Machado de Assis
Conto
O RELÓGIO DE OURO
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto
Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.
Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé,
compondo os cabelos diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.
Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um
gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa,
que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a
respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda
a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração
apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível
coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.
Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís
Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera
antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava
ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso
mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros
desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias,
tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o
genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam
tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo
a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se
recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do
alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e afável criatura
que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se
dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e
parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira
nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra — ou poucas dissera, ainda
assim as mais breves e em tom seco.
“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz
mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido.”
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e
cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O
marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a
esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha
não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do
peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser
como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era
que receasse algum grande acontecimento em casa; sua ideia é que sem
arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia
o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na
fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís
Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente.
Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer,
tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou
os ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que
é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me
verão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela
mulher que desatou a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que
lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em
ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia
seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria à casa deles, e
que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar
mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou
atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi
ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma
almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou
lhe numa das mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio;
se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de
adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a
moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros
olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas;
saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a si mesmo Luís Negreiros. “Se não
era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?”
A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de
descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente
refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse
decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou
tudo o que se havia passado desde que chegara à casa. Pesou friamente
todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a
expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação
e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor
dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que
ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e
mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do
fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e
deplorável das hipóteses. Uma ideia má começou a enterrar-se-lhe no
espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou
dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a
ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter
com a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada.
Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava
escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama,
mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou
quando sentiu entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te
pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou
as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu
escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato
estas linhas:
"Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá."
Assim acabou a história do relógio de ouro.
Fim...
continua na página 89...
__________________
Leia também:
Histórias da Meia-Noite: O relógio de ouro (II)
__________________
Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
Nenhum comentário:
Postar um comentário