era porque só Ele sabia do que
me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d'Ele. Ser matéria de Deus era a minha
única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas pela matéria
d'Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava a vastidão do que
eu não conhecia e a ela me confiava toda, com segredos de confessionário. Seria para as
escuridões da ignorância que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira
alegre e monstruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe todos nós
éramos igualmente monstruosos e suaves, ávida matéria de Deus.
Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu paletozinho apertado, minhas
gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo a que custo me esquecer, mais contraído
ficasse de tanto autocontrole. A antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu
me detestava. Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza
impossível.
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me tomara demais.
Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre
cambaios, humilhada por não ser uma flor, e sobretudo, torturada por uma infância enorme que
eu temia nunca chegar a um fim - mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minha única
riqueza: os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que
por conta do futuro eu já exercitava sacudindo-os. Estudar eu não estudava, confiava na minha
vadiação sempre bem-sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação
da menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para
estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história
que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza,
refinamento que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam
escolhido, eu perdia horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de
sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a
esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava
permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de
mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o
professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados,
com uma falta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cálculo: as pernas não
combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas - na
minha pressa eu crescia sem saber para onde. O fato de um retrato da época me revelar, ao
contrário, uma menina bem plantada, selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja
pesada, esse retrato real não me desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha que eu
não compreenderia se fosse a sua mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizado em
corpo e sentindo-me fundamentalmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco;
antes, porém, eu não podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar - tomava intuitivo
cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade cultivava a integridade da
ignorância. Foi pena o professor não ter chegado a ver aquilo em que quatro anos depois
inesperadamente eu me tornaria: aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta
e bonitinha, ele me teria visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez
dele, passara embaixo um ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perceber que eu já
não era mais um moleque e sim uma jovem digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas
calçadas de uma cidade. "Que é?", indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como
resposta gritada a notícia de que o professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos
muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de
uma boneca partida.
Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto,
que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo
de outras. Ou foi apenas por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no
parque.
- Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas usando as palavras de
vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.
O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara
muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e
continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não
tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto
começara a vender que terminara ficando muito rico.
Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar
claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contara sem
olhar uma só vez para mim. É que na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu
também o acossava com o olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar
direto, do qual ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem
límpido e angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o
mesmo resultado: com perturbação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me
enchia de um poder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava
me que ele obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio,
alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão
bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas
descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para
pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada,
para moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombra onde as abelhas faziam
mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive,
intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os
troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por
flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel.
Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidas já me chamava.
Apressei-me. Como eu só sabia "usar minhas próprias palavras", escrever era simples.
Apressava-me também o desejo de ser a primeira a atravessar a sala - o professor terminara
por me isolar em quarentena na última carteira - e entregar-lhe insolente a composição,
demonstrando-lhe assim minha rapidez, qualidade que me parecia essencial para se viver e que,
eu tinha certeza, o professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me olhar. Melindrada, sem um
elogio pela minha velocidade, saí pulando para o grande parque.
A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual a que ele contara. Só
que naquela época eu estava começando a "tirar a moral das histórias", o que, se me santificava,
mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescentado as
frases finais. Frases que horas depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a
ponto de enfim ter provocado o homem de um modo como eu própria não conseguira até então.
Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho
árduo era o único modo de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral
oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só
descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi
exatamente isso. Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um
sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbitrariamente
contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio,
mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É
possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse
iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo
me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos
ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a primeira, ciscando
a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a pouco começaram a surgir da sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não me lembro o quê,
para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelha de
uma felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeria uns tapas - voei em direção à sala de
aula, atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cadernos
empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e iniciando outra corrida
de volta - só então meu olhar tropeçou no homem.
Sozinho à cátedra: ele me olhava.
Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava. Meus
passos, de vagarosos, quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da classe, sem a admiração
que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia do rosto. Uma
gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre
mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prende o rabo
do rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca, dividindo ao meio o meu sorriso.
Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a parede de olhos
baixos, prendendo-me toda a meu sorriso, único traço de um rosto que já perdera os contornos.
Nunca havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu
via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram
austeras e altas as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do
qual sorrir fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta - de onde eu correria,
ah como correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. Além de me concentrar no
sorriso, meu zelo minucioso era o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza
íntima de um perigo do qual tudo o mais eu desconhecia. Foi num arrepio que me adivinhei de
repente como um espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta
dos pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala em silêncio, e
mesmo os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora do silêncio. Cheguei
finalmente à porta, e o coração imprudente pôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o
gigantesco mundo que dormia.
Foi quando ouvi meu nome.
De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele sem coragem de me
voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar, contendo
dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.
Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.
E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande
e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena,
sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal liberdade finalmente me levara. Meu
sorriso, tudo o que sobrara de um rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos no chão
e um coração que de tão vazio parecia morrer de sede. Ali fiquei, fora do alcance do homem.
Meu coração morria de sede, sim. Meu coração morria de sede.
Calmo como antes de friamente matar, ele disse:
- Chegue mais perto...
Como é que um homem se vingava?
Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem
por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a
tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte
de compacta tristeza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um
arrependimento estoico manteve ereta a minha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até
então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera
há meses. Eu era o único eu.
- ... Pegue o seu caderno... acrescentou ele.
A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!? O alívio inesperado foi quase
mais chocante que o meu susto anterior. Avancei um passo, estendi a mão gaguejante.
Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me
com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as inúmeras
pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de
um homem. Disfarcei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda estendida
porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com os olhos despenteados
como se tivesse acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada? Ou exigir que eu me
ajoelhasse e pedisse perdão. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu tinha feito,
assim como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.
- Como é que lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
- Que tesouro? - murmurei atoleimada. Ficamos nos fitando em silêncio.
- Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir
qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de
culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essa vida desconhecida.
- O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe disse
isso?
O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita,
sem compreender, e encaminhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto um terreno
menos perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo quando
mancava, e me refiz logo: "foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu erro!"
Fraca, e embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no entanto já me
levantara o bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da antiga arrogância, a
futura cabeleira ondulada:
- Ninguém, ora... respondi mancando. Eu mesma inventei, disse trêmula, mas já
recomeçando a cintilar.
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no
entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de
viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças
novas que eu não compreendia. Aquele olhar que não me desfitava - e sem cólera... Perplexa, e a
troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida. Que é que ele queria
de mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva passara a me importunar mais do que a
brutalidade que eu temera. Um medo pequeno, todo frio e suado, foi me tomando. Devagar,
para ele não perceber, recuei as costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou
até não ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.
E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar,
embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de
chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para
uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara - o mal-estar já petrificado subia
com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta - mas
essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um
sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não
sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque
deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era
tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas
orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi
se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta - que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em
não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado
canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua
barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas costas forçaram
desesperadamente a parede, recuei - era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu
ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é
ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo...
Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo demais
de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque eu era forte. "Mas e
eu?", gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, "quem virá jamais à minha fraqueza!"
Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os
curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
- Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você... ele nada
acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele
fosse o meu coração. Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os olhos, sem poder sustentar o olhar
indefeso daquele homem a quem eu enganara.
Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele de algum modo havia confiado
em mim, e que então eu o enganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu pensava que
tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciência atormentada do pecado me redimia do
vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta
contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me
corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu
não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me
atraía. Eu bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o, desanimei; faltava
me a coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, a de meu pai,
por exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícil engolir a seco essa
alegria que tão irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato
de comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto,
agora tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo
engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo se
transformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.
- Você - repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse admitindo com
encantamento o que lhe viera por acaso à boca - você é uma menina muito engraçada, sabe?
Você é uma doidinha... disse usando outra vez o sorriso como um menino que dorme com os
sapatos novos. Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixava-me ver
a sua feiura, que era a sua parte mais inocente.
Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditar em mim, tive que engolir
a piedade por ele, a vergonha por mim, "tolo!", pudesse eu lhe gritar, "essa história de tesouro
disfarçado foi inventada, é coisa só para menina!" Eu tinha muita consciência de ser uma criança,
o que explicava todos os meus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer - e aquele
homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mim pela primeira
vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acredita como eu nas grandes mentiras...
... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suportei um instante mais - sem
ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado os
dentes. Com a mão na boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda
não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais - eu corria, eu corria muito
espantada.
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A
necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu
fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do
crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e
destruía meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também
era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem
candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência... Com a mão
apertando a boca, eu corria pela poeira do parque.
Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbita do professor, sofreei exausta a
corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no tronco de uma árvore, respirando
alto, respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado
do tronco, os dedos mecanicamente passando e repassando pelo duro entalhe de um coração com
flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele
querendo dizer que... que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro onde menos se espera... Oh
não, não, coitadinho dele, coitado daquele rei da Criação, de tal modo precisara... de quê? de que
precisara ele?... que até eu me transformara em tesouro.
Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a recuperar o
fôlego, e empurrando com raiva o tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim do
mundo.
Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando mais
vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu sucumbia.
Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram passos um
pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma doçura
toda estranha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé,
sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de cansaço
abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe talvez
lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. "Você é uma
menina muito engraçada, você é uma doidinha", dissera ele. Era como um amor.
Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era
doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu
não era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que
se nasce e com que se rói a vida - só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu
curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura
ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitável - que podia eu fazer? eu já sabia que eu era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que
aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a
ninguém - através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem:
tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos
chegavam a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o
impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera,
com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendia eu tudo isso? Não. E
não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com
aterrorizado fascínio o mundo - e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em
um segundo eu vi - assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu
entendo. O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura,
entendido pela minha ignorância.
Ignorância que ali em pé - numa solidão sem dor, não menor que a das árvores - eu
recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade incompreensível. Ali estava eu, a menina esperta
demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em
mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir,
por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera
de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera
arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão
dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te
arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que
te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais,
meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te
servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto,
tanto - uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um
no outro para amar e dormir.
... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada,
suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse
foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu
coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de meu
grito.
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