Machado de Assis
Conto
AURORA SEM DIA
Não foi preciso dizer-lho duas vezes. Dois dias depois, levou o ex-poeta
ao seu protetor um artigo extenso e difuso, mas cheio de entusiasmo e fé.
O advogado achou defeitos no trabalho; apontou-lhe demasias e
nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que solidez;
todavia prometeu publicá-lo. Ou fosse porque lhe fizesse estas
observações com muito jeito e benevolência, ou porque Luís Tinoco houvesse perdido alguma coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a
promessa da publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas
estas razões juntas, o certo é que ele ouviu com exemplar modéstia e
alegria as palavras do protetor.
— Há de perder os defeitos com o tempo, disse este mostrando o artigo
aos amigos.
O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu alguns apertos de mão.
Aquela doce e indefinível alegria que ele sentira quando estampou no
Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la
agora, mas alegria complicada de uma virtuosa resolução: Luís Tinoco
desde aquele dia sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a
natureza e o destino o haviam mandado à terra para endireitar os tortos
políticos.
Poucas pessoas se terão esquecido do período final da estreia política do
ex-redator do Caramanchão Literário. Era assim:
Releve o poder — hipócrita e sanhudo, — que eu lhe diga muito
humildemente que não temo o desprezo nem o martírio. Moisés,
conduzindo os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar
nela: é o símbolo do escritor que leva os homens à regeneração moral e
política, sem lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer?
Prometeu atado ao Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando
na cruz, Savonarola indo ao suplício, John Brown esperneando na forca,
são os grandes apóstolos da luz, o exemplo e o conforto dos que amam a
verdade, o remorso dos tiranos, e o terremoto do despotismo.
Luís Tinoco não parou nestas primícias. Aquela mesma fecundidade da
estação literária veio a reproduzir-se na estação política; o protetor,
entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais
assentado. O ex-poeta não repeliu a advertência, e até lucrou com ela,
produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no
pensamento. A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor
emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer.
Os leitores compreendem facilmente que o autor dos Goivos e Camélias
não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das
grandes frases, — sobretudo das frases sonoras — demorava-se nelas,
repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão,
observação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.
Algum tempo depois houve uma eleição primária. O publicista sentiu que
havia em si um eleitor, e foi dizê-lo afoitamente ao advogado. O desejo
não foi mal aceito; trabalharam-se as coisas de modo que Luís Tinoco
teve o gosto de ser incluído numa chapa e a surpresa de ficar batido.
Batê-lo foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda quente
do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe
inspirava aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os
amigos do governo com um, que terminava assim: “Até onde quererá ir,
com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex
deputado Z.?”
Luís Tinoco quase morreu de júbilo ao receber em cheio aquela descarga
ministerial. A imprensa adversa não o havia tratado até então com a
consideração que ele desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido
argumentos seus; mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe
parecia ser o batismo de fogo naquela espécie de campanha. O advogado,
lendo o ataque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica à do
primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe
moço em plena Câmara dos Comuns, e que era necessário repelir no
mesmo tom a ofensa ministerial. Luís Tinoco ignorava até aquela data a
existência de Pitt e de Walpole; achou todavia muito engenhosa a
comparação das duas situações, e com habilidade e cautela perguntou ao
advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador britânico “para
refrescar a memória”. O advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe ideia
dele, quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo
acerca do que era e não era pimpolho.
Entretanto, a luta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse
necessário arengar algumas vezes, fê-lo o pimpolho a grande aprazimento
seu e no meio às palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si mesmo se lhe
era lícito aspirar às honras da tribuna. A resposta foi afirmativa. Esta nova
ambição era mais difícil de satisfazer; o ex-poeta o reconheceu, e armou
se de paciência para esperar.
