terça-feira, 3 de setembro de 2024

Gabriel G Márquez - O Amor nos Tempos de Cólera: Até pouco tempo atrás

O Amor nos Tempos de Cólera

Gabriel García Márquez


continuando...

      Até pouco tempo atrás, com efeito, os incêndios eram apagados por voluntários com escadas de pedreiros e baldes d'água abastecidos onde fosse possível, e era tal a desordem dos métodos que os estragos causados eram às vezes maiores que os incêndios. Mas desde o ano anterior, graças a uma coleta promovida pela Sociedade de Melhoramentos Públicos, da qual Juvenal Urbino era presidente honorário, havia um corpo de bombeiros profissional e um caminhão-pipa com sereia e sineta, além de duas mangueiras de alta pressão. Estavam na moda, a tal ponto que os colégios suspendiam as aulas quando os sinos das igrejas tocavam o alarma para que os meninos pudessem vê-los no combate às chamas. De início era só isso que faziam. Mas o doutor Urbino contou às autoridades municipais que em Hamburgo tinha visto os bombeiros ressuscitar um menino que encontraram congelado num porão depois de uma nevada de três dias. Também os havia visto numa viela de Nápoles, baixando dum balcão no décimo andar um defunto em seu ataúde, pois as escadas do edifício eram tão retorcidas que a família não tinha conseguido levá-lo â rua. E aos poucos os bombeiros locais aprenderam a prestar outros serviços de emergência, como forçar fechaduras ou matar cobras venenosas, e a Escola de Medicina lhes ministrou um curso especial de pronto socorro em acidentes menores. De maneira que não era um despropósito pedir-lhes o favor de fazerem descer da árvore um louro ilustre, de tantos méritos quanto qualquer cavaleiro. O doutor Urbino disse: "Digam a eles que é de minha parte." E foi para o quarto vestir-se para o almoço de festa. A verdade é que naquele momento, angustiado com a carta de Jeremiah de Saint-Amour, a sorte do louro não o preocupava. Fermina Daza tinha vestido uma bata de seda, ampla e solta mas descaindo na cintura, tinha posto um colar de pérolas legítimas com seis voltas grandes e desiguais, e uns sapatos de entrada baixa e salto alto que só usava em ocasiões muito solenes, pois os anos já não lhe permitiam tantos abusos. Aquela ostentação de moda não lhe parecia adequada a uma avó venerável, mas assentava muito bem em seu corpo de ossos grandes mas ainda magro e ereto, em suas mãos flexíveis sem qualquer mancha de velhice, em seu cabelo de aço azul, cortado em diagonal à altura da face. A única coisa   que ainda lhe restava do retrato de bodas eram olhos de amêndoas diáfanas e a altivez de nação, mas o que lhe faltava devido à idade era compensado pelo caráter e duplicado pela diligência. Sentia-se bem: longe iam ficando os tempos dos corpinhos de ferro, as cinturas estranguladas, as ancas levantadas com artifícios de trapos. Os corpos libertados, respirando à vontade, se mostravam tal qual eram. Mesmo aos setenta e dois anos.
