Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo IV
Dúvidas e ponderações
Na terça-feira já fazia uma semana que o nosso herói se achava ali em cima. Por isso
encontrou uma conta no seu quarto, ao regressar do passeio matinal; a conta do sanatório,
relativa à sua primeira semana, um documento comercial de execução cuidadosa, apresentado
num envelope verde, e cujo cabeçalho era enfeitado com uma vista sedutora do edifício do
Berghof, ao passo que à esquerda uma coluna estreita apresentava um pequeno excerto do
prospecto, destacando-se em negrito a referência ao “tratamento psíquico segundo os princípios
mais modernos”. Os itens, redigidos caligraficamente, davam um total de cento e oitenta francos
redondos: doze francos por dia pela pensão e os cuidados médicos, e oito pelo quarto; acresciam
a isso vinte francos de “entrada” e dez pela desinfecção do quarto; outras despesas menores,
referentes a roupa, cerveja e ao vinho tomado por ocasião do primeiro jantar, arredondavam a
soma. Ao conferir a conta em companhia de Joachim, Hans Castorp não encontrou nada de que
reclamar.
– É verdade que não faço uso dos cuidados médicos – disse. – Mas isso é comigo. Estão
compreendidos no preço da pensão e não posso exigir que os descontem. Como poderiam fazê
lo?... Quanto à desinfecção, são meio careiros. Não é possível que tenham gasto dez francos de
H2
CO, para fumigar os vestígios da americana. Mas, em geral, acho que é antes barato do que
caro, em consideração ao que oferecem. – Foram, pois, antes do café da manhã, à
“administração”, a fim de liquidar a conta.
A “administração” achava-se no rés-do-chão. Quem seguia além do vestíbulo o corredor
que passava ao lado do vestiário, das cozinhas e das despensas, não se podia enganar de porta,
tanto mais que esta se distinguia por uma placa de porcelana. Com grande interesse, Hans
Castorp travou ali conhecimento com o centro comercial da empresa. Era um verdadeiro
pequeno escritório. Uma datilógrafa se achava em plena atividade, e três funcionários estavam
inclinados sobre as escrivaninhas, enquanto na saleta ao lado um senhor que devia ocupar o
posto de chefe ou gerente trabalhava numa secretária colocada no meio da peça, limitando-se a
lançar por cima dos óculos um olhar frio e calculista sobre os pensionistas. Estes foram
despachados num guichê, onde um funcionário trocou uma nota, pôs o dinheiro na caixa e
passou o recibo. Enquanto isso, os primos guardavam aquela atitude séria e modesta, silenciosa e
até submissa, que convém a jovens alemães, acostumados a testemunhar a qualquer escritório o
respeito devido a autoridades e repartições. Mas, depois de terem saído da “administração” a
caminho do café da manhã, e mais tarde, no decorrer do dia, conversaram um pouco sobre a
organização da empresa Berghof. Joachim, na sua qualidade de “indígena” informado, soube
responder às perguntas de Hans Castorp.
O Dr. Behrens não era de maneira alguma proprietário nem arrendatário do
estabelecimento, se bem que à primeira vista se pudesse ter essa impressão. Acima e atrás dele
havia potências invisíveis que se manifestavam somente até certo ponto, sob a forma do
escritório. Existia um conselho fiscal, uma sociedade anônima, da qual seria alto negócio fazer
parte, uma vez que, segundo a informação fidedigna de Joachim, distribuía anualmente polpudos
dividendos aos acionistas, e isso apesar dos salários muito altos dos médicos e dos princípios
bastante liberais de administração. O conselheiro áulico não era, por conseguinte, autônomo; não
passava de um agente, de um funcionário, de um “parente” das potências superiores, embora
sendo o primeiro e o supremo; era a alma do estabelecimento e exercia uma influência decisiva
sobre toda a organização, inclusive a intendência, ainda que, na função de médico-diretor, ficasse
isento de qualquer ocupação com a parte comercial do sanatório. Natural do noroeste da
Alemanha, chegara, fazia anos, a essa posição, contra o seu gosto e plano de vida. Fora levado
para Davos por sua mulher, cujos restos mortais havia muito repousavam no cemitério da aldeia,
aquele cemitério pitoresco de Davos-Dorf, situado na encosta da direita, ali, mais atrás, perto da
entrada do vale. Devia ter sido uma mulher encantadora, ainda que astênica e com olhos
excessivamente grandes, a julgar pelas fotografias que se encontravam em toda parte na moradia
do médico, e pelos retratos a óleo, devidos ao pincel diletante do marido e espalhados pelas
paredes. Depois de lhe ter dado um casal de filhos, seu corpo franzino, acossado pela febre,
sentira-se atraído para essas regiões, onde, dentro de poucos meses, sucumbira à consunção.