Aqui há uma lacuna na vida de Luís Tinoco. Razões que a história não
conservou levaram o jovem publicista à província natal do seu amigo e
protetor, dois anos depois dos acontecimentos eleitorais. Não percamos
tempo em conjecturar as causas desta viagem, nem as que ali o
demoraram mais do que queria. Vamos já encontrá-lo alguns meses
depois, colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera
tanta prova na capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos
políticos e parentes, depressa criou Luís Tinoco um círculo de
companheiros, e não tardou que assentasse em ali ficar algum tempo. O
padrinho já estava morto; Luís Tinoco achava-se absolutamente sem
família.
A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista;
pelo contrário, uma coisa avivava a outra. A ideia de possuir duas armas,
brandi-las ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários,
tornou-se-lhe ideia crônica, presente, inextinguível. Não era a vaidade
que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luís Tinoco acreditava
piamente que ele era um artigo do programa da Providência, e isso o
sustinha e contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava
os seus infortúnios entre suas palestras de rapazes, teve-a quando se
enterrou a mais e mais na política. É claro que, se alguém lhe pusesse em
dúvida o mérito político, feri-lo-ia do mesmo modo que os que lhe
contestavam excelências literárias; mas não era só a vaidade que lhe
ofendiam, era também, e muito mais, a fé — fé profunda e intolerante —
que ele tinha de que o seu talento fazia parte da harmonia universal.
Luís Tinoco mandava ao Dr. Lemos na corte todos os seus escritos da
província, e contava-lhe singelamente as suas novas esperanças. Um dia
noticiou-lhe que a sua eleição para a Assembleia Provincial era objeto de
negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio seguinte trouxe
notícia de que a candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos
consumados.
A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que à
força de muita luta e muito empenho pôde ter a honra de ser incluído na
lista dos vencedores. Quando lhe deram notícia da vitória, entoou a alma
de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o
mais entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram
homens, desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de
longas e cruéis semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau
do Capitólio.
A noite foi mal dormida, como a da véspera da publicação do primeiro
soneto, e entremeada de sonhos análogos à situação. Luís Tinoco via-se
já troando na Assembleia Provincial, entre os aplausos de uns, as
imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a
imprensa da província os mais calorosos aplausos à sua nova e original
eloquência. Vinte exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso,
cujo assunto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos
períodos. Ele já estudava mentalmente os gestos, a atitude, todo o
exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da província.
Muitos grandes nomes da política haviam começado no parlamento
provincial. Era verossímil, era indispensável até, para que ele cumprisse o
mandato imperativo do destino, que saísse dali em pouco tempo para vir
transpor a porta mais ampla da reapresentação nacional. O ex-poeta
ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia Velha, e remirava-se
na própria pessoa e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já
diante de si a oposição ou o ministério estatelado no chão, com quatro ou
cinco daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as
gazetas a falarem, e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir
em todos os ângulos do império, e uma pasta a cair-lhe nas mãos, ao
mesmo tempo que o bastão do comando ministerial.
Tudo isto, e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos
lençóis, com a cabeça no travesseiro e o espírito a vagar por esse mundo
fora, que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo mortificado como
estava o dele naquela ocasião.
Não se demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as
suas esperanças e o programa que tencionava observar, desde que a
fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava
longamente do efeito provável da sua primeira oração, e terminava
assim:
Qualquer que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda
aquele que é o primeiro do país, abaixo do imperador (e creio que irei até
lá), nunca me há de esquecer que ao senhor o devo, à animação que me
dispensou, à recomendação que fez de mim. Parece-me que até hoje
tenho correspondido à confiança dos meus amigos; espero continuar a
merecê-la.
Inauguraram-se enfim os trabalhos. Tão ansioso estava Luís Tinoco de
falar que, logo nas primeiras sessões, a propósito de um projeto sobre a
colocação de um chafariz, fez um discurso de duas horas em que
demonstrou por A + B que a água era necessária ao homem. Mas a
grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco
fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os
adversários, a polícia e o despotismo. Seus gestos eram até então
desconhecidos na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo
menos, ninguém tivera nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir
de cabeça, aquele arquear de braço, aquele apontar, alçar, cair e bater
com a mão direita.
O estilo também não era vulgar. Nunca se falou de receita e despesa com
maior luxo de imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que
as flores recolhem durante a noite, a despesa à brisa da manhã que as
sacode e lhes entorna um pouco do sereno vivificante. Um bom governo é
apenas brisa; o presidente atual foi declarado siroco e pampeiro. Toda a
maioria protestou solenemente contra essa qualificação injuriosa, ainda
que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de Janeiro
lhes fora uma aura mais refrigerante.
Infelizmente os adversários não dormiam. Um deles, apenas Luís Tinoco
acabou o discurso entre alguns aplausos dos seus amigos, pediu a palavra
e cravou longo tempo os olhos no orador estreante. Depois sacou do
bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e disse:
— Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu
nesta tribuna. Diziam que era uma ilustração fluminense, destinada a
arrasar os talentos da província. Imediatamente, Sr. presidente, tratei de
obter as obras do nobre deputado.
Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha redigida
pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camélias. Tenho lá em
casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias.
O SR. LUÍS TINOCO. — O nobre deputado está fora da ordem!
(Apoiados).
O orador: — Continuo, Sr. presidente; aqui tenho os Goivos e Camélias.
Vejamos um goivo.
A Ela.
Quem és tu que me atormentas
Com teus prazenteiros sorrisos?
Quem és tu que me apontas
As portas dos paraísos?
Imagem do céu és tu?
Imagem do céu és tu?
És filha da divindade?
Ou vens prender em teus cabelos
A minha liberdade?
Vê V. Ex.ª, Sr. presidente, que já nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembleia tem visto como ele trata as leis do metro.
Vê V. Ex.ª, Sr. presidente, que já nesse tempo o nobre deputado era inimigo de todas as leis opressoras. A assembleia tem visto como ele trata as leis do metro.
Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou, Luís Tinoco fez-se
de todas as cores, e a sessão acabou em risada. No dia seguinte os
jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao adversário deste o triunfo
que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e brilhante face
do talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram dos
versos, foram condenados com estas poucas linhas: “Há dias um
deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens
honestos e bons. É caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus
camelos”.
Nem por isso Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas do deputado ao
Dr. Lemos começaram a escassear, até que de todo cessaram de
aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo dos quais
o Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se
achava Luís Tinoco. Partiu. Apenas empossado do cargo, tratou de
procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou, recebendo logo um convite
dele para ir a um estabelecimento rural onde se achava.
— Há de me chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar
à porta de casa o Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vê-lo daqui a um
ano; e se lhe não escrevi... Mas que tem, doutor? está espantado?
O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís
Tinoco. Era aquele o poeta dos Goivos e Camélias, o eloquente deputado,
o fogoso publicista? O que ele tinha diante de si era um honrado e pacato
lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das atitudes
melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno, — uma
transformação, uma criatura muito outra e muito melhor.
Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.
Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.
— Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a
minha casa e a minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e
meus filhos...
— Casado?
— Há vinte meses.
— E não me disse nada!
— Ia este ano à corte e esperava surpreendê-lo... Que duas criancinhas
as minhas... lindas como dois anjos. Saem à mãe, que é a flor da
província. Oxalá se pareçam também com ela nas qualidades de dona de
casa; que atividade! que economia!...
Feita a apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco
declarou ao Dr. Lemos que definitivamente deixara a política.
— De vez?
— De vez.
— Mas que motivo? desgostos, naturalmente.
— Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia
leram-me na assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto
eram pífios os tais versos; e podendo vir mais tarde a olhar com a mesma
lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas, arrepiei
carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais.
— Pois teve ânimo?...
— Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de
patinhar nas ilusões dos primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez
ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta. Com poucos anos
mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca,
que as moscas andam no ar.
Fim
continua na página 83...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: Aurora Sem Dia (III)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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