Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo V
Enciclopédia
A Montanha Mágica
Capítulo V
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Se certas alusões de Settembrini haviam exasperado Hans Castorp, este não se devia
admirar nem acusar o humanista de o ter espionado por motivos pedagógicos. Até um cego teria
notado a quantas o jovem andava. Ele mesmo não fazia nada para ocultá-lo. Uma certa exaltação
e alguma ingenuidade nobre impediam-no de disfarçar o seu estado de alma. Nesse ponto
distinguia-se – com vantagem sua talvez – daquele apaixonado de cabelos ralos, o rapaz de
Mannheim, e da sua conduta dissimulada. Recordamos e repetimos que a situação em que Hans
Castorp se encontrava acarreta geralmente um impulso e uma necessidade de abrir-se, uma
tendência para o desabafo e a confissão, uma cega preocupação consigo próprio e a mania de
encher o mundo com os seus assuntos – manifestações tanto mais estranhas para nós, seres
prosaicos, quanto menos lógica, menos razão e esperança o caso implica. É difícil precisar o que
faz essa gente para se trair; parece que são incapazes de dizer ou fazer qualquer coisa que não os
traia; e ainda numa sociedade que, segundo a observação de um espírito crítico, tinha só duas
coisas na cabeça: em primeiro lugar, a temperatura, e depois – outra espécie de temperatura, isto
é, por exemplo, a preocupação com o problema de saber quem indenizava a Srª. Wurmbrand,
esposa de um cônsul-geral de Viena, pela volubilidade do Capitão Miklosich, se era o gigante
sueco, ora completamente curado, ou o Sr. Paravant, promotor público de Dortmund, ou talvez
ambos. Pois era notório e indiscutível que os laços que haviam unido, durante alguns meses, o
promotor e a Srª. Salomon, de Amsterdam, tinham sido dissolvidos em virtude de um amistoso
acordo, e que a Srª. Salomon, seguindo as propensões da sua idade, inclinara-se para as classes
mais tenras, tomando sob as suas asas o beiçudo Gänser, da mesa da Kleefeld, ou, como o
expressava a Srª. Stöhr, num estilo como que jurídico e com certa plasticidade, “requisitando-o”;
assim, o promotor público tinha plena liberdade de se bater com o sueco em duelo pela posse da
consulesa-geral, ou de pactuar com ele a esse respeito.
Eram estes os processos que estavam pendentes na sociedade do Berghof, e
particularmente na mocidade febril, processos em que a passagem pela sacada, ao longo da
balaustrada, e contornando as divisões de vidro, desempenhava papel saliente. Tais ocorrências
ocupavam os pensamentos dos enfermos e formavam uma parte importante da atmosfera local.
Mas nem isso exprime com absoluta certeza o que temos em mente. Com efeito, Hans Castorp
tinha a impressão esquisita de que um assunto fundamental, ao qual em toda parte do mundo se
atribui importância considerável, e que forma um tema constante de alusões sérias ou
brincalhonas, era aqui acentuado, valorizado, ressaltado de um modo tão grave e – em virtude
dessa gravidade – tão novo, que a coisa em si se apresentava sob aspecto nunca visto, se não
terrível, ao menos assustador pela novidade. Ao enunciarmos isso, mudamos a expressão do
nosso rosto e assinalamos que, se nos ocorreu até agora falar das relações em apreço num tom
leve e chistoso, fizemo-lo pelos mesmos motivos secretos que frequentemente prevalecem, sem
que isso enuncie coisa alguma acerca da natureza leve ou chistosa do próprio assunto. No
ambiente onde nos encontramos, esse tom seria, de fato, ainda menos indicado do que em outra
parte. Hans Castorp pensara ser entendido, dentro dos limites normais, nesse assunto
fundamental, alvo de tantas pilhérias, e tinha, sem dúvida, razões para supô-lo. Mas agora
verificou que, na planície, não chegara além de um conhecimento pouco suficiente e no fundo
andara na mais cândida ignorância a esse respeito, ao passo que na montanha certas experiências
pessoais, a cujo caráter aludimos repetidas vezes, e que em determinados momentos lhe
arrancavam a exclamação “Deus meu!”, deveras o capacitavam interiormente para notar e
compreender o forte acento do inédito, do perigoso, do inominável, que o assunto, para todos ali
em cima, tinha em geral e em particular. Não que ali não se pilheriasse também sobre ele. Mas,
ainda mais do que na planície, esse tom parecia impróprio nas alturas; havia nele um quê de
arrepio e de respiração embargada, que deixava perceber com sobeja nitidez que ele era apenas
um véu transparente em volta da angústia que procurava (e inutilmente) disfarçar-se por meio
dele. Hans Castorp recordava a palidez terrosa que reparara em Joachim, quando pela primeira e
última vez aludira ao físico de Marusja, naquela forma de brincadeira inocente que se usa na
planície. Recordava também a lividez fria que se espalhara pelo seu próprio rosto, quando
desembaraçara Mme. Chauchat do clarão do sol poente – e recordava o fato de que, antes e
depois, em diversas ocasiões, encontrara essa lividez em muitos rostos estranhos, via de regra em
dois ao mesmo tempo, como, por exemplo, nos da Srª. Salomon e do jovem Gänser, quando se
formara entre eles o que a Srª. Stöhr qualificava com aquele termo jurídico. Dissemos que se
recordava disso e compreendia que, sob essas circunstâncias, não somente seria muito difícil não
“trair-se”, mas também não valeria a pena. Em outras palavras: não era apenas certa exaltação e
certa ingenuidade, senão também um determinado estímulo da parte do ambiente o que fazia
com que Hans Castorp se sentisse pouco animado a coibir-se e a dissimular o seu estado de alma.
Logo à chegada de Hans Castorp, Joachim mencionara a dificuldade de travar
conhecimento com outros pensionistas, dificuldade que resultava sobretudo de duas
circunstâncias: os primos formavam, dentro da sociedade do sanatório, uma espécie de partido
ou de grupo em miniatura, e o marcial Joachim, preocupado exclusivamente com sua cura rápida,
mostrava-se, por princípio, avesso a contactos e relações mais íntimas com os companheiros de
sofrimento. Não fosse assim, Hans Castorp teria encontrado e aproveitado muito mais
oportunidades para divulgar os seus sentimentos com desenfreada espontaneidade. Sem embargo,
chegou Joachim a apanhá-lo, certa noite, durante a reunião, em companhia de Hermine Kleefeld,
dos dois comensais dela, os senhores Gänser e Rasmussen, e do rapaz de monóculo, com a
desmesurada unha; ouviu então como Hans Castorp, de olhos excessivamente brilhantes, e numa
voz emocionada, improvisava um discurso sobre as formas singulares e estranhas do rosto de
Mme. Chauchat, enquanto os seus ouvintes trocavam olhares, acotovelavam-se e soltavam
risinhos afogados.
Era penoso para Joachim, mas o causador de tal hilaridade permanecia insensível à
revelação do seu estado, quiçá opinando que não faria justiça a este, se o deixasse despercebido e
oculto. Podia ter certeza de ser compreendido por todos, e conformava-se com os sorrisos
maliciosos que acompanhavam essa compreensão. Não somente na sua própria mesa, mas, com
o tempo, também nas mesas vizinhas, olhavam-no para pilheriar de suas faces ora pálidas ora
ruborizadas, cada vez que, após o começo de uma refeição, a porta envidraçada se fechava com
estrondo. E também isso o satisfazia, já que lhe causava a impressão de que a sua ebriedade, ao
despertar atenção, era em certo sentido reconhecida e corroborada pelos demais, de uma forma
capaz de favorecer sua causa e de lhe animar as esperanças vagas e insensatas; sensação que o
tornava mesmo feliz. As coisas iam tão longe que o pessoal, literalmente, se aglomerava para
observar o moço obcecado. Dava-se isso, por exemplo, no terraço depois do almoço, ou à frente
da portaria nas manhãs de domingo, quando os pensionistas iam lá receber a correspondência,
que nesse dia não era distribuída pelos quartos. Muitas pessoas sabiam que haveria por ali um
indivíduo intoxicado e excitadíssimo que exibiria abertamente os seus sentimentos. Assim, se
agrupavam nas proximidades a Srª. Stöhr, a Srta. Engelhart, a Kleefeld com a sua amiga de cara
de anta, o incurável Sr. Albin, o rapaz com a unha comprida, e ainda outros membros da
companhia dos enfermos; ficavam parados, contraindo ironicamente as comissuras da boca,
sufocando o riso no lenço e olhando o jovem que sorria com ar ausente e apaixonado e, com as
faces abrasadas daquele ardor que o incomodava desde a noite da sua chegada, fixando em
determinado ponto os olhos luzentes com aquele brilho que neles acendera a tosse do aristocrata
austríaco...