Dizia-se que Behrens, que a adorara, fora de tal forma ferido por esse golpe que, durante algum
tempo, tomado de melancolia e esquisitice, chamara a atenção do público na rua pelos seus
risinhos, monólogos e gestos descontrolados. Nunca mais regressara ao seu ambiente primitivo,
mas ficara ali, decerto porque não queria afastar-se do túmulo. Mas talvez a razão determinante
fosse de caráter menos sentimental: a enfermidade atacara a ele próprio, e segundo a sua
convicção científica, o lugar que lhe cabia era ali mesmo. Por isso instalara-se em Davos, como
um daqueles médicos que são companheiros do infortúnio de quem recebe os seus cuidados, que
não combatem a enfermidade, independentes dela, na plenitude da sua liberdade e inteireza
pessoal, embora estejam, eles mesmos, marcados pela doença; caso estranho, sem dúvida, mas
que não é muito raro e tem inegavelmente suas vantagens e seus inconvenientes. A camaradagem
entre o médico e o enfermo merece plena aprovação, e pode-se admitir que só quem sofre é
capaz de ser salvador e guia dos que sofrem também. Mas será possível um verdadeiro domínio
espiritual sobre uma potência, exercido por uma pessoa que, ela própria, se conta entre os seus
escravos? Pode dar liberdade quem está avassalado? Para o sentimento ingênuo, o médico
enfermo não deixa de ser um paradoxo, um fenômeno problemático. Quem sabe se a experiência
pessoal não lhe turva e confunde o conhecimento científico da doença, tanto quanto o enriquece
e firma moralmente? Não encara a enfermidade face a face, com o olhar franco de um adversário;
vê-se coibido, não toma uma posição clara, e, com toda a cautela que o tema exige, deve-se
ventilar a questão de saber se uma pessoa que pertence ao mundo da doença pode interessar-se
pela cura ou ao menos pela conservação de outrem na mesma medida que um homem sadio...
Foi uma parte dessas dúvidas e ponderações que Hans Castorp externou à sua maneira,
enquanto conversava com Joachim acerca do Berghof e do seu diretor-médico. Mas Joachim
objetou que não se sabia se o Dr. Behrens ainda estava enfermo; provavelmente já se curara.
Havia muito tempo que começara a clinicar ali; no início como médico particular, adquirindo
logo boa reputação como auscultador de ouvido fino e especialista muito seguro de
pneumotomia. Depois, o Berghof procurara a sua colaboração: o estabelecimento ao qual o Dr.
Behrens se ligara estreitamente fazia mais de um decênio... Ali, nos fundos, ao extremo da ala
noroeste do sanatório, ficava situada a sua habitação – o Dr. Krokowski residia não longe dele –
e aquela senhora da antiga nobreza, a enfermeira-chefe, à qual Settembrini se referira daquela
forma sarcástica, e que Hans Castorp só conhecia de vista, dirigia a casa do viúvo. De resto, o
conselheiro áulico vivia sozinho, pois o filho estudava em universidades alemãs, e a filha casara-se
com um advogado, na parte francesa da Suíça. O jovem Behrens vinha às vezes de visita durante
as férias, o que já ocorrera uma vez desde a chegada de Joachim ao sanatório. O primo contou
que, quando isso acontecia, havia grande agitação entre as damas do estabelecimento; as
temperaturas subiam; ciumeiras provocavam disputas e querelas nos alpendres de repouso, e na
ficha especial do Dr. Krokowski aumentava a frequência...
Para a sua clínica particular, o assistente recebera uma peça especial, que se encontrava –
como a grande sala de consulta, o laboratório, a sala de operações e o serviço de radiografia – no
bem iluminado subsolo do edifício. Falamos de subsolo, porque a escada de pedra que conduzia
do rés-do-chão para ali despertava realmente a ideia de que se descia a uma espécie de porão, o
que, no entanto, era um engano, pois, em primeiro lugar, o rés-do-chão estava situado bastante
alto, e ademais o Berghof estava construído num terreno em declive, na encosta da montanha;
assim, as peças que compunham esse porão davam para o jardim e o vale. Essas circunstâncias
contradiziam e compensavam, em certo modo, o efeito e o sentido daquela escada: quem pensava
descer pelos seus degraus, para um lugar mais baixo do que o nível do solo, encontrava-se depois
da descida ainda ao nível da terra ou, quando muito, alguns pés abaixo dele – impressão que
divertiu Hans Castorp, quando, certa tarde, em que seu primo quis fazer-se pesar pelo massagista,
acompanhou-o a essa esfera “subterrânea”. Reinava ali uma claridade e um asseio de hospital;
tudo era branco sobre branco, e as portas cintilavam com a alvura do esmalte, inclusive a que
conduzia ao gabinete de consultas do Dr. Krokowski, na qual o cartão de visita do sábio se
achava fixado por meio de um percevejo. Para chegar a essa porta, era preciso descer mais dois
degraus, a partir do corredor, de maneira que a peça situada atrás dela tinha um caráter de
calabouço. Ficava ela à direita da escada, na extremidade do corredor, e Hans Castorp observava
a com atenção especial, enquanto ia de cá para lá, esperando por Joachim. Viu sair uma pessoa.
Era uma senhora, chegada recentemente, cujo nome ele ainda não conhecia, mulher baixinha,
graciosa, com franjas na testa e com brincos de ouro. Ao subir os dois degraus, inclinou-se
profundamente, arregaçando a saia, ao passo que a outra mão, adornada de anéis, apertava contra
a boca um lencinho. Os olhos grandes, turvos, assustados, olhavam para cima, sem nada ver.
Assim se dirigiu apressadamente para a escada, a passos curtos, com a saia a farfalhar. De repente
estacou, como se se lembrasse de alguma coisa. A seguir pôs-se novamente a andar e desapareceu
na escadaria, sempre inclinada para a frente e sem tirar o lencinho dos lábios.
Quando a porta se abriu, tornou-se patente que a peça, atrás dela, estava muito mais
escura do que o corredor branco. A luminosidade de hospital, evidentemente, não chegava até ali.
Conforme Hans Castorp verificou, reinava no gabinete analítico do Dr. Krokowski uma meia-luz
velada, um profundo crepúsculo.
continua pág 085...
___________________
___________________
Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Dúvidas e ponderações
___________________
A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário