Gabriel García Márquez
continuando... Essa era sua vida, quatro meses antes da data prevista para formalizar o
compromisso, quando Lorenzo Daza apareceu às sete da manhã no escritório do
telégrafo, e perguntou por ele. Como ainda não havia chegado, esperou-o sentado
no banco até as oito e dez, tirando de um dedo e colocando-o no outro o pesado anel
de ouro coroado por uma opala nobre, e quando o viu entrar o reconheceu de
pronto como o empregado do telégrafo, e pegou-o pelo braço.
— Venha comigo, mocinho — disse. — O senhor e eu temos que falar cinco
minutos, de homem para homem.
Florentino Ariza, verde como um morto, se deixou conduzir. Não estava
preparado para esse encontro, porque Fermina Daza não encontrara a ocasião nem
a maneira de avisá-lo. O caso é que no sábado anterior, a irmã Franca de Ia Luz,
superiora do Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, entrara na aula de
Noções de Cosmogonia com o sigilo de uma serpente, e espiando as alunas por cima
do ombro descobriu que Fermina Daza fingia tomar notas no caderno quando na
realidade escrevia uma carta de amor. A falta, de acordo com os regulamentos do
colégio, era motivo de expulsão. Chamado de urgência à reitoria, Lorenzo Daza
descobriu a goteira por onde escorria seu regime de ferro. Fermina Daza, com sua
integridade congênita, admitiu a culpa da carta, mas se negou a revelar a identidade
do noivo secreto, e negou de novo perante o Tribunal de Ordem, que por esse
motivo confirmou a sentença de expulsão. Contudo, o pai fez uma devassa do
quarto dela, que até então tinha sido um santuário inviolável, e num fundo falso do
baú encontrou os pacotes de três anos de cartas, escondidas com tanto amor quanto
o amor que as ditara. A assinatura era inequívoca, mas Lorenzo Daza não pôde crer
nem então nem nunca que a filha só soubesse do noivo oculto que era telegrafista
de ofício e aficionado do violino.
Tratou de seduzi-la com toda espécie de agrados. Tratou de fazê-la entender que
o amor na sua idade era uma miragem, tratou de convencê-la por bem a devolver as
cartas e regressar ao colégio para pedir perdão de joelhos, e lhe deu a palavra de
honra de que seria o primeiro a ajudá-la a ser feliz com um pretendente digno. Mas
era como falar a um morto. Derrotado, acabou por perder as estribeiras no almoço
de segunda-feira, e enquanto se engasgava de impropérios e blasfêmias à beira da
congestão, ela pôs o gume da faca no próprio pescoço, sem dramas mas com pulso
firme, e com uns olhos atônitos ele não se atreveu a desafiá-la. Foi aí que assumiu o
risco de falar cinco minutos, de homem para homem, com o adventício infausto que
não se lembrava de jamais ter visto, e que em hora tão má se havia atravessado em
sua vida. Por puro costume pegou o revólver antes de sair, mas teve o cuidado de
escondê-lo debaixo da camisa.
Florentino Ariza não tinha recuperado o fôlego quando Lorenzo Daza o carregou
pelo braço pela Praça da Catedral até a galeria de arcos do Café da Paróquia, e o
convidou a sentar-se no terraço. Não havia outros fregueses a essa hera, e uma
matrona preta esfregava os ladrilhos do enorme salão de vitrais lascados e
empoeirados, cujas cadeiras ainda estavam de pés para cima sobre as mesas de
mármore. Florentino Ariza tinha visto ali muitas vezes Lorenzo Daza jogando e
bebendo vinho de barril com os asturianos do mercado público, enquanto brigavam
aos berros devido a outras guerras crônicas que não eram as nossas. Muitas vezes,
consciente do fatalismo do amor, perguntava a si mesmo como seria o encontro que
mais cedo ou mais tarde teria que ter com ele, e que nenhum poder humano havia
de impedir, porque estava desde sempre inscrito no destino de ambos. Imaginava-o
um exaltado cheio de asperezas, não só porque Fermina Daza lhe prevenira nas
cartas quanto ao caráter tempestuoso do pai, como porque ele próprio notara que
seus olhos pareciam coléricos até quando ria às gargalhadas na mesa de jogo. Ele
todo era um tributo à vulgaridade: a pança ignóbil, a fala enfática, as suíças de lince,
as mãos pesadas, o anular sufocado no aro grosso e a opala. Seu único traço
enternecedor, que Florentino Ariza descobriu da primeira vez que o viu caminhar, é
que tinha o mesmo andar de corça da filha. Contudo, quando ele lhe apontou a
cadeira para que se sentasse, achou-o menos áspero do que parecia, e respirou
desafogado quando o convidou a tomar um cálice de anis. Florentino Ariza nunca
tinha bebido às oito da manhã, mas aceitou agradecido, de muito necessitado que
estava.
Lorenzo Daza, com efeito, não levou mais de cinco minutos para dar suas razões,
o que fez com uma sinceridade absoluta que acabou de confundir Florentino Ariza.
Ao morrer sua esposa tinha imposto a si mesmo o propósito único de fazer da filha
uma grande dama. O caminho era longo e incerto para um traficante de mulas que
não sabia ler nem escrever, e cuja reputação de ladrão de cavalos não estava tão
provada como difundida na província de São João da Ciénaga. Acendeu um charuto
de tropeiro, e se queixou; "A única coisa pior do que a má saúde é a má fama."
Contudo, disse, o verdadeiro segredo da sua fortuna era que nenhuma das suas
mulas trabalhava tanto e com tanta disposição quanto ele próprio, mesmo nos
tempos mais duros das guerras, quando os povoados amanheciam em cinzas e os
campos devastados. Embora a filha nunca tivesse estado ao corrente da
premeditação do seu destino, comportava-se como um cúmplice entusiasta. Era
inteligente e metódica, ao ponto de haver ensinado o pai a ler logo que ela própria
aprendera, e aos doze anos tinha um domínio da realidade mais do que bastante
para dirigir a casa sem necessidade da tia Escolástica. Suspirou: "É uma mula de
ouro." Quando a filha terminou a escola primária, com grau dez em tudo e louvor
no ato de encerramento, ele compreendeu que o âmbito de São João da Ciénaga era
estreito demais para seus sonhos. Então liquidou terras e bestas, e se mudou com
ímpetos novos e setenta mil pesos ouro para esta cidade em ruínas e com suas
glórias carcomidas, mas onde uma mulher bela e educada à antiga tinha ainda a
possibilidade de nascer de novo num casamento de fortuna. A irrupção de
Florentino Ariza tinha sido um tropeço imprevisto naquele plano encarniçado. "Por
isso vim fazer-lhe uma súplica", disse Lorenzo Daza. Molhou a ponta do charuto no
anis, deu-lhe uma chupada sem fumo, e concluiu com a voz aflita:
— Afaste-se de nosso caminho.
Florentino Ariza o ouvira bebendo aos goles a aguardente de anis, e tão absorto
na revelação do passado de Fermina Daza que nem pensou no que ia dizer quando
tivesse que falar. Mas chegado o momento reparou que qualquer coisa que dissesse
comprometeria seu destino.
— O senhor falou com ela? — perguntou.
— Isso não lhe diz respeito — disse Lorenzo Daza.
— Estou perguntando — disse Florentino Ariza — porque me parece que quem
tem que decidir é ela.
— Nada disso — disse Lorenzo Daza: — é assunto de homens e se resolve entre
homens.
O tom se tornara ameaçador, e um freguês numa mesa próxima se voltou para
olhá-los. Florentino Ariza falou com a voz mais tênue mas com a resolução mais
imperiosa de que foi capaz:
— De todas as maneiras — disse — não posso responder nada sem saber o que
ela pensa. Seria uma traição.
Então Lorenzo Daza se encostou brusco no assento com as pálpebras
avermelhadas e úmidas, seu olho esquerdo girou na órbita e ficou torcido para fora.
Também baixou a voz.
— Não me obrigue a lhe dar um tiro — disse.
Florentino Ariza sentiu as tripas se encherem de uma espuma fria. Mas sua voz
não tremeu, porque também ele se sentiu iluminado pelo Espírito Santo.
— Dê o tiro — disse, com a mão no peito. — Não há maior glória do que morrer
por amor.
Lorenzo Daza teve que olhá-lo de lado, como os papagaios, para encontrá-lo com
o olho torto. Mais do que pronunciar as três palavras, pareceu cuspi-las sílaba por
sílaba:
— Fi-lho-da-pu-ta!
Naquela mesma semana empurrou a filha para a viagem do esquecimento. Não
lhe deu explicação nenhuma, limitando-se a irromper no quarto dela com os
bigodes sujos de cólera misturada ao fumo mastigado, e lhe mandou que arrumasse
a mala. Ela perguntou para onde iam, e ele respondeu: "Para a morte." Assustada
com aquela resposta que se parecia demais com a verdade, tratou de enfrentá-lo
com a coragem dos dias anteriores, mas ele tirou da cintura a correia com o fivelão
de cobre maciço, enroscou-a no pulso, e deu na mesa uma lambada que ressoou
pela casa feito um disparo de rifle. Fermina Daza conhecia muito bem o alcance e a
ocasião de sua própria força, de modo que fez uma trouxa com duas esteiras e uma
rede, e arrumou dois baús grandes com toda a sua roupa, certa de que era uma
viagem sem retorno. Antes de se vestir, se trancou no banheiro e conseguiu
escrever a Florentino Ariza uma breve carta de adeus numa folha arrancada ao
pacotinho de Papel higiênico. Depois cortou sua trança completa na altura da nuca
com a tesoura de podar, enfiou-a num rolo dentro de um estojo de veludo bordado a
fio de ouro, e a mandou junto com a carta.
Foi uma viagem demente. Só a etapa inicial numa caravana de tropeiros andinos
durou onze dias em lombo de mula pelas cornijas da Serra Nevada, embrutecidos
todos por sóis nus ou ensopados pelas chuvas horizontais de outubro, e quase
sempre com o alento petrificado pela exalação de dormência que sobe dos
precipícios. No terceiro dia de caminho, uma mula enlouquecida pelas varejeiras
rolou pelo barranco com seu cavaleiro e arrastou consigo a fieira inteira, e o alarido
do homem e de sua penca de sete bestas amarradas entre si continuou reboando
pelas gargantas e alcantis várias horas depois do desastre, e continuou reboando
durante anos e anos na memória de Fermina Daza. Toda a sua bagagem despencou
com as mulas, mas no instante de séculos que durou a queda até se extinguir nas
profundezas o alarido de pavor ela não pensou no pobre muleteiro morto nem na
recua despedaçada, e sim na desgraça de que sua própria mula não estivesse
também amarrada às outras.
Montava pela primeira vez, mas o terror e as canseiras incontáveis da viagem
não lhe teriam parecido tão amargos se não se acompanhassem da certeza de que
nunca mais veria Florentino Ariza nem teria o consolo de suas cartas. Desde o
começo da viagem não tinha tornado a dirigir a palavra ao pai, e este andava tão
confuso que apenas lhe falava em casos indispensáveis, ou lhe mandava recados
pelos muleteiros. Em momentos de melhor sorte achavam alguma casa de pasto à
beira das veredas onde havia comidas dali mesmo, que ela se negava a comer, e
onde se alugavam camas-de-vento entranhadas de urinas e suores azedos. O mais
frequente, contudo, era passar a noite em rancharias de índios, hospedarias
públicas ao relento, construídas à beira dos caminhos com fileiras de forquilhas e
tetos de palma, onde quem quer que chegasse tinha o direito de ficar até raiar o dia.
Fermina Daza não conseguiu, dormir uma noite completa, sentindo na escuridão o
bulício dos retardatários que iam chegando e atando os animais às forquilhas e
pendurando as redes onde podiam.
Ao entardecer, quando chegavam os primeiros, o lugar era amplo e tranquilo,
mas amanhecia transformado em praça de feira, com feixes de redes penduradas
em níveis diferentes, e índios da serra dormindo de cócoras, e o balir dos cabritos
amarrados e a algazarra dos gaios de briga em seus engradados de faraós, e a mudez
arquejante dos cachorros monteses amestrados para não ladrar devido aos riscos da
guerra. Essas privações eram familiares a Lorenzo Daza, que tinha negociado pela
região durante a metade da vida, e quase sempre deparava com velhos amigos ao
amanhecer. Para a filha era uma agonia perpétua. A fedentina das cargas de bagre
salgado, somada à inapetência própria à saudade, acabaram por lhe atropelar o
hábito de comer, e se não enlouqueceu de desespero foi porque sempre encontrou
alívio na lembrança de Florentino Ariza. Não duvidou de que aquela fosse a terra do
esquecimento.
Outro terror constante era o da guerra. Desde o princípio da viagem se
mencionara o perigo de encontrar patrulhas dispersas, e os tropeiros os haviam
instruído sobre os diversos modos de saber a que bando pertenciam para que
agissem de acordo. Era frequente encontrar um bando de soldados a cavalo, sob o
comando de um oficial, que recolhia os novos recrutas laçando-os como novilhos
em plena carreira. Angustiada por tantos horrores, Fermina Daza tinha esquecido
de coisas que lhe pareciam mais lendas do que ameaças de verdade, até a noite em
que uma patrulha sem filiação conhecida sequestrou dois membros da caravana e
os enforcou numa árvore a meia légua da rancharia. Lorenzo Daza não tinha nada a
ver com eles, mas os fez baixar e lhes deu sepultura cristã em ação de graças por
não ter sofrido destino igual. Não era para menos. Os assaltantes o haviam
acordado com um cano de escopeta na barriga, e um comandante em andrajos, com
uma cara que parecia tisnada a tição, iluminou-o com a lanterna e lhe perguntou se
era liberal ou conservador.
— Nem um nem outro — disse Lorenzo Daza. — Sou um súdito espanhol.
— Que sorte! — disse o comandante, e se despediu dele com a mão no alto: —
Viva o rei!
Dois dias mais tarde desceram à planície luminosa onde se assentava o alegre
povoado de Valledupar. Havia brigas de galo nos pátios, música de sanfona nas
esquinas, cavaleiros em cavalos de bom sangue, foguetes e sinos. Estavam armando
um castelo de pirotecnia. Fermina Daza nem reparou nos festejos. Hospedaram-se
na casa do tio Lisímaco Sánchez, irmão de sua mãe, que veio recebê-los na estrada
real à frente de uma buliçosa cavalgata de jovens membros da família montados em
animais da melhor raça da província, e foram conduzidos pelas ruas do povoado em
meio ao fragor do foguetório. A casa estava no centro da Praça Grande, junto à
igreja colonial várias vezes remendada, e dava mais a impressão de uma feitoria de
fazenda com seus aposentos espaçosos e sombrios, e o corredor recendente a garapa
quente debruçado sobre o pomar.
Mal haviam apeado das montarias e os salões de visita já transbordavam, com os
numerosos parentes desconhecidos que fustigavam Fermina Daza com suas
efusões insuportáveis, pois estava impedida de amar a qualquer outra pessoa que
fosse neste mundo, escaldada pela montaria, morta de sono e com o intestino solto,
e só implorava a bênção de um lugar solitário e quieto para chorar. Sua prima
Hildebranda Sánchez, dois anos mais velha do que ela e com sua mesma altivez
imperial, foi a única que compreendeu seu estado logo que a viu pela primeira vez,
por que também ela se consumia nas brasas de um amor temerário. Ao cair a noite
conduziu-a ao quarto que havia preparado para ambas, e não entendeu como estava
ainda viva com as úlceras de fogo que tinha no traseiro. Ajudada por sua mãe, uma
mulher muito doce e parecida com o marido como se fossem gêmeos, preparou-lhe
um banho de assento e lhe mitigou as ardências com compressas de arnica,
enquanto os trovões do castelo de pólvora abalavam os alicerces da casa.
À meia-noite já tinham saído as visitas, a festa pública se dissolveu em festinhas
dispersas, e a prima Hildebranda emprestou a Fermina Daza uma camisola de
morim, e a ajudou a se deitar numa cama de lençóis esticados e travesseiros de
penas que lhe infundiram de pronto o pânico instantâneo da felicidade. Quando
afinal ficaram sós no quarto, fechou a porta a tranca e tirou de baixo do colchão de
sua cama um envelope pardo lacrado com os emblemas do Telégrafo Nacional.
Bastou a Fermina Daza ver a expressão de radiante malícia da prima para brotar de
novo na memória do seu coração o odor pensativo das gardênias brancas, antes de
triturar o sinete de lacre com os dentes e ficar chapinhando até o raiar do dia no
charco de lágrimas dos onze telegramas desatinados.
continua na página 067...
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Leia também:
O Amor nos Tempos de Cólera: Essa era sua vida
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O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Gabriel García Márquez
Tradução Antônio Callado
Título original El amor en los tiempos del cólera. Record Rio de Janeiro. 1985.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
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