     O doutor Urbino a encontrou sentada diante da penteadeira, debaixo das aspas lentas do ventilador elétrico, ajeitando o chapéu de sino com um enfeite de violetas de feltro. O quarto era amplo e radiante, com uma cama inglesa protegida por cortinado de filo cor-de-rosa, e duas janelas abertas para as árvores do quintal onde ressoava o alarido das cigarras estonteadas pelos presságios de chuva. Desde a volta da viagem de bodas, Fermina Daza escolhia a roupa do marido de acordo com o tempo e a ocasião, e a colocava em ordem sobre uma cadeira na noite anterior para que ele a encontrasse ao sair do banho. Não lembrava desde quando tinha começado também a ajudá-lo a se vestir, e afinal a vesti-lo, e tinha consciência de que a princípio o fizera por amor, mas desde uns cinco anos atrás tinha que fazê-lo fosse como fosse porque ele já não conseguia se vestir sozinho. Acabavam de celebrar as bodas de ouro matrimoniais, e não sabiam viver um instante sequer um sem o outro, ou sem pensar um no outro, e o sabiam cada vez menos à medida que recrudescia a velhice. Nem ele nem ela podiam dizer se essa servidão recíproca se fundava no amor ou na comodidade, mas nunca se haviam feito a pergunta com a mão no peito, porque ambos tinham sempre preferido ignorar a resposta. Tinha ido descobrindo aos poucos a insegurança dos passos do marido, seus transtornos de humor, as fissuras de sua memória, seu costume recente de soluçar durante o sono, mas não os identificou como os sinais inequívocos do oxido final e sim como uma volta feliz à infância. Por isso não o tratava como a um ancião difícil e sim como a um menino senil, e esse engano foi providencial para ambos porque os pôs a salvo da compaixão.
     Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada. Fermina Daza tinha aguentado com má vontade o jubiloso amanhecer do marido. Agarrava-se aos últimos fios de sono para não enfrentar o fatalismo de uma nova manhã de presságios sinistros, enquanto ele despertava com a inocência de um recém-nascido: cada novo dia era um dia a mais que se ganhava. Ouvia-o despertar com os gaios, e seu primeiro sinal de vida era uma tosse sem som nem tom que parecia de propósito para que ela também despertasse. Ouvia-o resmungar, só para inquietá-la, enquanto tateava em busca dos chinelos que deviam estar junto da cama. Ouvia-o buscar caminho até o banheiro aos tropeços pela escuridão. Ao cabo de uma hora no escritório, quando ela havia dormido de novo, ouvia-o voltar para se vestir, ainda sem acender a luz. Certa vez, num jogo de salão, lhe perguntaram como se definia a si mesmo, e ele tinha dito: "Sou um homem que se veste no escuro." Ela o ouvia sabendo muito bem que nenhum daqueles ruídos era indispensável, e que ele os fazia de propósito fingindo o contrário, assim como estava ela acordada fingindo que não. Os motivos dele eram certos: nunca precisava tanto dela, viva e lúcida, como nesses momentos de confusão.
      Não havia ninguém mais elegante do que ela para dormir, com uma postura de dança e a mão sobre a testa, mas também não havia ninguém mais feroz quando lhe perturbavam a sensação de se crer adormecida quando já não estava. O doutor Urbino sabia que ela permanecia ligada ao menor ruído que ele fizesse, e que inclusive teria agradecido a ele, para ter em quem botar a culpa de acordá-la às cinco da manhã. Tanto era assim que nas poucas ocasiões em que tinha de tatear nas trevas por não encontrar os chinelos no lugar de sempre, ela dizia logo numa voz de quem está entre dois sonhos: "Você deixou os chinelos no banheiro ontem à noite." Em seguida, com a voz desperta de raiva, amaldiçoava:

 — A pior desgraça desta casa é que não se pode dormir.

     Então rolava na cama, acendia a luz sem a menor clemência para consigo mesma, feliz com sua primeira vitória do dia. No fundo era um jogo de ambos, mítico e perverso, mas por isso mesmo reconfortante: um dos muitos prazeres perigosos do amor doméstico. Mas foi por causa de um desses brinquedos triviais que os primeiros trinta anos de vida em comum estiveram a ponto de se acabar porque um certo dia faltou sabonete no banheiro.
     Começou com a simplicidade da rotina. O doutor Juvenal Urbino tinha voltado ao quarto, nos tempos em que ainda tomava banho sem ajuda, e começou a se vestir sem acender a luz. Ela estava como sempre a essa hora em seu morno estado fetal, os olhos fechados, a respiração tênue, e aquele braço de dança sagrada sobre a cabeça. Mas estava meio desperta, como sempre, e ele estava sabendo. Depois de longos rumores de linhos engomados na escuridão, o doutor Urbino falou consigo mesmo:

— Faz uma semana que estou tomando banho sem sabonete — disse.

     Então ela acabou de acordar, lembrou, e rolou de raiva contra o mundo, porque na verdade tinha esquecido de substituir o sabonete no banheiro. Tinha notado a falta três dias antes, quando já estava debaixo do chuveiro, e pensou em boiar o sabonete depois, mas esqueceu o assunto até o dia seguinte. No terceiro dia tinha ocorrido o mesmo. Para dizer a verdade, não tinha se passado uma semana, como ele dizia para lhe agravar a culpa, e sim três dias imperdoáveis, e a fúria de ser apanhada em falta acabou de enraivecê-la. Como de costume, se defendeu atacando.

— Pois tenho tomado banho todo o santo dia — gritou fora de si — e sempre tem havido sabonete.

     Embora ele conhecesse de sobra seus métodos de guerra, desta vez não pôde suportá-los. Foi morar a um pretexto profissional qualquer nos quartos de internos do Hospital da Misericórdia, e só aparecia em casa para trocar de roupa ao entardecer antes das consultas a domicílio. Ela ia para a cozinha quando o ouvia chegar, fingindo qualquer afazer, e ali permanecia até escutar vindos da rua os passos dos cavalos do carro. Cada vez que procuraram resolver a discórdia nos três meses seguintes, só conseguiram atiçá-la. Ele não se dispunha a voltar enquanto ela não admitisse que não havia sabonete no banheiro, e ela não se dispunha a recebê-lo enquanto ele não reconhecesse ter mentido de propósito para atormentá-la.
      É claro que o incidente lhes deu a oportunidade de evocar outros arrufos minúsculos de outras tantas manhãs perturbadas, Uns ressentimentos mexeram em outros, reabriram cicatrizes antigas, transformaram-nas em feridas novas, e ambos se assustaram com a comprovação desoladora de que em tantos anos de luta conjugai não tinham feito mais do que pastorear rancores. Ele chegou a propor que se submetessem juntos a uma confissão aberta, com o senhor arcebispo se fosse preciso, para que Deus decidisse como árbitro final se havia ou não sabonete na saboneteira do banheiro. Então ela, que tão boas estribeiras tinha, perdeu-se num grito histórico:

— Que vá à merda o senhor arcebispo!

      O impropério abalou os alicerces da cidade, deu origem a cochichos que não foi fácil desmentir, e ficou incorporado à fala popular com ares de teatro de revista: "Que vá à merda o senhor arcebispo!" Consciente de que havia ultrapassado os limites, ela se antecipou à reação que esperava do esposo, e ameaçou mudar-se para a antiga casa do pai, que continuava sua embora estivesse alugada para escritórios do serviço público. Não era uma bravata: queria ir embora de verdade, sem se importar com o escândalo social, e o marido o percebeu a tempo. Não teve coragem para enfrentar seus próprios preconceitos: cedeu. Não no sentido de admitir que havia sabonete no banheiro, pois teria sido um insulto à verdade, e sim no de continuarem morando na mesma casa, mas em quartos separados e sem se dirigirem a palavra. Assim faziam as refeições, contornando a situação com tanta habilidade que se mandavam recados pelos filhos de um ao outro lado da mesa sem que estes percebessem que os pais não se falavam.
      Como no escritório não havia banheiro, a fórmula resolveu o conflito dos ruídos matinais, porque ele tomava banho depois de preparar a aula e adotava precauções reais para não acordar a esposa. Muitas vezes coincidiam e se alternavam para escovar os dentes antes de dormir. Ao fim de quatro meses, ele se deitou para ler na cama matrimonial enquanto ela não saía do banho, e pegou no sono. Ela se deitou ao seu lado sem quaisquer precauções, para que ele acordasse e fosse embora. Ele acordou pela metade, com efeito, mas em vez de se levantar apagou a lâmpada da cabeceira e se acomodou no travesseiro. Ela o sacudiu pelo ombro, para lhe lembrar de que devia ir para o escritório, mas ele se sentia tão bem outra vez na cama de penas dos bisavós que preferiu capitular.

 — Me deixa ficar aqui — disse. — Tinha sabonete, sim. Quando recordavam este episódio, já no remanso da velhice, nem ele nem ela podiam acreditar na verdade assombrosa de que aquela altercação tinha sido a mais grave de meio século de vida em comum, e a única que motivou em ambos o desejo de dar um passo em falso, e começar a vida de outra maneira. Mesmo quando já velhos e apaziguados evitavam evocá-la, porque as feridas mal cicatrizadas voltavam a sangrar como se fossem de ontem.

      Ele foi o primeiro homem que Fermina Daza ouviu urinar. Ouviu-o na noite de bodas no camarote do navio que os levava à França, enquanto estava prostrada pelo enjoo, e o barulho do seu manancial de cavalo lhe pareceu tão potente e investido de tanta autoridade que aumentou seu terror pelos estragos que temia. Aquela lembrança voltava com frequência à sua memória, à medida que os anos iam enfraquecendo o manancial, mas nunca pôde se conformar com o fato de que ele deixasse molhada a beira do vaso cada vez que o usava. O doutor Urbino procurava convencê-la, com argumentos fáceis de entender por quem quisesse entendê-los, de que aquele acidente não ocorria todos os dias por descuido seu, como ela insistia, e sim por uma razão orgânica: seu manancial de jovem era tão definido e direto que no colégio tinha ganho torneios de pontaria para encher garrafas, mas com os desgastes da idade não só foi decaindo como se tornou oblíquo, se ramificava, se tornando por fim um jorro de fantasia impossível de dirigir, apesar dos muitos esforços que ele fazia para endereçá-lo. Dizia: "A privada há de ter sido inventada por alguém que não entendia nada de homens." Contribuía para a paz doméstica com um ato cotidiano que era mais de humilhação do que de humildade: secava com papel higiênico as beiras do vaso sempre que o usava. Ela sabia, mas nunca dizia nada enquanto não fossem demasiado evidentes os vapores amoniacais dentro do banheiro, e então os proclamava como o descobrimento de um crime: "Isso está empestado como uma toca de coelhos." Às vésperas da velhice, esse estorvo do corpo inspirou ao doutor Urbino a solução final: urinava sentado, feito ela, o que deixava o vaso limpo, além de deixá-lo em estado de graça.
      Já nesses tempos não cuidava tão bem de si mesmo, e um escorregão no banheiro que podia ter sido fatal o colocou em guarda contra o chuveiro. A casa, por ser das modernas, carecia da banheira de estanho com patas de leão que era de uso corrente nas mansões da cidade antiga. Ele a mandara retirar com um argumento higiênico: a banheira era uma das tantas porcarias dos europeus, que só tomavam banho na última sexta-feira de cada mês, e o faziam além disso dentro do caldo sujo pela própria sujeira que pretendiam tirar do corpo. De modo que mandaram fazer sob medida um grande tanque de pau-santo maciço, onde Fermina Daza dava banho no esposo com o mesmo ritual usado no banho dos filhos recém-nascidos. O banho se prolongava por mais de uma hora, com águas em que se haviam fervido folhas de malva e cascas de laranja, e tinha para ele um efeito tão calmante que às vezes pegava no sono dentro da infusão perfumada. Depois de banhá-lo, Fermina Daza o ajudava a se vestir, lhe passava pós de talco entre as pernas, untava com manteiga de cacau as assaduras, punha-lhe as cuecas com tanto amor como se fossem fraldas, e continuava a vesti-lo peça a peça de roupa, das meias ao nó da gravata e o alfinete de topázio. O despertar conjugal se apaziguou, porque ele voltou a assumir a infância que os filhos lhe haviam tirado. Ela, por sua parte, acabou em consonância com o horário familiar, porque também para ela passavam os anos: dormia cada vez menos, e antes de fazer setenta acordava antes do esposo.

continua na página 027...
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Leia também:

O Amor nos Tempos de Cólera: Até pouco tempo atrás
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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