sábado, 24 de maio de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - O Petit Picpus / VI - O pequeno convento

Victor Hugo - Os Miseráveis

Segunda Parte - Cosette

Livro Sexto — O Petit Picpus

VI - O pequeno convento
     
      Havia no recinto do Petit-Picpus três edifícios inteiramente distintos: o Grande Convento, habitado pelas religiosas, o Recolhimento, morada das educandas, e, finalmente, o chamado Pequeno Convento, que era uma morada de casas com jardim, onde viviam em comum religiosas velhas de todas as espécies, pertencentes a diversas ordens, restos dos claustros destruídos pela revolução; uma reunião de malhas pretas, pardas e brancas, de todas as comunidades e variedades possíveis, o que se tal cópula de palavras fosse permitido, se podia chamar uma espécie de convento-arlequim.
     Apenas se estabelecera o império, permitiram a todas aquelas pobres mulheres dispersas e desterradas ir abrigar-se ali sob as asas das bernardas-beneditinas, e aquelas religiosas, a quem o governo dava uma pensão, haviam sido recebidas, com o maior gosto, pelas; freiras do Petit-Picpus. Era uma mistura extravagante. Cada qual seguia a sua regra. As vezes era permitido às recolhidas, como grande recreio, ir visitá-las, em virtude do que aquelas tenras memórias guardavam a lembrança da madre Santa Basília, da madre Santa Escolástica e da madre Jacob.
     Uma destas refugiadas tornava-se a encontrar quase na sua casa. Era uma religiosa de Santa Aura, a única que sobrevivera da sua ordem. O antigo convento das freiras de Santa Aura ocupava desde o princípio do século XVIII exatamente aquela mesma casa do Petit-Picpus, que depois veio a pertencer às beneditinas de Martin Verga. Aquela santa mulher, demasiado pobre para trazer o magnífico hábito da sua ordem, que consistia num vestido branco com escapulário escarlate, vestira piedosamente com ele uma manequim, que gostava de mostrar, legando-o por sua morte ao convento.
     Em 1824, daquela ordem não restava mais do que uma religiosa; hoje só resta uma boneca.
     Além destas dignas madres, havia algumas senhoras seculares, que, como Albertina, tinham obtido permissão da prioresa para se recolherem ao Pequeno Convento.
     Eram deste número Madame de Beaufort de Hautpoul e a marquesa Dufresne. Havia ainda outra, que nunca foi conhecida no convento senão pelo temível barulho que fazia a assoar-se. Chamavam-lhe as educandas Madame Vacarmini.
     Pelo ano de 1820 ou 1821, Madame de Genlis, que nessa época publicava uma miscelaneazinha periódica, intitulada o Intrépido, solicitou a sua admissão como secular no convento de Petit-Picpus, admissão em que se empenhava o duque de Orleãs.
     Rumor na colmeia; as madres vocais tremiam, porque Madame de Genlistinha escrito romances; porém, ela declarou que era a primeira a detestá-los, e como, além disso, tinha chegado à sua fase de devoção ascética, com a ajuda de Deus e do príncipe também entrou para o convento. Ao cabo, porém, de seis ou oito meses, saiu dando por motivo da sua saída não ter o jardim sombra.
     Ficaram arrebatadas as religiosas. Posto que velha, Madame de Genlis ainda tocava harpa e muito bem.
     Quando saiu, deixou a sua firma na cela. Madame de Genlis era supersticiosa e latinista. Estas duas palavras dão dela um exatíssimo perfil. Ainda há alguns anos se viam colados na parte interna de um armariozinho da sua cela, onde fechava o dinheiro e as joias, os cinco seguintes versos latinos, escritos pelo seu punho com tinta vermelha em papel amarelo, que tinham, na sua opinião, a virtude de afugentar os ladrões:

Imparibus mentis pendent ma corpora ramis; 
Dismas et Gesmas, media est divina potestas; 
Alta petit Dismas, infelix, infima, Gesmas, 
Nos et tes nostras conservei sumtna poteeias. 
Hos versus dicas, ne tu furto tuo perdas. (1)

     Estes versos, escritos em latim do século dezesseis, lembram a questão de saber se os dois ladrões do Calvário se chamavam, como vulgarmente se crê, Dimas e Gestas, ou Dimas e Gesmas. Esta ortografia talvez desaprouvesse no século passado ao visconde de Gestas, que pretendia descender do mau ladrão. Como quer que seja, a virtude útil que lhe anda apensa e artigo de fé na ordem das hospitaleiras.
     A igreja do convento, construída de modo que separava, como um verdadeiro tapamento, o Convento Grande do Recolhimento, era, já se vê, comum ao Convento Grande e ao Convento Pequeno. Era até admitido nele o público por uma espécie de entrada de lazareto que deitava para a rua. Estava tudo, porém, disposto de tal modo, que nenhuma das habitantes do claustro podia ver um rosto de fora. Suponde uma igreja, cujo coro houvesse sido agarrado por uma mão gigantesca e encurvado de modo que formava, não como nas igrejas ordinárias, um prolongamento por trás do altar, porém uma espécie de galeria ou caverna escura, à direita do celebrante; suponde esta galeria fechada pela cor na de sete pés de altura, de que já falamos; amontoai à sombra daquela cortina, em assentos de madeira, as religiosas professas à esquerda, as recolhidas à direita, no fundo, as conversas e as noviças e tereis uma ideia das religiosas do Petit-Picpus, assistindo aos ofícios divinos. Esta caverna, chamada o coro, comunicava com o claustro por um corredor, e as frestas da igreja deitavam para o jardim. Quando as religiosas assistiam a ofícios, em que a sua regra impunha o silêncio, o público só conhecia que elas estavam no coro pelo estrondo que faziam, abrindo os fechando os assentos móveis das cadeiras em que se sentavam.

continua na página 381...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Sexto - VI - O pequeno convento
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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(1) Três erguidos madeiros se levantam, 
Do que pendem três corpos, e diferentes 
São os motivos. Num, que ao lado fica, 
É Dismas, noutro Gesmas, e no meio 
De ambos, jaz a divina potestade. 
Busca Dismas salvar-se; infeliz, Gesmas, 
Contra o céu blasfemando, irado ruge. 
Deus o que é nosso e a nós p’ra sempre guarde. 
Estes versos repete, e preservado 
De ladrões, viverás seguramente.

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