Era, no fundo, muito gentil da parte do Sr. Settembrini aproximar-se, em tais
circunstâncias, de Hans Castorp, para entabular uma conversa com ele e informar-se sobre o seu
estado de saúde. Mas é duvidoso que seu interlocutor soubesse apreciar com a devida gratidão a
atitude filantrópica e a liberdade de preconceitos que nisso se manifestavam. Assim se deu, certa
vez, no vestíbulo, numa tarde de domingo. Em torno do porteiro comprimiam-se os
pensionistas, estendendo as mãos para agarrar a correspondência. Também Joachim achava-se ali.
Seu primo ficara para trás, procurando obter, na referida postura, um olhar de Clávdia Chauchat,
que se encontrava perto dele, com seus companheiros de mesa, esperando que se dispersasse a
multidão que cercava a portaria. Era essa uma hora em que se misturavam os hóspedes, hora
prenhe de oportunidades, e por isso querida e almejada pelo jovem Hans Castorp. Havia oito
dias, ele roçara em Mme. Chauchat diante do guichê, de modo que ela até o empurrara levemente
e dissera “Perdão!”, com uma ligeira inclinação da cabeça, ao que ele respondera, com uma
presença de espírito febril, que agora lhe parecia uma bênção do Céu:
– Pas de quoi, madame!
“Que sorte”, pensava, “que nas tardes de domingo sempre se distribua a correspondência
no vestíbulo!” Pode-se dizer que ele gastava a semana aguardando durante sete dias a volta de
uma mesma hora – e aguardar significa adiantar-se, significa sentir o tempo e o presente não
como uma dádiva, mas como mero obstáculo, significa negar e aniquilar o seu valor intrínseco e
saltá-los espiritualmente. Dizem que é enfadonho esperar. Mas ao mesmo tempo, e mais
propriamente, é divertido, porque assim devoramos quantidades de tempo sem as viver e
explorar como tais. Poder-se-ia dizer que o homem que apenas espera se parece com um comilão
cujo aparelho digestivo deixa passar as massas de comida sem lhes assimilar os valores nutritivos
e proveitosos. Indo mais longe, diríamos: como os alimentos não digeridos não fortificam o
homem, o tempo desperdiçado na espera não faz envelhecer. Verdade é que praticamente não
existe a espera pura, não misturada.
Fora, pois, devorada uma semana, e novamente chegara a hora dominical do correio,
exatamente como se fosse ainda a mesma de oito dias atrás. Continuava, de forma sumamente
excitante, a criar oportunidades. Cada minuto encerrava e oferecia a possibilidade que apertava e
acossava o coração de Hans Castorp, sem que este lhe permitisse realizar-se. A isso opunham-se
inibições de natureza ora militar ora civil: em parte estavam ligadas à presença do honrado
Joachim e ao próprio senso de honra e de dever de Hans Castorp; em parte, porém, baseava-se
na sensação de que relações de cortesia com Clávdia Chauchat, relações cerimoniosas, que
obrigassem a gente a dizer “senhora”, a fazer mesuras e, se possível, a falar francês, não eram
nem necessárias nem desejáveis, nem adequadas... Ele deixava-se estar, observando o jeito com
que ela falava e ria, exatamente como fizera Pribislav Hippe outrora, lá no pátio da escola. Os
lábios de Clávdia Chauchat abriam-se largamente, e os olhos oblíquos e glaucos, por cima das
maçãs do rosto, contraíam-se formando estreitas fendas. Isto não era precisamente “belo”. Era
apenas como era, e em face da paixão amorosa, o raciocínio estético consegue impor-se tão
pouco quanto o raciocínio moral.
– O senhor também espera cartas, engenheiro?
Havia uma única pessoa capaz de falar assim, um desmancha-prazeres. Hans Castorp,
num sobressalto, voltou-se para o Sr. Settembrini, que, sorrindo, se achava à sua frente. Era o
mesmo sorriso fino e humanístico com que saudara o recém-chegado por ocasião do primeiro
encontro, perto do banco, à margem do curso de água. E, como então, Hans Castorp corou ao
deparar com ele. Mas, embora nos seus sonhos freqüentemente lhe ocorresse empurrar o
“tocador de realejo”, porque “era demais ali”, evidenciou-se que o homem acordado é melhor do
que o cismarento, e Hans Castorp avistou esse sorriso com sentimentos, não só de vergonha e de
desembriagamento, senão também de gratidão e de necessidade.
– Cartas? Ora veja, Sr. Settembrini! – respondeu. – Eu não sou embaixador. Talvez haja
um cartão-postal para um de nós dois. Meu primo já foi ver.
– A mim, aquele diabo coxo ali na frente já me entregou a minha pequena
correspondência – disse Settembrini, levando a mão ao bolso do infalível paletó de fazenda
espessa. – Coisas interessantes, coisas de grande envergadura literária e social, inegavelmente!
Trata-se de uma obra enciclopédica, para cuja colaboração um instituto humanitário me dá a
honra de me convidar... Numa palavra, um belo trabalho... -settembrini interrompeu-se. – Mas e
os seus próprios assuntos? – perguntou. – Como vão eles? Até que ponto progrediu, por
exemplo, seu processo de aclimatação? Fazendo as contas, o senhor ainda não está entre nós há
tanto tempo que essa pergunta venha fora de propósito.
– Obrigado, Sr. Settembrini. Por enquanto continuo tendo algumas dificuldades. Acho
possível que isso vá assim até o último dia. Há quem nunca se habitue, como me disse meu primo
logo que cheguei. Mas a gente se habitua ao fato de não se habituar. – Um processo meio complicado – zombou o italiano.
– Um modo um tanto estranho de
se assimilar. Naturalmente, a juventude é capaz de tudo. Não se habitua, mas se arraiga.
– E, afinal, isto aqui não é uma mina siberiana...
– Não, não é mesmo. Mas vejo que o senhor prefere comparações orientais. É
compreensível. A Ásia nos devora. Aonde quer que se olhe, só se veem caras tártaras. – E o Sr.
Settembrini voltou discretamente a cabeça por cima do ombro. – Gengis Khan – acrescentou. –
Olhos de lobo de estepe, neve e aguardente, o cnute, o Schlüsselburg, e o cristianismo. Deveriam
erguer, aqui no vestíbulo, um altar a Palas Atena, como medida de defesa. O senhor está vendo?
Lá na frente, um desses Ivan Ivánovitch, sem roupa-branca, começou a discutir com o promotor
Paravant. Cada um diz que é a sua vez de receber a correspondência. Não sei quem tem razão,
mas, a meu ver, o promotor acha-se sob a proteção da deusa. É um burro, sem dúvida, mas ao
menos sabe latim.
Hans Castorp riu-se – o que o Sr. Settembrini nunca fazia. Era impossível imaginá-lo
rindo à vontade. Não ia além da contração fina e seca de uma das comissuras da boca. Após ter
contemplado o riso do jovem, perguntou:
– Já lhe entregaram a sua chapa?
– Entregaram, sim, senhor – confirmou Hans Castorp, dando-se ares de importância. – Já
faz algum tempo. Aqui está.
– Ah, o senhor leva-a consigo na carteira? Como uma espécie de documento, um
passaporte ou uma carteira de sócio. Ótimo! Deixe ver. – E erguendo a chapinha de vidro tarjada
de preto, segurou-a contra a luz, entre o polegar e o indicador da mão esquerda, gesto muito
comum, frequentemente visto ali em cima. O rosto com os olhos negros, amendoados, torceu-se
numa leve careta, enquanto examinava a fotografia fúnebre, sem deixar perceber claramente se
isso era para ver melhor ou por outros motivos.
– Pois é – disse então. – Aqui tem o senhor o seu passaporte. Muito agradecido. – Com
isso devolveu a chapa ao proprietário, passando-a por cima do próprio braço, e desviando o
olhar.
– Viu os cordões? – perguntou Hans Castorp. – E os pequenos nós?
– O senhor já sabe – replicou o Sr. Settembrini devagar – o que penso a respeito da
importância desses produtos. Sabe também que as manchas e as sombras aí dentro são, na
maioria, de origem fisiológica. Vi centenas de radiografias que tinham, pouco mais ou menos, o
aspecto da sua, e deixavam ao critério de quem as examinasse toda a liberdade de considerá-las
ou não como “passaporte”. Eu falo aqui como leigo, mas ao menos como leigo veterano.
– E seu próprio passaporte é pior?
– Sim, um pouco pior... Por outro lado sei que os nossos mestres e superiores não
fundam nenhum diagnóstico exclusivamente nesse brinquedo... E então, o senhor pretende
passar o inverno conosco?
– Que vou fazer?... Começo a me familiarizar com a ideia de que só descerei em
companhia do meu primo.
– Quer dizer que o senhor se habitua a não se... Formulou isso muito espirituosamente.
Espero que já tenha recebido a sua bagagem, roupas quentes, calçados resistentes?
– Recebi, sim, senhor. Está tudo em perfeita ordem. Informei os meus parentes, e a nossa
governanta me enviou as coisas por expresso. Agora estou preparado.
– Isso me tranquiliza. Mas, escute! O senhor vai precisar de um saco de peles. Agora é
que me lembro! Esse veranico é traiçoeiro. De um momento para outro podemos estar em pleno
inverno. O senhor passará aqui os meses mais frios...
– Pois é, o saco de repouso – disse Hans Castorp. – É indubitavelmente uma peça
necessária. Também já ventilei vagamente o projeto de ir à aldeia, nos próximos dias, junto com
meu primo, para comprar um. Lá embaixo nunca mais precisarei dele, mas para quatro ou seis
meses já vale a pena.
– Vale, engenheiro, vale mesmo – disse o Sr. Settembrini baixinho, aproximando-se um
pouco mais do jovem. – Sabe o senhor que é horroroso ouvir com que leviandade fala de meses?
É horroroso porque é antinatural e contrário ao seu caráter, e porque isso provém unicamente da
docilidade dos seus anos. Ai dessa excessiva docilidade da juventude! A juventude é o desespero
dos educadores, por estar disposta a aceitar sobretudo as coisas ruins. Não fale como se costuma
falar aqui, meu rapaz, mas como convém à sua maneira europeia de viver! Neste ar aqui há muita
coisa da Ásia, principalmente. Não é sem motivo que esses tipos da Mongólia moscovita andam
pululando por aí. Esse pessoal – e o Sr. Settembrini fez um movimento com o queixo, apontando
por cima do ombro – não lhe deve servir de modelo. Não se deixe contagiar pelos conceitos
deles. Pelo contrário, oponha-lhes a própria natureza, a sua natureza superior, e mantenha
sagrado o que, pela sua índole e pela sua origem, deve ser sagrado ao senhor, filho do Ocidente,
do divino Ocidente, filho da civilização; o tempo, por exemplo. Esse procedimento generoso,
essa prodigalidade bárbara no emprego do tempo é de estilo asiático. Pode ser que esse seja o
motivo por que os filhos do Oriente se dão bem aqui. O senhor nunca notou que, quando um
russo fala em “quatro horas”, é como se nós disséssemos “uma hora”? É fácil chegar à conclusão
de que o pouco-caso que essa gente faz do tempo está relacionado com a vastidão selvagem do
seu país. Onde há muito espaço há muito tempo. Diz-se que eles são o povo que tem tempo e
pode esperar. Nós, os europeus, não o podemos. O tempo que temos é tão exíguo quanto o
espaço do nosso continente nobre e delicado nos seus contornos. É preciso que administremos
economicamente o nosso tempo e o nosso espaço, que tiremos proveito deles, engenheiro, muito
proveito! Tome como símbolo as nossas cidades grandes, esses centros, esses focos da
civilização, esses cadinhos do pensamento! À medida que sobe ali o preço do solo e se torna
impossível o desperdício de espaço, o tempo – repare bem nisso! – também chega a ter um valor
cada vez mais elevado. Carpe diem! Quem cantava assim era um homem da metrópole. O tempo é
um dom divino, outorgado ao homem para que o explore, sim, meu caro engenheiro, para que o
explore a serviço do progresso da humanidade.
Por maiores que fossem os obstáculos que essas últimas palavras, na sua forma alemã,
oferecessem à língua mediterrânea do Sr. Settembrini, ele conseguiu proferi-las de um modo
agradável, claro, sonoro e – inegavelmente – plástico. Hans Castorp limitou a sua resposta àquele
tipo de reverência breve, rígida e acanhada com que um aluno recebe uma lição que encerra uma
censura. Que mais poderia replicar? Essa preleção altamente pessoal que o Sr. Settembrini
acabava de lhe fazer, secretamente, quase cochichando, e com as costas voltadas aos outros
pensionistas, tinha caráter muito objetivo, era muito pouco social, e afastava-se por demais de
uma simples conversa, para que o tato permitisse uma manifestação de aplauso. Não se responde
a um professor: “Como o senhor falou bem!” Em outras ocasiões, Hans Castorp, às vezes, fizera
o, por assim dizer, para se manter num plano de igualdade social com o humanista. Mas este
nunca lhe dirigira palavras tão insistentemente pedagógicas, que não deixavam lugar para outra
atitude senão a de engolir a reprimenda, aturdido qual um escolar em face de tanta moral.
continua pág 158...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Enciclopédia (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
[1] Personagens de Wilhelm Busch (1832-1908), autor de obras infantis muito divulgadas na Alemanha. No Brasil, são conhecidos como ]uca e Chico, na tradução de Olavo Bilac. (N. do E.)
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